Trabalho sem interferência

"Reconhecer autonomia da advocacia pública não criaria outro Ministério Público"

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23 de abril de 2017, 7h04

Spacca
Quase dez anos depois de apresentada uma Proposta de Emenda à Constituição que reconhece autonomia técnica, administrativa, orçamentária e financeira às carreiras da advocacia pública, entidades da classe têm se articulado para convencer deputados e, enfim, conseguir a aprovação do texto.

Segundo o presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo (Apesp), Marcos Fábio de Oliveira Nusdeo, a principal dificuldade é demonstrar que procuradores de estados e dos municípios não “querem ser outro Ministério Público” nem agir por conta própria, tornando cada procuradoria “ingovernável”. “Na realidade toda solução continuará indo para o chefe do Executivo, mas com garantia de que foi formulada da maneira mais técnica possível”, afirma.

Ex-procurador-geral do Estado (2007-2010), Nusdeo garante que não há “interferências” no trabalho dos procuradores em São Paulo. Mesmo assim, defende que a chamada PEC da Autonomia é necessária para assegurar o trabalho da advocacia pública pelo país e também orçamento próprio para a Procuradoria-Geral do Estado gerir verbas.

Esse novo cenário poderia resolver uma das demandas da Apesp na esfera local: a contratação de novos procuradores e a criação de uma carreira de apoio — profissionais que cumpririam tarifas administrativas, como anexar petições. A dificuldade econômica dos governos, para Nusdeo, não impede que a gestão Geraldo Alckmin (PSDB) atenda à demanda: “em época de crise, a procuradoria é a solução, não o problema”, afirma, com base em processos de recuperação de receitas.

A Reforma da Previdência também é um tema que preocupa a associação. Na terça-feira (18/4), o presidente da Apesp viajou a Brasília para discutir o tema na Câmara dos Deputados. Ele é contra a idade mínima de 65 anos — presente na proposta original, que agora já pode ser flexibilizada — e reclama de regras diferentes entre servidores antigos e jovens.

Apesar das críticas, Nusdeo avalia que o presidente Michel Temer (PMDB) “está no caminho de tentar” resolver problemas do país. Ele se prepara para ser o anfitrião do 43º Congresso Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, entre 11 e 14 de setembro. O tema é ambicioso: “Reflexões e Desafios da Advocacia Pública para a Superação da Crise do País e para o Fortalecimento da Democracia”.

Formado pela Faculdade de Direito da USP (1984) e mestre em Direito Constitucional (1994) pela mesma instituição, Marcos Nusdeo é professor de Direito Constitucional na Fundação Álvares Penteado (Faap) desde 2000.

Leia a entrevista:

ConJur — Quais os principais avanços no período em que o senhor está no comando da Apesp [desde 2016]? 
Marcos Nusdeo —
Eu costumo explicar o trabalho resumindo a atuação interna e a atuação externa. No primeiro campo, assumimos a associação em um momento de muita crise na Procuradoria-Geral do Estado, porque o trabalho aumentou vertiginosamente e o quadro de procuradores ficou defasado. Fizemos uma análise minuciosa do trabalho concreto nas diversas unidades da PGE e resolvemos atuar com as principais pautas dos procuradores naquele momento: abertura do concurso de ingresso e criação da carreira de apoio — sem profissionais da área administrativa, procuradores hoje precisam conciliar o trabalho jurídico com atividades como anexar petições no processo eletrônico e analisar precatórios de obrigação de pequenos valores.

Sobre as atividades externas, enfrentamos no ano passado um desafio muito grande, que foi o processo de renegociação das dívidas dos estados com a União. O chamado PLP 257 foi proposto pela anterior presidente da República [Dilma Rousseff] e, ao mesmo tempo em que possibilitava essa renegociação, incluía contrapartidas inconstitucionais para os entes que aderissem e ainda alterava diversos dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, ao invés de discutir mudanças em um projeto de lei à parte. A Apesp e outras entidades conseguiram convencer deputados a mudarem o texto: o projeto que saiu da Câmara cuidava só da renegociação da dívida e tirou as contrapartidas inconstitucionais. No Senado, essas mesmas contrapartidas voltaram, mas o projeto saiu enxuto, tratando só de renegociação da dívida, e virou a Lei Complementar 156/2016 [sancionada em dezembro pelo presidente Michel Temer]. Nós, como procuradores do Estado, temos que zelar pelo cumprimento das normas constitucionais que garantem autonomia aos Estados.

Também atuamos no Congresso Nacional para defender a Proposta de Emenda Constitucional 82, que reconhece autonomia técnica, administrativa, orçamentária e financeira às carreiras da advocacia pública.

ConJur — Essa PEC da Autonomia já tramita há anos…
Marcos Nusdeo —
Dez anos, desde 2007. A proposta já foi aprovada na comissão especial [em 2014] e está pronta para ir ao Plenário da Câmara. Estamos trabalhando para conseguir consenso quanto ao conteúdo, com paciência e persistência. O grande problema — e por isso nossa atuação no ano passado — é que foi muito mal compreendida pelos parlamentares. Muitos tinham a impressão de que procuradores de estados e dos municípios querem ser outro Ministério Público.

ConJur — Qual a diferença?
Marcos Nusdeo —
O Ministério Público tem aquilo que se chama autonomia funcional: cada membro tem autonomia para buscar o que entende ser a solução jurídica mais aplicável ao caso. Nós estamos pleiteando autonomia técnica, um mecanismo de evitar eventuais e indesejáveis interferências externas. Por exemplo, assegurar constitucionalmente que as procuradorias vão dar a solução técnica mais apropriada.

ConJur — Sem depender do chefe do Executivo?
Marcos Nusdeo —
Na realidade toda solução continuará indo para o chefe do Executivo, mas com garantia de que foi formulada da maneira mais técnica possível. É uma forma de garantir segurança ao Poder Executivo, demonstrar a existência de advogados públicos altamente qualificados para estudar a saída técnica adequada a cada caso. Isso é confundido, infelizmente, com autonomia funcional, no achismo de que a procuradoria ficaria ingovernável, de que cada procurador agiria com a sua cabeça… Então nós desmistificamos, preparamos até uma cartilha importante mostrando os benefícios da emenda constitucional à sociedade.

ConJur — Quais são hoje essas interferências indesejadas?
Marcos Nusdeo —
Em São Paulo seguramente não há interferências externas. Mas não se pode ter certeza de que isso não exista em outros estados ou em outros municípios. Por isso é importante garantir a autonomia na Constituição e evitar tratamento diferente das outras carreiras jurídicas essenciais à Justiça, reconhecendo o advogado público no mesmo patamar do Ministério Público, da Defensoria Pública e da magistratura. Com autonomia administrativa, técnica, orçamentária e financeira, nós estaríamos em outro patamar de administração da procuradoria.  

ConJur — A Apesp está pleiteando que o governo estadual abra concurso para novos procuradores. Caso a PEC seja promulgada, a PGE teria poderes para definir isso por conta própria?
Marcos Nusdeo —
Basicamente seria isso. A emenda dotaria a Procuradoria-Geral do Estado de uma verba adequada, para se autogerir, o que traria um ganho de resultado muito maior.

ConJur — Por que é necessário abrir novas vagas? 
Marcos Nusdeo —
Nós tínhamos um quadro original de 1.033 cargos, e a nova lei orgânica da PGE criou mais 170 em 2015, reconhecendo que era necessário aumentar o pessoal. O quadro total hoje é 1.203 pessoas, mas temos vagos 329, somando cargos novos e os que vagaram nos últimos quatro anos. O número representa 1/4 da nossa carreira. Ao mesmo tempo, ocorreram dois fenômenos nesses últimos anos: aumento da judicialização e processos mais céleres, com o processo eletrônico. Aumentou o número de conflitos, aumentou a velocidade de andamento dos processos e diminuiu o número de procuradores.

ConJur — Existe possibilidade real com todos os estados quebrando pelo Brasil afora?
Marcos Nusdeo —
Costumamos dizer que, em época de crise, a procuradoria é a solução, não o problema. A procuradoria, como todos sabem, tem basicamente duas funções: cuida da parte contenciosa e da parte consultiva do Estado. Então, na realidade, o procurador do Estado ajuda na recuperação de receitas e viabiliza políticas públicas. Nos últimos quatro anos, a nossa arrecadação ultrapassou R$ 12 bilhões. Imagine com mais procuradores quanto mais a gente poderia trazer. Eu ousaria dizer que nós poderíamos aumentar esse número em cerca de 50%.

ConJur — Compreendemos a função da carreira, mas o senhor acredita que há espaço no governo para essa discussão agora?
Marcos Nusdeo —
Nós estivemos com o governador em março do ano passado e ele entendeu perfeitamente a nossa demanda, apenas disse que esperaria para analisar os efeitos da crise na época, que acabou sendo devastadora. Nós sabemos disso, houve uma perda brutal de arrecadação nos estados. Agora, a economia já dá mostras de estar se recuperando. E estamos pleiteando a abertura do concurso de ingresso, o primeiro procedimento. A posse seria só em 2018.

ConJur — Gestões anteriores da Apesp já tiveram atritos com a PGE. A relação é harmônica hoje? A PGE tem respondido às reclamações da entidade?
Marcos Nusdeo —
A Apesp tem levado vários pontos ao gabinete do procurador-geral e, na realidade, vejo que ele está atendendo em doses homeopáticas. O papel da associação é levar todos os pontos à procuradoria, lembrar que, quando o procurador trabalha bem, o resultado é positivo para o interesse público, para toda a sociedade.

ConJur — O interesse do estado é sempre o interesse público?
Marcos Nusdeo —
Sim!

ConJur — Mesmo na área tributária?
Marcos Nusdeo —
O estado vive de rendas públicas previstas na Constituição, ou seja, a adequada arrecadação de tributos é que possibilita que o estado faça uma série de atividades. O não recolhimento de tributos prejudica a população.

ConJur — Mas o excesso de tributos também não prejudica a população?
Marcos Nusdeo —
Nosso sistema tributário pode ser aperfeiçoado. Agora, essa é uma discussão de fundo. Fui questionado se a arrecadação de impostos é de interesse público, e é claro que sim. É graças a isso que o estado sobrevive. Caberá ao legislador formatar o melhor sistema tributário possível. Esse debate já começou, já se vislumbra pelo menos uma discussão sobre reforma tributária.

ConJur — E a guerra fiscal entre estados, como será resolvida?
Marcos Nusdeo —
Guerra fiscal não traz resultados positivos para o país nem para o próprio estado, em médio prazo. Alguns governadores já estão retirando esses incentivos, perceberam a perda brutal da receita. A verdadeira solução da guerra fiscal deve ocorrer na reforma tributária. Se todos perdem, é preciso buscar agora uma solução em conjunto.

ConJur — Então o fim não será por meio do Judiciário?
Marcos Nusdeo —
Acho que será por via legislativa.

ConJur — Quando Michel Temer assumiu a Presidência, quase um ano atrás, a Apesp publicou nota desejando que ele alcançasse a paz, a harmonia e a justiça social no Brasil. O senhor acha que esse cenário já chegou?
Marcos Nusdeo —
Governar sempre é difícil. A gente desejou francamente que ele entregasse um Brasil melhor do que aquele Brasil que estávamos vivendo naquela ocasião. Eu acredito que ele está no caminho de tentar fazer isso.

ConJur — Inclusive com a proposta de Reforma da Previdência?
Marcos Nusdeo —
Este é o grande tema do momento. Tem sido acompanhado pela Apesp, faz parte da nossa atuação externa. É uma proposta que realmente abrange um conjunto muito grande de normas e que deveria ser o ponto de partida, não o ponto de chegada. O texto apresentado foi aquele que o presidente da República, ouvindo seus técnicos, entendeu ser adequada para enviar ao Congresso Nacional. Quem tem o poder de aprovar uma emenda é só o Legislativo. Então nosso trabalho tem sido demonstrar aos parlamentares a importância de aperfeiçoamentos nesse texto.

ConJur — Então a associação é favorável a uma reforma, mas discorda de alguns pontos?
Marcos Nusdeo —
Na realidade, existe um consenso no Brasil de que alguma reforma precisa ser feita. Eu, particularmente, posso lhes assegurar que as regras das emendas 20/1998 e 41/2003, já fecharam uma série de brechas que existiam no sistema. Então, a atual reforma basicamente quer discutir qual vai ser o benefício dos futuros aposentados, e pelo menos dois pontos merecem aperfeiçoamento.

Primeiro ponto: regra diferente para servidores. A proposta do governo prevê uma regra de transição específica para servidores homens que, no regime próprio, tenham 50 anos ou mais, além de servidoras com idade maior ou igual a 45 anos. Todos teriam um pedágio sobre o tempo de contribuição restante. O que o Congresso deve discutir é se o pedágio proposto, de 50% do tempo de contribuição que falta, é adequado ou não. Agora, quem estiver abaixo dessa faixa etária será tratado com uma regra lotérica, totalmente diferente: aposentadoria por idade, com mais tempo de contribuição e benefício menor. Então o que estamos pleiteando é que essa regra do pedágio seja igual para todos os servidores. Quem tivesse mais tempo de contribuição teria um pedágio menor. Os mais jovens, com menos tempo, teriam um pedágio maior. Mas me parece justo que seja uma regra igual para todo mundo.

Segundo ponto que seguramente precisa de aperfeiçoamento: para servidores que não entrarem na regra de transição, o provento vai ser uma proporção com base em valor pré-definido de 51% do salário, acrescido de um ano por tempo de contribuição. Então a nova média é basicamente a seguinte: se a pessoa tiver 65 anos e 25 anos de contribuição, a soma será 51% mais 25%, chegando a 76%. É muito baixa! Estamos falando de pessoas que contribuíram a vida inteira e, no caso de servidores, vão continuar contribuindo porque existe a contribuição previdenciária de inativos.

Há ainda um terceiro ponto: a proposta quer proibir o recebimento de mais de uma aposentadoria ou uma aposentadoria com pensão. Esse tema também poderia ser melhorado.

ConJur — O serviço público é um dos principais responsáveis por causar um buraco na Previdência?
Marcos Nusdeo —
A grande questão é a seguinte: o servidor que contribui por 25 anos no serviço público e continua contribuindo como inativo, enquanto viver, seguramente paga a sua aposentadoria. Acontece que no passado, como falei anteriormente, existiam brechas. E aí pessoas do serviço público se aposentaram com idade razoavelmente mais baixa. Com a norma hoje em vigor existe uma combinação de tempo mínimo de contribuição e idade mínima que faz com que as pessoas se aposentem em uma idade bastante razoável.

ConJur — Deve ficar na mão dos estados adotar regras para os servidores, como propôs o governo federal?
Marcos Nusdeo —
Esse é um ponto que não está muito claro, porque toda a parte do regime previdenciário dos servidores já tem normas constitucionais, no artigo 40. Me parece que o mais importante seria pensar em regras únicas e adequadas para os servidores, que dessem segurança. E eventualmente deixar para os estados alguns pontos específicos, não toda a regulamentação.

ConJur — O senhor é a favor ou contra a idade mínima de 65 anos, sugerida na proposta inicial?
Marcos Nusdeo —
Pessoalmente, acho uma idade excessiva.

ConJur — Ainda sobre projetos de lei, a Apesp concorda com a proposta que busca liberar advogados públicos a exercerem advocacia privada?
Marcos Nusdeo —
A posição institucional da Apesp é a de fomentar o debate entre os seus associados.

ConJur — A Apesp não tem posição, mas e o presidente?
Marcos Nusdeo —
Farei aquilo que os meus associados entenderem o melhor.

ConJur — Do período que o senhor foi procurador-geral, há cerca de sete anos, até hoje, as grandes pautas na PGE são as mesmas?
Marcos Nusdeo —
Eu acho que hoje em dia existe mais consenso com relação à necessidade da diminuição da litigiosidade. Não tem sentido todo mundo brigar por todas as coisas, o que gera décadas de espera.

ConJur — O Estado deve desistir mais de ações?
Marcos Nusdeo —
Esse é o grande ponto. Para mim, causas já decididas pelo Supremo Tribunal Federal deveriam pacificar definitivamente a questão, inclusive em âmbito interno.

ConJur — São Paulo se prepara para receber, em setembro, o 43º Congresso Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal. Qual a importância desse evento?
Marcos Nusdeo —
Será um momento importantíssimo para a advocacia pública brasileira e paulista. Esse congresso se realiza anualmente, junto com a Associação Nacional dos Procuradores (Anape). O estado de São Paulo sediou pela última vez em 1998, em Campos do Jordão. Advogados públicos poderão discutir e refletir sobre os desafios para a superação da crise e o fortalecimento da democracia. Porque, num cenário de crise, o advogado público é a pessoa por excelência preparada para buscar caminhos. Conhece como ninguém o estado e as possíveis soluções dos problemas.

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