Diário de Classe

Por que a Constituição não pode estar na seção de periódicos

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29 de abril de 2017, 8h05

Spacca
Consta do repertório jurídico internacional a seguinte (e velha) anedota: um sujeito chega a uma biblioteca e faz um pedido ao bibliotecário: "Por favor, veja-me um exemplar da Constituição francesa". Ao que o funcionário lhe responde: "Desculpe-me, senhor, mas nesta biblioteca não possuímos uma seção de periódicos…"1.

Essa historieta aparece em um livro sobre a resistência (poder-se-ia falar em uma “resiliência”) das Constituições em Estados nacionais democráticos, escrito por Zachary Elkins, Tom Ginsburg e James Melton. Evidentemente, refere-se ao notório fato de que a França, desde 1791, foi regida por, nada mais, nada menos, do que 15 diferentes textos constitucionais.

Em contraponto, os Estados Unidos possuem uma Constituição bicentenária. Por quê?, perguntam os autores. O livro pretende criar um aporte teórico para observar esse fenômeno de morte e vida das Constituições. É possível observar, assim, duas experiências constitucionais — ao menos no plano daquilo que podemos chamar de Constituição em sentido formal — que redundam em práticas políticas distintas: a) a longevidade da Constituição dos Estados Unidos, que apresenta um caráter, de certo modo, conservador com relação às instituições e aos direitos; b) a brevidade e o caráter ruptural (revolucionário?) da experiência francesa.

Esses dois modelos podem ser expandidos e aplicados às diversas experiências constitucionais que se foram sucedendo às “ondas democráticas” de que fala Samuel Huntington. Importante considerar que, não necessariamente, a mesma realidade nacional observará, sempre, o mesmo processo de criação e degeneração de sua Constituição formal.

A própria França possui, desde a Constituição de 1958, uma experiência de consistente estabilidade, contrastante com o tempo de duração de seus textos constitucionais anteriores. Elkins, Ginsburg e Melton elencam uma série de fatores que vão desde as disputas internas entre partidos ou facções até questões ligadas ao ambiente internacional, à tecnologia, à velocidade da informação etc.

Do ponto de vista das ideias políticas, os autores retratam a questão a partir da polarização Madison-Jefferson. Dois “pais fundadores” da república estadunidense e artífices da declaração de independência e da Constituição de 1787. Como se sabe, Thomas Jefferson defendia a ideia de que, para ser fiel à capacidade de autogoverno que o povo deve possuir em uma democracia, a Constituição deveria ser renovada periodicamente para evitar, assim, que uma geração impusesse limites à liberdade ou ao livre governo de outras.

Já James Madison assumia um posição menos radical, afirmando que a preservação de elementos institucionais, de uma geração para a outra, era importante para que a liberdade não sucumbisse em uma guerra intermitente entre partidos.

Não obstante às críticas e movimentações no sentido de relativizar ou alterar a Constituição, a experiência político-jurídica estadunidense acabou por reconhecer razão à posição de Madison. E não pensem, caríssimos leitores, que isso se deu assim como que em meio a um mar tranquilo de posições políticas e ampla aprovação popular. Mesmo uma democracia estável como a estadunidense passou por provações gigantescas — algumas tão graves quanto esta que estamos vivendo aqui em terras brasileiras, embora por motivos distintos.

Vale lembrar a disputa presidencial de 1800 (que, além de expor falhas do sistema eleitoral estabelecido pela Constituição de 1787, acabou por desencadear uma verdadeira batalha pela influência dos partidos que disputaram a eleição dentro do poder Judiciário federal, contexto que preside o famoso caso Marbury v. Madison, julgado pela Suprema Corte em 1803); as disputas em torno da 13ª Emenda; a Guerra de Secessão; a Grande Depressão de 1929 etc.

Ou seja, a Constituição dos Estados Unidos, embora muito mais econômica no quesito “analiticidade de regulação” do que a brasileira de 1988, nunca pôde salvar o país dele mesmo; tampouco foi imune a críticas, paixões partidárias e vilipêndios episódicos por parte dos ocupantes do poder. Mas, a despeito de tudo isso, ela resistiu como um sólido monumento que sobrevive a guerras e bombardeios.

No Brasil, contamos sete Constituições desde a declaração de independência. O chiste do início do texto, de algum modo, também pode ser aplicado à nossa historia constitucional. Mesmo a Constituição de 1988, embora seja imbuída de regras consideráveis que lhe conferem rigidez, já foi emendada mais de 90 vezes. E há mais a caminho. De algum modo, o desejo mudancista parece se sobrepor à precaução de manter-se fiel ao projeto constituinte original.

Afora que, importante consignar, há no Brasil uma tendência para culpar o texto constitucional por problemas que ocorrem na realidade. Sem embargo, o número excessivo de emendas pode ser justificado pelo caráter analítico — talvez demasiado — que a Constituição de 1988 assumiu. Mas, mesmo assim, o quadro essencial, que desenha o Brasil como um verdadeiro Estado Democrático de Direito, permanece.

A despeito disso, volta e meia aparecem, em nosso espaço público de discussões, opiniões e manifestos que querem colocar por terra, no todo ou em parte, a Constituição de 1988. E essa parece ser uma agenda que une tanto a esquerda quanto a direita. É público e notório que, em 2005, partidos de esquerda, encabeçados pelo PT, defenderam a ideia de uma “miniconstituinte exclusiva” para realizar a reforma política (a esquerda, aliás, nunca demonstrou muito apego pela Constituição de 1988. Pelo contrário, a renegou). Em 2013, depois das “jornadas de junho”, os mesmos atores voltaram a martelar essa mesmíssima tecla (ressalte-se que, nas duas ocasiões, um grupo de juristas manifestou-se contra a proposta, em defesa da Constituição de 1988, dentre os quais destacamos, além dos autores desta coluna, Marcelo Cattoni e Martônio Barreto Lima, entre outros).

Recentemente, um grupo de juristas que se situam em um espectro de pensamento político mais à direita começaram a defender o mesmo. Porém, com maior radicalidade. Defendem uma “Assembleia Constituinte Nacional e Exclusiva”.

Todos juristas notáveis. É possível ler uma defesa candente dessa tese no texto de Adilson Abreu Dallari, publicado na coluna “Interesse Público”, aqui mesmo nesta ConJur.

Todavia, sem embargo da respeitabilidade dos subscritores, não é possível concordar com a tese. E ela nem é nova, verdade seja dita. Apenas o que ocorreu foi que encontraram agora um novo pretexto para (re)encampá-la. A questão de que a Constituição onerou demais os cofres públicos por conta do sistema de direitos que criou é um velho cadáver escondido em nosso sótão constitucional. Volta e meia, com o aumento do calor das discussões, volta a exalar mau cheiro.

Nessa toada, saúda-se a oportunidade do texto de 1988 em dar ampla proteção aos direitos civis (ditos individuais), mas condena-se o modelo de direitos sociais por ela guarnecido (sendo que, na maioria dos casos, o “problema” não vem da Constituição, mas da própria realidade política pretérita que, no caso do direito à saúde — para ficar apenas nesse exemplo —, excluía do sistema estatal de proteção todos aqueles cidadãos e cidadãs que estavam fora do mercado formal de trabalho. A Constituição de 1988, como é sabido, igualitarizou o acesso e universalizou a assistência com a criação do SUS. Aqui cabe perguntar: poderia ser diferente? O modelo de financiamento do SUS, que pode ser considerado demasiado oneroso e obsoleto, parece-nos, é matéria para outro tipo de discussão, uma vez que pode ser alterado por meio de reforma constitucional.

Ademais, a ideia de que direitos civis “individuais” são isentos de custos cai por terra quando observamos que liberdade, sem segurança, não existe. A lógica é terrível em casos como esse. E o que falar, então, da implementação do acesso à Justiça; as garantias para proteção da propriedade (que também desaguam em um problema de segurança pública etc.). Enfim, o modo de concretização e desenvolvimento de políticas públicas é sempre um problema aberto e controverso. Mas a questão que fica é: essa disputa para implementar tais direitos justificaria a necessidade de uma nova Constituinte colocando o país em um quadro protorrevolucionário?

Nossa resposta é negativa. Como constitucionalistas, temos um quê de Edmund Burke, e a reforma parece-nos um caminho mais racional do que a revolução.

A questão de que a Constituição de 1988 é fruto de um acordo entre facções ou partidos também é um tema, para nós, superado. Por um motivo muito simples: quando e em quais circunstâncias a aprovação de uma Constituição escrita estaria livre de um embate entre partidos?

Como escreve Madison, no Federalista n. 50, “será de presumir que em qualquer época septenal futura o mesmo Estado estará liberto de partidos? Será de presumir que qualquer outro Estado, no mesmo período ou em qualquer outro período dado, estará isento deles? Um acontecimento destes não devia ser presumido nem desejado, porque uma extinção dos partidos implica necessariamente ou num alarme universal em relação à segurança pública, ou numa extinção absoluta da liberdade”2.

A ideia de que a soberania popular implica uma necessária consulta periódica ao povo sobre o status da Constituição remonta à fórmula Jefferson. Pensamos que, no Brasil, ela já foi testada inúmeras vezes, sempre com resultados ruins. Talvez agora o melhor seja tentarmos seguir Madison, respeitando a Constituição de 1988 com seus erros e acertos.

De se notar que, no mundo real, não é a inexistência de lutas políticas, corrupção, lobbies etc. que caracterizam uma democracia saudável, mas, sim, a sua capacidade de “resiliência”; de manter vivas e regulares as instituições perante todo o caos e os desmandos. Talvez seja essa a principal mensagem do constitucionalismo estadunidense. Fora da Constituição, não há espaço que afiance a sobrevivência democrática das instituições, já nos dizia o mestre Paulo Bonavides. Que assim seja!


1 Cf. Elkins, Zachary. Ginsburg, Tom. Melton, James. The Endurance of National Constitutions. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, kindle edition, p. 1.
2 Madison, James. Federalista n. 50. In: Hamilton, Alexander. Madison, James. Jay, John. Os Federalistas. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011, pp. 461-465.

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