Opinião

Legislativo não pode delegar ao Executivo alteração de tributos

Autores

  • Maurício Pereira Faro

    é sócio de Barbosa Müssnich e Aragão Advogados mestre em Direito pela Universidade Gama Filho professor dos cursos de pós-graduação da PUC-RJ e FGV-RJ e presidente da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB-RJ.

  • Bernardo Motta Moreira

    é advogado em Belo Horizonte mestre e bacharel em Direito pela UFMG. Professor do Centro Universitário UNA e das Faculdades Milton Campos.

1 de agosto de 2017, 6h59

Os brasileiros ficaram surpresos com a publicação do Decreto Federal 9.101, de 20 de julho de 2017 (DOU de 21 de junho de 2017), que aumentou as alíquotas da contribuição para o PIS/Pasep e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), incidentes sobre a importação e a comercialização de gasolina, óleo diesel, gás liquefeito de petróleo, querosene de aviação e álcool.

Como a majoração se deu por mero decreto e passou a vigorar de imediato, vários tributaristas de respeito se insurgiram contra a regra, sustentando que ela violaria os princípios da legalidade e da anterioridade tributária. Sem prejuízo dessas questões, chamou-nos atenção o fato de que, na realidade, o Poder Executivo não “aumentou” as contribuições, mas “restabeleceu” as alíquotas previstas em lei.

Com efeito, o malfadado decreto tem lastro no § 5º do artigo 23 da Lei 10.865/2004 e no § 8º do artigo 5º da Lei 9.718/1998, que haviam autorizado o Poder Executivo “a fixar coeficientes para redução das alíquotas previstas” para o PIS/Cofins e PIS/Cofins-importação “as quais poderão ser alteradas, para mais ou para menos”.

Autorizado pelas leis, o Poder Executivo havia fixado reduções de contribuições sobre as operações em tela. Também baseado na mesma autorização legislativa, o que fez o Executivo agora foi deixar de prever as reduções de alíquota como havia feito, ocasionando a questionada “majoração”.

A questão que vem à tona é: essa autorização do Poder Legislativo para que o Poder Executivo reduza tributos — e, quando bem quiser, os restabeleça — tem respaldo constitucional?

No pedido de suspensão da liminar concedida nos autos da Ação Popular 1007839-83.2017.4.01.3400, que havia suspendido a majoração em discussão, a União aduziu a possibilidade de a lei estabelecer a alíquota máxima de um tributo e permitir que o decreto a reduza e restabeleça, o que teria sido confirmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 838.284. Argumentou, ainda, que a doutrina pátria (Ricardo Lobo Torres e Sérgio Andre Rocha) ensina que, ante o crescimento das atividades atribuídas ao Poder Executivo, houve a superação da supremacia do Poder Legislativo.

De fato, não se pode negar que a sociedade moderna impõe a ascensão do Poder Executivo, que, inclusive, concentra o poder de decisão tributário a partir da notória interferência na elaboração das leis.[1] Ocorre que, sob pena de violação do princípio da separação dos poderes, a tarefa de criar a norma é do Poder Legislativo, e, em matéria de benefícios tributários, a lei meramente autorizativa transgride dispositivo específico, positivado na Carta Maior.

O § 6º do artigo 150 da Constituição da República, estabelece que qualquer subsídio, isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão relativos a impostos, taxas ou contribuições só poderão ser concedidos mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as exonerações fiscais mencionadas, ou o correspondente tributo ou contribuição.

O legislador constituinte estabeleceu a reserva absoluta de lei em sentido formal para a concessão de benefícios fiscais, ou seja, o tratamento da referida matéria só pode ser veiculado por normas que derivem de fonte parlamentar. Isso quer dizer que é vedado ao Poder Legislativo conferir a outro órgão a prerrogativa que lhe é constitucionalmente atribuída de conceder exonerações fiscais, sob pena, como dito, de transgressão do princípio da separação dos Poderes. Esse entendimento restou consagrado no STF, conforme se observa da ADI 1296 MC, relatado pelo ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 14/6/1995, DJ 10/8/1995.[2]

Segundo Misabel Derzi, o ditame constitucional consagra a (a) exclusividade da lei tributária para conceder quaisquer exonerações, subsídios e outros benefícios, redutores, extintivos ou excludentes do crédito tributário, com o que se evitam as improvisações e os oportunismos por meio dos quais, sub-repticiamente, certos grupos parlamentares introduziam favores em leis estranhas ao tema tributário, aprovadas pelo silêncio ou desconhecimento da maioria e (b) especificidade da lei tributária, vedando-se fórmulas indeterminadas ou delegantes de favores fiscais ao Poder Executivo.[3]

Ademais, a ideia de domínio normativo exclusivo da lei formal, em se tratando de matéria tributária, é complementada pela regra posta no artigo 97, inciso II, do Código Tributário Nacional, segundo o qual somente lei pode estabelecer, entre outras matérias, a majoração de tributos ou sua redução. Assim, reforça-se o entendimento de que é inviável ao legislador prever leis meramente delegantes ou autorizativas para que o Executivo crie determinada redução de tributos. A matéria tributária benéfica, assim como a majoração e criação de tributos, está submetida a expressa reserva legal, exigindo lei formal para a sua disciplina.

A matéria julgada no RE 838.284, trazido pela União, se referia à aplicação do princípio da legalidade tributária à taxa, oportunidade em que a corte flexibilizou sua aplicação, ao admitir que a lei formal indique o valor máximo do tributo, com o que se propicia seja ele mais adequadamente quantificado pelo órgão regulamentar competente, baseado em estudos técnicos, atendendo-se melhor aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da capacidade contributiva.

Na espécie, deve prevalecer o entendimento do STF segundo o qual as leis que veiculam, sob a forma de autorização ao Poder Executivo, reduções e benefícios tributários, são inconstitucionais, eis que inadmissível tal delegação legislativa nesse caso. Utilizando novamente as palavras de Misabel Derzi, ao menos no que toca à matéria tributária, “apenas o legislador pode avaliar os superiores interesses da coletividade que venham a legitimar a isenção ou a sua revogação”.[4]

A confusão gerada pela “majoração” de tributos realizada “de surpresa” pelo Governo Federal não ocorreria se o papel constitucional dos Poderes estivesse sendo devidamente cumprido.


[1] BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. A “governamentalização” do poder de decisão tributário. In: SCHOUERI, Luís Eduardo (coordenador). Direito tributário – Homenagem a Alcides Jorge Costa. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 419.

[2] Observe-se que o entendimento pela impossibilidade de intervenção de outra fonte de direito que não a lei em tema de exonerações fiscais é o adotado pelo STF. Confira-se: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI ESTADUAL QUE OUTORGA AO PODER EXECUTIVO A PRERROGATIVA DE DISPOR, NORMATIVAMENTE, SOBRE MATÉRIA TRIBUTÁRIA – DELEGAÇÃO LEGISLATIVA EXTERNA – MATÉRIA DE DIREITO ESTRITO – POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES – PRINCÍPIO DA RESERVA ABSOLUTA DE LEI EM SENTIDO FORMAL […] – A essência do direito tributário – respeitados os postulados fixados pela própria Constituição – reside na integral submissão do poder estatal a rule of law. A lei, enquanto manifestação estatal estritamente ajustada aos postulados subordinantes do texto consubstanciado na Carta da Republica, qualifica-se como decisivo instrumento de garantia constitucional dos contribuintes contra eventuais excessos do Poder Executivo em matéria tributaria. Considerações em torno das dimensões em que se projeta o princípio da reserva constitucional de lei. – A nova Constituição da República revelou-se extremamente fiel ao postulado da separação de poderes, disciplinando, mediante regime de direito estrito, a possibilidade, sempre excepcional, de o Parlamento proceder a delegação legislativa externa em favor do Poder Executivo. […] A vontade do legislador, que substitui arbitrariamente a lei delegada pela figura da lei ordinária, objetivando, com esse procedimento, transferir ao Poder Executivo o exercício de competência normativa primaria, revela-se irrita e desvestida de qualquer eficacia jurídica no plano constitucional. O Executivo não pode, fundando-se em mera permissão legislativa constante de lei comum, valer-se do regulamento delegado ou autorizado como sucedâneo da lei delegada para o efeito de disciplinar, normativamente, temas sujeitos a reserva constitucional de lei. – Não basta, para que se legitime a atividade estatal, que o Poder Público tenha promulgado um ato legislativo. Impõe-se, antes de mais nada, que o legislador, abstendo-se de agir ultra vires, não haja excedido os limites que condicionam, no plano constitucional, o exercício de sua indisponível prerrogativa de fazer instaurar, em caráter inaugural, a ordem jurídico-normativa. Isso significa dizer que o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado – como o Poder Executivo – produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar. […]” (ADI 1296 MC, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 14/06/1995, DJ 10/08/1995).

[3] DERZI, Misabel Abreu Machado. Atualização. In: BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 148. Pelo magistério da professora, “a lei não pode mais autorizar a autoridade administrativa a conceder remissão de forma indeterminada e discricionária, como dispõe o art. 172 do Código Tributário Nacional, sem definir com precisão a oportunidade, as condições, a extensão e os limites quantitativos do seu alcance. Sem validade, portanto, o artigo, à luz da citada Emenda Constitucional n. 03/1993”, que deu a nova redação do § 6º do art. 150 da Constituição, ora comentado.

[4] DERZI, Misabel Abreu Machado. Atualização. In: BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 147.

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    é advogado tributarista do escritório Barbosa, Müssnich & Aragão Advogados. Ex-conselheiro titular da 1ª Seção do Carf; professor dos cursos de Pós-Graduação da UCAM, PUC-RJ e FGV/RJ; e presidente da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB-RJ.

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    é advogado em Belo Horizonte; conselheiro titular da 3ª Seção de Julgamento do Carf; consultor efetivo da Assembleia Legislativa de Minas Gerais; mestre em Direito pela UFMG; professor da Pós-Graduação da PUC-Minas e do bacharelado em Direito do Centro Universitário UNA.

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