Interesse Público

Estabilidade no serviço público é regra ou exceção?

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3 de agosto de 2017, 8h05

Spacca
No atual momento de grave crise institucional e financeira, no qual não faltam notícias relevantes e intrigantes, singela reportagem chamou minha atenção: trata-se do advento da Lei mineira 22.618, de 26/7/2017, que extinguiu 825 cargos efetivos de analistas do Ministério Público de Minas Gerais e, simultaneamente, criou 800 cargos em comissão para assessoria de promotores e procuradores de Justiça[1]. Os textos jornalísticos noticiaram a sanção da referida lei pelo governador Fernando Pimentel (PT), o que o tornou um alvo da ira dos leitores. Nesse particular, convém relembrar que o Ministério Público detém a iniciativa privativa para iniciar o processo legislativo para criação dos seus cargos, incluindo a organização dos serviços auxiliares. Trata-se de importante corolário da autonomia do Ministério Público, que neste particular não se submete à iniciativa geral do Executivo no que diz respeito à criação de cargos e organização dos serviços públicos.

A questão central da notícia, entretanto, é outra: a administração pública (incluo na expressão todos os poderes quando no exercício de função administrativa, como, no caso, o MP-MG) é livre para trocar servidores efetivos — e, como tais, concursados — por comissionados? Trata-se de opção puramente discricionária, que reconhece à autoridade ampla margem de atuação para escolher o que entende mais adequado para o interesse público? Essas perguntas vieram à minha mente após ler o comentário de um leitor (internauta?), em portal de notícias, dizendo que a medida era importante porque o Estado não consegue “mandar embora o concursado, que possui estabilidade, que não quer trabalhar”.

Já dediquei meu espaço nesta coluna diversas vezes aos cargos em comissão[2] e confesso que não desanimo ao ver que continuam rendendo assunto. Reitero: “A importância do cargo em comissão é tamanha que a Constituição expressamente delimitou seu campo objetivo de atuação: destinam-se apenas ao desempenho de atribuições de direção, chefia e assessoramento (artigo 37, inciso V). A peculiaridade verificada na redação da regra constitucional é que os termos utilizados possuem significados aproximados, talvez complementares, o que impede uma conceituação precisa: a) chefia evoca autoridade, poder de decisão e mando situado em patamar hierarquicamente superior na estrutura da organização; b) direção liga-se a comando, liderança, condução e orientação de rumos, gerenciamento; c) assessoramento envolve atividades auxiliares de cunho técnico e especializado”.

Cargos em comissão são excepcionais, pois fundados na relação de confiança entre nomeante e nomeado para o exercício de atividades de direção, chefia e assessoramento. Não há como se exigir concurso público para cargos em comissão porque o parâmetro confiança é insuscetível de apuração mediante procedimento seletivo. No tocante à lei mineira, não há dúvida de que há enquadramento material das atribuições dos cargos criados aos limites constitucionais — trata-se da atividade de assessoria, envolvendo atividades de cunho técnico em auxílio de atividades-fim, exercitadas em nome próprio. Simplificando, dentre outras atribuições, o assessor elabora atos variados que serão verificados e assinados pelo promotor de Justiça.

Não nego que seja difícil descaracterizar a relação de confiança no exercício dessas atribuições. Entretanto, o cargo em comissão não é a única alternativa: a criação de funções de confiança permitiria igualmente o exercício de tais atribuições, pautadas na confiança, mediante livre provimento entre servidores efetivos/concursados. Na Justiça Federal, por exemplo, os juízes não possuem assessores comissionados, livremente escolhidos e exonerados — ao contrário, são assessorados por analistas judiciários, concursados, que podem exercer funções de confiança nos respectivos gabinetes. Na comparação entre as duas possibilidades, retomo o comentário do leitor antes referido: a estabilidade seria o atributo instabilizador, apto a permitir desempenho aquém do esperado, acomodação, alienação e leniência no serviço público?

Em momentos de crise econômica, nos quais empregos privados são perdidos e gastos são cortados, é vital entender o sentido e os objetivos da estabilidade. Já utilizei este mesmo espaço para escrever que a estabilidade não é privilégio do servidor, mas garantia da sociedade. “Essas garantias objetivam justamente assegurar o desempenho eficiente e impessoal do servidor público das mudanças de estilo, humor, prioridade e probidade dos agentes políticos. A Constituição assegura ao servidor estável, dentre outros, os direitos de não ser exonerado (artigo 41, parágrafo 1º); de não ter a sua remuneração reduzida (artigo 37, inciso XV) ou corroída pela inflação (artigo 37, inciso X), além de aposentadoria em condições mais favoráveis do que as vigentes para os trabalhadores em geral. Sem meias palavras, a Constituição fornece todas as garantias para que o servidor efetivo trabalhe para bem servir a sociedade, sem se preocupar com perseguições ou retaliações em razão de eventualmente contrariar pedidos e ordens que ofendam o interesse público. O servidor público que atenta contra o público o faz por falta de caráter, não por falta de regras protetivas”[3].

Estabilidade, pode-se afirmar, não é presente do Estado para quem não cumpre suas obrigações, sequer garantia de fonte de renda sem contraprestação laboral.

A Constituição admite a perda do cargo do servidor estável, inicialmente, em virtude de sentença judicial transitada em julgado (artigo 41, parágrafo 1º, I). Isso pode ocorrer, por exemplo, como efeito de condenação penal ou em improbidade administrativa. A Constituição também admite a perda do cargo mediante processo administrativo, em que seja assegurada ampla defesa ao servidor. A desídia no exercício das atribuições do cargo, por exemplo, costuma ser prevista como falta disciplinar punível com demissão em diversos estatutos jurídicos, bastando para tanto a correta realização de processo administrativo. De acordo com dados da CGU[4], no serviço público federal em 2016 ocorreram 445 demissões de servidores efetivos; 65 cassações de aposentadorias (recorde no comparativo dos últimos seis anos); e 40 destituições de ocupantes de cargos em comissão. O principal motivo das expulsões foi a prática de atos relacionados à corrupção, mas também abandono de cargo, inassiduidade, acumulação ilícita de cargos, proceder de forma desidiosa e participação em gerência ou administração de sociedade privada. Finalmente, a última hipótese constitucional de perda do cargo do servidor estável é a avaliação periódica de desempenho, que ainda depende de regulamentação, na forma de lei complementar.

De qualquer forma, ainda que sejam complexos e provavelmente lentos, existem meios jurídicos para perda do cargo do servidor estável que não cumpre suas obrigações. Ocorre que também existe acomodação e cumplicidade de chefes que não querem enfrentar os naturais desgastes desse enfrentamento e, por tal razão, impõem essa fatura para a sociedade — suportar o fardo de um servidor que não serve bem o público, muito embora receba para tanto.

Retomados os fundamentos e objetivos da estabilidade, é necessário rediscutir sua extensão. Em se tratando de garantia contra pressões políticas indevidas e também da continuidade de políticas de Estado, pode-se perguntar se há sentido em se admitir a estabilidade como regra para todo e qualquer cargo público. Há sentido em atribuir estabilidade para o exercício de qualquer atribuição, seja ela especializada ou não, sujeita ou não a eventual ingerência política? Há necessidade desse atributo para os cargos que importam no exercício de atribuições materiais, repetitivas, comuns? Seria necessário discutir uma flexibilização do regime jurídico para buscar meios alternativos de garantir eficiência e imun idade às pressões políticas, de acordo com as atribuições de cada carreira? Perguntas intrigantes, que prometo enfrentar em outro artigo.

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