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Adicional de ICMS para o combate à pobreza não cessa de gerar polêmica

Autor

  • Igor Mauler Santiago

    é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

2 de agosto de 2017, 10h55

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A Emenda Constitucional 31/2002 instituiu, no âmbito da União, o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, destinado a vigorar até o ano de 2010 e depois prorrogado por tempo indeterminado pela EC 67/2010 (artigos 79 a 81 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Dentre as suas fontes de receita consta um adicional de 5% do IPI incidente sobre produtos supérfluos (ADCT, artigo 80, inciso II).

A mesma EC 31/2002 permitiu aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criarem os seus próprios Fundos de Combate e Erradicação da Pobreza, para tanto autorizando-os a imporem adicionais de até 2% do ICMS e de até 0,5% do ISS, a incidirem sobre produtos e serviços supérfluos (artigo 82, caput e parágrafos 1º e 2º, do ADCT).

Nos termos do artigo 83 do ADCT, em sua redação original (dada pela EC 31/2002), lei ordinária federal definiria os produtos e serviços supérfluos para os fins acima mencionados.

Antes que fosse editada essa lei federal, muitos Estados instituíram os seus fundos e os seus adicionais, incorrendo em clara inconstitucionalidade. Visando a saná-la, a EC 42/2003 substituiu, apenas para o adicional de ICMS, a exigência de lei ordinária por lei complementar (nova redação dos artigos 82, parágrafo 1º, e 83 do ADCT) e, principalmente (artigo 4º), declarou convalidados até o ano de 2010 os adicionais até então criados pelos Estados e pelo Distrito Federal em desacordo com a própria EC 42/2003, com a EC 31/2002 ou com lei complementar de normas gerais.

Essa ratificação retroativa — incompatível com a noção geral de que inconstitucionalidades não se remedeiam, aliás consagrada na jurisprudência do STF (vale lembrar o julgamento em que este negou à EC 20/98 poderes para salvar a ampliação da base de cálculo do PIS e da Cofins levada a cabo pela Lei 9.718/98) – foi inexplicavelmente aceita pelo Supremo na ADI 2.869/RJ, transitada em julgado após decisão monocrática do Ministro Ayres Britto (DJ 13.05.2004).

Seja como for, a indulgência, por expressa previsão do art. 4º da EC 42/2003, aplica-se somente aos adicionais decorrentes de leis publicadas até 19 de dezembro de 2003. A partir de então, o novo parâmetro trazido por esta — definição de produtos supérfluos por lei complementar — precisa ser respeitado.

Ora bem: tal diploma nunca foi editado, a tanto não equivalendo a Lei Complementar 111/2001, por ser anterior à modificação constitucional em causa e por ser específica para o fundo federal de combate à pobreza.

Padecem, assim, de inconstitucionalidade formal as leis estaduais supervenientes que pretenderam instituir o adicional do ICMS, caso da recente Lei 4.454/2017, do estado do Amazonas.

Acaso superada essa objeção, cumprirá definir a natureza jurídica da exigência, para identificar o respectivo regime jurídico. A questão é singela, tendo em vista que todo tributo adicional tem a mesma natureza daquele que lhe serve de referência.

Podemos invocar como exemplos: o Adicional Estadual do Imposto de Renda (CF, artigo 155, inciso II, depois revogado pela EC 3/93), o adicional de 10% de IRPJ sobre a parcela do lucro que exceder R$ 20 mil por mês (Lei  9.249/95, artigo 3º, parágrafo 1º), o adicional de Cofins-Importação para os produtos beneficiados, no mercado interno, pela desoneração da folha de pagamentos (Lei 12.546/2011, artigo 21) e o adicional federal ao Imposto de Herança objeto da PEC 96/2015, para ficarmos apenas nos exemplos mais recentes.

Aqui não seria diferente, sendo evidente que o adicional de ICMS para o fundo de combate à pobreza não é outra coisa senão ICMS. O texto do artigo 82 do ADCT reforça esta conclusão, quando alude a simples acréscimo de alíquota, atestando que, no mais, não há nenhuma diferença estrutural entre o imposto originário e o seu adicional.

As conclusões até aqui expostas são referendadas por preciso acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, que (i) declara ser competência privativa da União definir os produtos supérfluos passíveis do adicional e (ii) caracteriza-o como imposto cuja receita, excepcionalmente, pode ser afetada (Pleno, MS 0368/2004, Relator Desembargador Manoel Cândido Filho, DJ 23.02.2005)

O regime jurídico a ser considerado é, portanto, aquele aplicável ao ICMS. Duas conclusões se impõem. Primeiro a de que, sendo instituído por lei estadual, o adicional só pode atingir as operações cuja alíquota é definida por este mesmo instrumento. E estas são apenas as internas, pois as alíquotas das operações interestaduais são fixadas diretamente por resolução do Senado Federal (CF, artigo 155, parágrafo 2º, inciso IV).

Tal “reserva de resolução do Senado Federal para determinar as alíquotas do ICMS para operações interestaduais” foi afirmada pelo STF na ADI 4.565-MC/PI (Pleno, relator ministro Joaquim Barbosa, DJe 27/6/2011).

Só as alíquotas internas, repita-se, estão sujeitas à deliberação das Assembleias Legislativas, as quais gozam no particular de liberdade muito ampla — ficando sujeitas apenas:

(i) à alíquota mínima acaso fixada pelo Senado (CF, artigo 155, parágrafo 2º, inciso V, alínea a), competência que este ainda não exerceu;

(ii) à alíquota máxima eventualmente definida pelo Senado para a solução de conflito federativo (CF, artigo 155, parágrafo 2º, inciso V, alínea b), o que também nunca ocorreu; e

(iii) a piso equivalente à alíquota interestadual (CF, artigo 155, parágrafo 2º, inciso V, alínea c).

Estender o adicional às operações interestaduais seria o mesmo que autorizar a lei estadual a alterar resolução do Senado Federal, o que não se concebe.

Isso posto, cabe agora perquirir se o adicional poderia incidir sobre as vendas internas de insumos industriais. A resposta é negativa, pois essencial e supérfluo são qualificações aplicáveis aos produtos destinados ao consumidor final, ligadas que estão ao maior ou menor vínculo com as suas necessidades básicas. Para a indústria, todo insumo é essencial, na medida em que não pode operar na ausência de qualquer deles.

Ressalte-se, por fim, que a exigência do adicional, onde admitida, terá de respeitar a anterioridade anual, e não apenas a noventena — como quer, por exemplo, a lei amazonense —, por força do artigo 150, inciso III, alínea b, da Constituição. Isso porque, repita-se, o adicional é ICMS, devendo obediência às mesmas regras constitucionais que se impõem a este.

O combate à pobreza é uma causa nobre. Mas mesmo as causas nobres, e sobretudo estas, devem ser perseguidas nos estritos limites da Constituição.

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    é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

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