Senso Incomum

O processo penal brasileiro pós-delação segue o modelo do publicitário cool

Autor

27 de abril de 2017, 8h35

Spacca
Depois de ver no que se transformou o Direito Processual pós-delação premiada – Dipropodel –  (eis o mais perfeito réquiem para o processo penal),[1] resolvi rever um esquete do grupo humorista “Porta dos Fundos” (ver aqui) que faz interessantíssima crítica (na verdade, genial!) à nossa “pós-modernidade”, em que perdemos  o fundamento e o DNA entre palavras e coisas, palavras e seus significados. Prato cheio para uma metaforização do direito atual, em que também perdemos a relação entre significante e significado. Tudo (se) pode…!

No esquete, há dois participantes: O publicitário “totalmente cool” e o bispo de uma igreja neopentecostal que necessita de uma campanha para rearranjar a sua igreja que está perdendo fiéis. Reproduzo, de forma aproximada, os diálogos (quem assistiu ao vídeo não precisa ler a transcrição, pulando direto para o restante da coluna:

Diz o Publicitário: “Eu dei uma olhada no livrinho… bacana. Como é o nome? Ah Bíblia. O título não é bom; como título, não vende. Pensei em trocar o nome, tipo 50 tons de Bíblia, Ah, quem mexeu na Bíblia… De qualquer forma, é um bom material. Tem passagens que me fizeram rir muito. Mas é muito longo…”

 

O bspo intervém: “Mas é a história da humanidade.

Mas o publicitário continua: “Mas lá por Mateus tem uma barriga. Isso aqui eu cortaria tudo”, mostrando várias páginas do texto. “Jeremias… E quem é Salmos? Noé…Argh… Eu tiraria o personagem do rapaz!”

Perplexo, o bispo pergunta: “Que rapaz?

E responde o publicitário: “O principal, que diz que é o principal”. Ah, responde o bispo, “Jesus”.

Acrescenta o publicitário: “Não entendi a função dele. Ele não tem carisma…”,  emendando: “Ele é filho de quem mesmo? É tudo rocambolesco, meio mexicano.”

O bispo interrompe novamente: “Na verdade, ele é o personagem principal, o fio condutor…”. E o publicitário ataca: “Ele precisa morrer? E a cruz… Vamos substituir por pneus.” “Mas a história tem dois mil anos”, diz o bispo. “Tá bem. Você quer manter o personagem, OK. Mas, por que Cristo… é esse o nome, não, por que ele tem que ser homem?” “Mas é que…”, gagueja o bispo…

O bispo é interrompido pelo publicitário, que berra: “Quem disse que era um homem? Por que não uma mulher disfarçada de homem, lutando contra o preconceito.

E o bispo: “Mas eu não gostaria de mexer nisso…”.

Volta o publicitário: “A Cleo Pires no papel de Cristo. Isso dá um filme, bispo Carmelo!”. E, chamando a assessoria, diz: “Manda a bíblia para o Duduxa. Mas não mande nesse papel… Manda em papel couchê… Onde se viu um livro com esse tipo de papel fininho?”. E o bispo vai embora, com a cara amarrada.

Bom, o resto aqui não importa. O que importa é a analogia. É assim que funciona “a coisa” hoje.

O “livro” Código de Processo Penal e sua repaginação cool.

Imagino, agora, um diálogo do mesmo publicitário (metaforicamente, o leitor pode imaginar os personagens) tratando do CPP. A exemplo do bispo querendo vender melhor a Bíblia para o mundo cristão, como seria a publicidade do CPP, que também está perdendo “fieis”? Esse “produto” ainda é vendável? O publicitário cool consegue “repaginá-lo”? Vejamos.

Publicitário: “Não gostei. Este livro já tem um problema no nome, isto é, na sua sigla: CPP. Isso é perigoso, porque pode ser um anagrama de PCC. A direita que quer pena de morte e “direitos humanos só para humanos direitos” [parece que foi um promotor de São Paulo quem inventou essa “brilhante” peça publicitária] não vai comprar. Vai odiar. Também é muito extenso. Muitas páginas. Tem de ser menor e de papel couchê.”

E continua o publicitário: “Quanto ao conteúdo, tem coisas que são dispensáveis. Por exemplo: qual é o sentido do art. 212 que diz que as perguntas às testemunhas só podem ser feitas de forma complementar? Alguém está cumprindo isso? Não é juiz quem faz tudo e até mesmo faz o papel do promotor, principalmente se ele já está convencido de que é réu é culpado? Então corta fora. Outra coisa: Devido processo legal – isso é contraproducente em termos de fonética. Devido… Já parece coisas de quem está devendo. O país precisa de crédito. Outra coisa: ampla defesa. Você quer o que? O sujeito comete um crime e você quer vender um livro dizendo que ele tem direito a ampla defesa? E ainda, quando o sujeito é pobre, advogado grátis? Enlouqueceu? Tsk tsk tsk. Sugiro cortar. Na avenida Paulista, por exemplo, a venda será zero”.

Constrangido, diz o professor/cliente, “mas isso é assim em todo mundo”. Um Código de Processo serve para isso; uma Constituição também...”.

Você é quem pensa isso”, retruca o publicitário. “Nós pagamos os impostos – e atualmente já nem conseguimos viajar uma vez por ano à Miami comprar roupas e outros apetrechos cool – e vem um livrinho dizer que todos têm direito à defesa. Falta só me dizer que esse livrinho diz que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado… Ou que condução coercitiva só depois que o sujeito for avisado… Tá de brincadeira. Se você avisar o cara, ele foge… Logo, tem mesmo é que buscar o sujeito na marra.

Timidamente, o professor diz: “Mas, Mister Cool, isto se chama “presunção da inocência”. “É assim que se chama”.

“Corta fora”, diz o publicitário. “Aliás, essa coisa colada ao Código – leis esparsas – como a que proíbe interceptações e vazamentos de diálogos… que coisa mais retrógrada. Na era da informática, qual é o problema? Se o vazamento for para o bem, que mal tem? Melhor é arrumar isso na tal lei. Ah: vou chamar o pessoal da arte para cortar essas coisas tipo ‘embargos’, ‘justa causa’.  Livros com mais de 100 páginas, nem falar”.  

Professor: Mas, senhor, não dá para mudar o teor da lei e nem do que está no livro (Código).

Publicitário: “Que nada. Pode até estar escrito que não pode, mas há uma porção de juízes e tribunais que dizem o contrário. E o Merval Pereira também diz isso. O que mais vale? Vai me dizer que a lei vale mais do que dizem a GloboNews e os tribunais? Você não quer mesmo vender o seu projeto”.

Diz o professor: “Querer eu quero, mas se tirar essas coisas de devido processo legal, presunção da inocência, ampla defesa e requisitos a serem cumpridos para prender por preventiva, condução coercitiva… aí já nem é mais um Código”.

Publicitário: “Foi bom você falar nesse negócio de ‘requisitos para prisão”. Coisa mais brega isso. Não vende. Vamos por no seu lugar algo como “a prisão é obrigatória para quem não quer delatar. Isso é que é cool”.

E o mister cool acrescenta: “Vou te dar uma dica, tipo colher de chá epistêmica: Na parte do teu livrinho que fala dos requisitos da sentença e isso que vocês do direito chamam de fundamentação, basta colocar uma frase bonita, algo como ‘toda sentença vem de sentire’. Para quê um monte de churumela? Ah: Tem até gente dizendo que se aplica uma coisa chamada ‘artigo 489’ e “926” de um tal de CPC – isso é o quê, mesmo -?  Além disso, uma palavra latina dá sempre um ar mais cool”.

E o publicitário dá mais uma dica very cool: “Temos que colocar uma coisa irada nesse livrinho, algo que vire meme, como o que se vê no Programa do Datena e na GloboNews. Assim: ‘toda decisão jurídica emana do clamor popular’. Isso é que vende. Se liga, professor. Outra coisa: tem de ter um capítulo sobre power point. Isso também é cool”.  Mais uma dica grátis: Tem de botar os juristas Gerson Camarotti e Alexandre Garcia na capa. Jusfashion. Eles sabem tudo de Habeas Corpus. Por exemplo: depois dos comentários do Garcia anteontem no final do dia na GloboNews, na qualidade de preclaro jurista, a tese cool é a de que a prisão já é obrigatória depois do primeiro grau. Dizem que ele incrementou a famosa tese Brocken balls – testículos rebentados –  com a sua tese. A nice bandit is a dead bandit”.

“Pois é”, conclui o velho professor, “não vai sair negócio. Vamos deixar assim. Devolva-me o livro. É velho, dos anos 40 do século passado, mas…” e saiu meditabundo, porta a fora, sem terminar a frase. Em meia hora tinha o compromisso de ministrar uma aula. Não sabia o que dizer aos alunos. Olhava alrededor e se sentia em Aleppo.  

 


[1] Na verdade, o processo penal é apenas um sintoma do que ocorre nos demais ramos do direito. O erro dos últimos 25 anos foi o de não implementarmos cursos de direito e, sim, cursos de “teoria política do poder” ou algo assim, em que se ensina um raso empirismo, que redunda em puro voluntarismo. Consequência: o direito sumiu. Foi predado pela moral. E pela política. E estas também vão mal.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!