Ambiente Jurídico

A distribuição do ônus da prova no processo coletivo ambiental e o novo CPC

Autor

  • Álvaro Luiz Valery Mirra

    é juiz de Direito em São Paulo doutor em Direito Processual pela USP especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França) coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

12 de agosto de 2017, 8h00

Spacca
O processo coletivo ambiental, como se sabe, é o instrumento por excelência de acesso à Justiça em tema de meio ambiente, por intermédio do qual se permite à sociedade obter a proteção da qualidade ambiental pela via do exercício da jurisdição. Daí por que é importante analisar quais as repercussões do novo Código de Processo Civil sobre as ações coletivas ambientais.

Embora se tenha, no Brasil, um microssistema de processo coletivo, constituído basicamente pela Lei da Ação Popular, pela Lei da Ação Civil Pública e pela parte processual do Código de Defesa do Consumidor, não há dúvida de que também as normas do CPC têm aplicação nesse microssistema processual, naquilo que não contrariarem as disposições próprias e específicas deste último (artigo 22 da LAP, artigo 19 da LACP, artigo 1.046, parágrafo 2º, do novo CPC).

Isso significa, em termos gerais, como tem sido salientado pela doutrina autorizada, que o novo CPC tem aplicação supletiva e subsidiária no processo coletivo ambiental. Aplicação supletiva quando não há no microssistema do processo coletivo disciplina para a matéria; aplicação subsidiária quando existe disciplina da matéria no microssistema do processo coletivo, mas essa disciplina é menos abrangente ou incompleta[1].

Além disso, as normas fundamentais do processo civil, estabelecidas principalmente nos artigos 1º a 11 do CPC, que são normas que transpuseram para o diploma processual princípios e regras processuais inscritos na Constituição Federal, têm, igualmente, vocação para serem aplicadas a todo o sistema de Direito Processual Civil e, bem assim, ao microssistema do processo coletivo[2].

Reitere-se, entretanto, que a incidência das normas do novo CPC na matéria deve se dar sempre ressalvada a observância dos princípios fundamentais, das características próprias e da finalidade específica do processo coletivo ambiental[3]. A aplicação do novo CPC dá-se, aqui, como forma de aperfeiçoar a disciplina do processo coletivo ambiental, para que este cumpra a sua finalidade última, que é a implementação, pela via judicial, do Direito Ambiental, o qual, por sua vez, se destina a propiciar a proteção do meio ambiente.

Nessa ordem de ideias, se o Direito Ambiental é, em termos gerais, um conjunto de normas jurídicas destinadas à proteção do meio ambiente, que comporta sempre uma autêntica obrigação de resultado[4], consistente na preservação e na conservação da qualidade ambiental propícia à vida em todas as suas formas, o processo ambiental, indiscutivelmente, deve estar organizado para o cumprimento dessa finalidade específica. Existe sempre, como se costuma dizer na doutrina do Direito Processual, a necessidade de plena aderência do processo às características e às necessidades do direito material a ser protegido[5], que, no caso ora examinado, se destina à efetiva proteção do meio ambiente.

Por essa razão, a aplicação das normas do novo CPC ao processo coletivo ambiental só pode ter lugar para aperfeiçoar a disciplina do processo coletivo ambiental como instrumento de tutela do Direito Ambiental e de proteção do meio ambiente; nunca para enfraquecer esse microssistema de processo coletivo. Essa é a premissa fundamental na matéria.

No que se refere ao tema da distribuição do ônus da prova, propriamente, vale mencionar, de início, que o novo CPC manteve a regra tradicional do Direito brasileiro, no sentido de que ao autor da demanda incumbe a prova do fato constitutivo do seu direito e, ao réu, a prova da existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor (artigo 373, caput). Tal é a denominada distribuição estática do ônus da prova, ou seja, distribuição do ônus da prova previamente definida pelo legislador, independentemente das peculiaridades do caso concreto, a partir, ainda, da posição da parte na relação processual[6].

Entretanto, o legislador de 2015 foi mais longe na matéria, ao admitir, de maneira expressa, a distribuição dinâmica do ônus da prova, em virtude das peculiaridades da causa (artigo 373, parágrafo 1º), ao lado ainda das hipóteses legais de inversão do ônus da prova[7].

A atribuição diversa do ônus da prova, fundada no artigo 373, parágrafo 1º, acima referido, tem lugar quando (i) for impossível ou excessivamente difícil à parte sobre a qual recairia normalmente o ônus da prova cumprir o encargo, ou (ii) for mais fácil à outra parte a produção da prova do fato contrário. Ademais, a distribuição dinâmica do ônus probatório está sujeita a três condições legais: (i) decisão fundamentada do juiz; (ii) concessão de oportunidade à parte a quem incumbir o encargo de dele se desincumbir; (iii) impossibilidade de a atribuição diversa do ônus da prova gerar, para a parte sobre a qual o ônus passa a recair, um encargo impossível ou excessivamente difícil.

Essa regra tem aplicação, por certo, ao processo coletivo ambiental, ao lado das hipóteses de inversão do ônus da prova admitidas pelo ordenamento jurídico[8].

Registre-se, no ponto, que o Superior Tribunal de Justiça, antes mesmo da alteração legislativa trazida pelo novo CPC, já havia decidido que, em matéria ambiental, têm incidência a inversão do ônus da prova, com base no artigo 6º, VIII, do CDC ou nos princípios da precaução e do in dubio pro natura, bem como a distribuição dinâmica do ônus da prova, em função das especificidades do caso concreto[9].

Portanto, tem-se, hoje, no processo coletivo ambiental[10]:

(a) a incidência da regra do artigo 373, caput, do novo CPC, a respeito da distribuição do ônus da prova; distribuição estática, com o ônus da prova previamente definido na lei — é, ainda, a regra geral;

(b) a possibilidade de inversão do ônus da prova, pela aplicação da norma do artigo 6º, VIII, do CDC ou dos princípios da precaução e do in dubio pro natura; e

(c) a possibilidade de distribuição dinâmica do ônus da prova, com fundamento no artigo 373, parágrafo 1º, do novo CPC, em função das peculiaridades da causa.

Como se sabe, as normas relativas à distribuição dos ônus probatórios cumprem dupla finalidade no processo civil e, bem assim, no processo coletivo ambiental.

De um lado, servem como guia às partes a respeito da necessidade de prova de suas alegações de fato e como advertência sobre os riscos decorrentes de não se desincumbirem desse encargo. De outro lado, servem, também, de guia ao juiz, frente a situação de dúvida invencível no tocante às alegações de fato, após a instrução do feito, a fim de permitir a solução da controvérsia[11].

Ressalve-se, porém, que a dúvida, suscetível de autorizar o emprego das regras sobre a distribuição do ônus da prova, deve ser analisada à luz da convicção judicial exigida do magistrado no caso concreto[12]. Nesse sentido, considerado suficientemente esclarecido o fato controvertido, a partir da prova produzida e do convencimento judicial exigido na hipótese, desnecessário será, em princípio, no momento do julgamento, o recurso às regras concernentes à distribuição do ônus da prova — estática ou dinâmica — ou à inversão do ônus da prova, já que não se estará em real estado de dúvida ou de carência probatória.

Isso é particularmente verdadeiro, por exemplo, nas demandas coletivas de responsabilidade civil por danos ambientais, em que, na avaliação da prova do dano e do nexo causal, se impõe, frequentemente, a adoção de juízo de simples verossimilhança, calcado em probabilidade, sem que se possa exigir certeza absoluta. A certeza exigida, na matéria, é sempre uma certeza relativa[13].

O mesmo se pode dizer quando se estiver diante da aplicação do princípio da precaução, em que, normalmente, o acertamento judicial se dá com base em juízo de credibilidade, fundado na mera plausibilidade, dada a incerteza insuperável que envolve as situações ensejadoras da incidência de tal princípio[14].

Em hipóteses como as acima descritas, comprovada a verossimilhança ou a credibilidade do dano ao meio ambiente e/ou do nexo causal entre a atividade lesiva e aquele, não se fará necessário, a rigor, o emprego das regras concernentes à atribuição diversa ou à inversão do ônus probatório para o julgamento de procedência da demanda, diante da suficiência da prova produzida, à luz da convicção judicial exigida. Nesses casos, o encargo do réu de demonstrar, de maneira cabal, a inexistência da degradação ambiental ou da relação de causalidade desta com a atividade reputada danosa resulta da própria regra do artigo 373, caput, do CPC, como fato impeditivo do direito do autor, e não propriamente da atribuição diversa ou da inversão do ônus da prova.

Aspecto interessante a ser, por fim, ressaltado é o de que a aplicação da regra geral do artigo 373, caput, do novo CPC não depende, em princípio, de prévia decisão judicial, já que ela está previamente definida na lei. Trata-se de autêntica regra de julgamento. Aqui, o juiz vai poder aplicar o disposto no artigo 373, caput, do CPC no momento do julgamento, sem necessidade de prévia advertência às partes a esse respeito, uma vez que autor e réu na demanda coletiva ambiental sabem, de antemão, o que cada um deve provar.

Nada impede, é evidente, que o juiz, no curso do procedimento, se pronuncie sobre a questão e informe as partes de que será aplicada ao caso a regra geral. Seria, inclusive, conveniente que o fizesse, dentro da ideia de permanente diálogo e cooperação que o juiz deve manter com as partes no processo civil (artigos 6º e 357, III, do novo CPC), notadamente quando se estiver diante de causas em que bastará convicção de verossimilhança (para concessão de tutelas preventiva e reparatória) ou de credibilidade (para concessão de tutela de precaução) em vista do acolhimento da pretensão.

Já a inversão do ônus da prova, fundada, de acordo com o STJ, no artigo 6º, VIII, do CDC ou nos princípios da precaução e do in dubio pro natura, e a atribuição diversa do ônus da prova, calcada na norma do artigo 373, parágrafo 1º, do novo CPC, diversamente, dependem sempre de prévia e expressa decisão judicial, a partir dos critérios previstos na lei, com oportunidade ao réu de se desincumbir do encargo que sobre ele passa a recair. Nessa matéria, está-se diante de regras de procedimento[15] ou de instrução[16], e não de simples regras de julgamento[17]. Ou seja: o réu não pode ser surpreendido, na prolação da sentença, por decisão desfavorável, amparada na inversão do ônus da prova ou na atribuição diversa do ônus probatório, sem que lhe tenha sido franqueada, previamente, a possibilidade de cumprir o encargo.


[1] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo. 10ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 47-60 e 110.
[2] BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 88-89; DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes, op. cit., p. 53-56.
[3] RODRIGUES, Marcelo Abelha. "Tutela jurídica do meio ambiente, Lei de Ação Civil Pública e novo Código de Processo Civil". Revista do Advogado, n. 133, março/2017, p. 139-142. O autor, no entanto, considera o microssistema de processo coletivo em vigor obsoleto e ultrapassado em comparação com o sistema do CPC.
[4] PRIEUR, Michel. Droit de l’environnement. 2ª ed. Paris: Dalloz, 1991, p. 08-09.
[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 240-241; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: Influência do Direito Material sobre o Processo. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 42-46 e 65; DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Novo Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 55; MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica Processual e Tutela dos Direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 145-149.
[6] DALL’AGNOL JUNIOR, Antonio Janyr. "Distribuição dinâmica dos ônus probatórios". Revista dos Tribunais, v. 788, p. 93-95. Ver, ainda, MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 395, comentário nº 5 ao artigo 373 (os autores referem-se à distribuição “fixa” do ônus da prova).
[7] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 395-396, comentário nº 5 ao artigo 373.
[8] RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo Civil Ambiental. 4ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 233 e ss; SARAIVA NETO, Pery. A Prova na Jurisdição Ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 135 e ss. Para uma visão crítica, ver CARVALHO, Ricardo Cintra Torres de. "A prova na ação civil pública". Revista do Advogado, n. 133, março/2017, p. 189-194.
[9] STJ – 1ª T. – REsp 1.049.822/RS – j. 23/4/2009 – rel. min. Francisco Falcão (inversão do ônus da prova com base no artigo 6º, VIII, do CDC); STJ – 2ª T. – REsp 883.656/RS – j. 9/3/2010 – rel. min. Herman Benjamin (inversão do ônus da prova com base no artigo 6º, VIII, do CDC e nos princípios da precaução e do in dubio pro natura e atribuição diversa do ônus da prova fundada na teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova); STJ – 2ª T. AgRg no REsp 1.192.569/RJ – j. 19/10/2010, rel. mn. Humberto Martins (inversão do ônus da prova com base no princípio da precaução); STJ – 2ª T. – REsp 972.902/RS – j. 25/8/2009 – rel. min. Eliana Calmon (inversão do ônus da prova com base no artigo 6º, VIII, do CDC e no princípio da precaução); STJ – 2ª T. – REsp 1.060.753/SP – j. 1º/12/2009 – rel. min. Eliana Calmon (inversão do ônus da prova com base no princípio da precaução).
[10] SALTZ, Alexandre Sikinowski. "O ônus da prova nas ações ambientais: inversão e distribuição dinâmica como técnicas de efetivação do direito fundamental ao ambiente adequado", p. 14-22, texto inédito gentilmente cedido pelo autor.
[11] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 395, comentário nº 2 ao artigo 373. No mesmo sentido, BUENO, Cassio Scarpinella, op. cit., p. 351.
[12] Sobre o tema, ver MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. "Prova". Revista dos Tribunais, 2009, p. 159-162; 204-215.
[13] GOLDENBERG, Isidoro H.; CAFFERATTA, Néstor. Daño ambiental: problemática de su determinación causal. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2001, p. 31-33; BIBILONI, Héctor Jorge. El processo ambiental: objeto, competência, legitimación, prueba, recursos. Buenos Aires: Lexis Nexis Argentina, 2005, p. 340-341; MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, Processo Civil e Defesa do Meio Ambiente, cit., p. 428-430. Trata-se da denominada certeza suficiente, utilizada como critério para a concessão de tutelas jurisdicionais, especialmente quando se está diante dos chamados “casos altamente complexos”, em que a prova de determinados fatos é particularmente difícil ou em que os fatos estão sujeitos a controvérsias científicas, obstáculos esses suscetíveis de superação com base em juízos de probabilidade (MORELLO, Augusto M. El processo civil moderno. La Plata: Libreria Ed. Platense, 2001, p. 370-375; GOLDENBERG, Isidoro H.; CAFFERATTA, Néstor, op. cit., p. 46; MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, Processo Civil e Defesa do Meio Ambiente, cit., p. 429-430).
[14] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. "Tutelas jurisdicionais de prevenção e de precaução no processo coletivo ambiental". Revista do Advogado. São Paulo: AASP, março/2017, n. 133, p. 09-17; Participação, Processo Civil e Defesa do Meio Ambiente, cit., p. 436-437.
[15] BUENO, Cassio Scarpinella, op. cit., p. 351.
[16] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 397, comentário nº 8 ao artigo 373.
[17] No mesmo sentido, CAMBI, Eduardo. A Prova Civil: Admissibilidade e Relevância. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 418-421.

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    é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

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