Opinião

O advogado e a sua formação: é preciso (re)pensar o ensino jurídico no Brasil

Autor

  • Francisco Soares Campelo Filho

    é advogado e professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (Esmepi). Doutorando em Direito e Políticas Publicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

19 de agosto de 2017, 6h19

Neste mês de agosto, no dia 11, é celebrado o Dia do Advogado. Muito já tenho escrito sobre a importância do advogado para o Brasil e para a manutenção do Estado Democrático de Direito, uma vez ter a missão do advogado a prerrogativa de ser essencial à própria administração da Justiça. É claro que não pode haver democracia onde não se tenha na Justiça (em todas as suas vertentes) o seu principal ponto de apoio e de sustentação. Porém, na qualidade de membro da Comissão Nacional de Educação Jurídica do Conselho Federal da OAB, penso ser importante tratar do ensino jurídico no Brasil, ou seja, tratar dos futuros advogados, os mesmos que amanhã deverão abraçar essa importante missão que é servir à pátria.

Os primeiros cursos jurídicos instalados no Brasil datam de 1828, criados por força da Carta Lei de 11 de agosto de 1827, promulgada por D. Pedro I[1]. Nesse período, surgiram os principais juristas brasileiros da sua história, tais como Rui Barbosa (1849-1923), Tobias Barreto (1839-1889), Clóvis Beviláqua (1859-1944), Teixeira de Freitas (1816-1883) e Pontes de Miranda (1893-1979)[2]. A questão, contudo, é que, passados quase 200 anos, o país nunca presenciou uma crise no ensino como a que se tem descortinado neste século XXI. De fato, a educação jurídica brasileira[3] enfrenta uma grave crise de identidade. Digo identidade uma vez que o Brasil ainda adota o velho discurso da teoria versus prática[4] como corolário dos debates sobre o ensino jurídico[5].

A mencionada crise é refletida em alguns fatores, tais como os baixos índices de aprovação no Exame da Ordem (se se considerar o Exame de Ordem Unificado, do II ao XIII, a média de aprovação é de apenas 17,5%)[6], o desinteresse dos alunos pelas aulas (magistrais em sua quase totalidade), a quantidade de cursos de Direito que são reprovados em avaliações feitas pela Ordem dos Advogados do Brasil, através da Comissão Nacional de Educação Jurídica, e ainda pelas críticas constantes feitas por juristas, tanto no tangente à abordagem dogmático-jurídica tradicional quanto à mudança paradigmática da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem[7], e ainda pelo enfoque que se tem dado nos cursos de graduação à preparação dos alunos para a realização de concursos públicos[8].

Os cursos jurídicos no Brasil possuem em sua quase[9] totalidade uma grade curricular arcaica (tradicional-ortodoxa), que apenas informa um conteúdo muito mais voltado ao exercício prático do que à formação, com metodologias de ensino arcaicas e desestimulantes (baseadas em aulas magistrais), que não se adequam ainda às inovações tecnológicas e à melhor forma de ensinar as chamadas gerações Y e Z.

É a ilusão de que há trabalho e emprego para todos, independentemente do mérito da qualificação. Ledo engano, uma falácia que só se concebe em um país que ainda não atingiu o nível de maturidade necessário para compreender a importância de uma formação de base, dogmática e principiológica, fundada em valores que têm o condão de penetrar no ser e efetivamente transformá-lo. E o mercado produtivo está repleto de desempregados (mal) graduados[10]. Mais uma triste realidade.

Nesse diapasão, não é difícil afirmar a necessidade de que o ensino jurídico brasileiro precisa ser (re)pensado. Na hipótese, porém, o (re)pensar não significa encontrar um forma de (re)adequá-lo, mas antes transformá-lo. (Re)Pensar o ensino jurídico é tratar do futuro do país, é preparar pessoas para a pós-modernidade, para enfrentar os novos desafios que exsurgirão de uma sociedade cada vez mais complexa e global.

Disciplinas relacionadas à Filosofia Jurídica e à História do Direito, em par com outras de formação, como a Sociologia Jurídica e a Hermenêutica Jurídica, deveriam estar presentes nas grades curriculares, obrigatoriamente, mas não como meras coadjuvantes, como representantes da parte mais desinteressante do curso, e sim como destaques, como essenciais, como disciplinas fundamentais que efetivamente são.

Edgar Morin, antropólogo, sociólogo e filósofo francês, que também é formado em Direito, critica o descaso do ensino para com as disciplinas propedêuticas ao tratar da hiperespecialização que impede tanto a percepção do global (que ela fragmenta em parcelas), quanto do essencial (que ela dissolve). Para ele, a referida hiperespecialização termina por impedir até mesmo de se tratar corretamente os problemas particulares, que só podem ser propostos e pensados em seu contexto. A questão, para Morin, é que os problemas essenciais nunca são parcelados, e os problemas globais são cada vez mais essenciais. Assim, enquanto a cultura geral comportava a incitação à busca da contextualização de qualquer informação ou ideia, a cultura científica e técnica disciplinar parcela, desune e compartimenta os saberes, tornando cada vez mais difícil a sua contextualização[11].

Que neste mês em que se comemora o Dia do Advogado, pois, possamos não apenas exaltar (com muita justiça, por sinal) a profissão, mas, principalmente, discutir o futuro da advocacia, que passa necessariamente pela formação jurídica da graduação superior, para que amanhã os profissionais do Direito tenham plenas condições de exercer com ética, com respeito à sociedade e às instituições democráticas, calcados em um conhecimento sólido e profundo, essa nobre profissão.


[1] Ver MACHADO, Antônio Alberto. Ensino Jurídico e Mudança Social. 2ª. ed. São Paulo. Atlas, 2009.
[2] Ver artigo do professor doutor Arnaldo Godoy: "Os juristas brasileiros citados no dicionário dirigido por Michael Stolleis". Em www.conjur.com.br/2014-out-26/juristas-brasileiros-sao-citados-dicionario-michael-solleis. Acesso 18/5/2017.
[3] No presente artigo, apenas a graduação será utilizada como referência.
[4] Ver OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. "O persistente dilema Teoria versus Prática no Direito". Disponível em www.conjur.com.br/2012-ago-11/diario-classe-persistente-dilema-teoria-versus-pratica-direito. Acesso em 17/5/2017.
[5] A relação teoria/práxis é um problema da Filosofia moderna do século XIX e se relaciona com a teoria do conhecimento e suscita calorosos debates, onde se poderia invocar Habermas, Hegel e Kant, para citar apenas estes. Porém, para os fins desse artigo, não seria prudente fazer o enfrentamento dessa temática, pois desviaria o seu propósito principal.
[6] O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, juntamente com a FGV, apresenta um panorama do desempenho dos candidatos do Exame de Ordem desde 2010 — ano em que passou a ser feito pela FGV Projetos. A publicação apresenta uma série de estatísticas levantada pelos especialistas da FGV e traça um perfil do ensino superior de Direito e do mercado profissional dos advogados no país. www.oab.org.br/arquivos/exame-de-ordem-em-numeros-II.pdf. Acesso em 16/5/2017.
[7] Ver, dentre outros: STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10ª Ed. Rev. Atual. e Ampli., Livraria do Advogado. Porto Alegre, 2011.
[8] Ver ainda: LUNA DA CUNHA, Alexandre. et al. Senso teórico comum do jurista e fenômeno da globalização: crítica ao ensino do Direito, in Direito, educação, epistemologias, metodologias do conhecimento e pesquisa jurídica II. – Florianópolis: CONPEDI, 2016.
[9] Não ouso afirmar que são todos para não ser injusto com cursos que possuem uma grade curricular diferenciada, moderna, que têm se adequado às exigências de um mundo globalizado e em transformação, bem como se utilizando mais adequadamente das inovações tecnológicas.
[10] O problema da formação jurídica e do desemprego dos bacharéis não parece ser um problema unicamente brasileiro. Ver a entrevista do ex-presidente da Ordem dos Advogados de Portugual: www.conjur.com.br/2014-fev-16/entrevista-marinho-pinto-ex-presidente-ordem-advogados-portugal. Ver ainda matéria sobre os EUA, intitulada: "Estudo mostra que desemprego de bacharéis é mal crônico", em www.conjur.com.br/2014-fev-17/estudo-longo-prazo-mostra-desemprego-bachareis-mal-cronico.
[11] MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Cortez. São Paulo. 2000, pp. 41-42.

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    é advogado e professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (Esmepi). Doutorando em Direito e Políticas Publicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

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