Embargos Culturais

João Pessoa e a explicação da inscrição "Nego" na bandeira da Paraíba

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

23 de abril de 2017, 8h00

Spacca
A sucessão presidencial de Washington Luís (1930) contou com elementos dramáticos: inusitadas alianças, um crime passional, um corpo velado em vários lugares, um música transformada em hino, cavalos amarrados em obelisco no Rio de Janeiro, uma heroica viagem de trem, sem contarmos as peripécias do paraibano Assis Chateaubriand, que Fernando Morais conta em seu delicioso livro[1].

Fechava-se a década de 1920, na qual conhecemos intensa movimentação política marcada por um ideal de salvação nacional, mediado pelo tenentismo, movimento militar que protagonizou a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, fortíssimo no ideário moralista da classe média e que redundou na Coluna Prestes. Um pensamento político autoritário que se desenvolveu na Primeira República, e que canalizou alguma convergência de interesse com os grupos dominados, na imagem do “Leviatã benevolente”, não resistiu à formação de novas alianças, que derrubaram Washington Luís em 1930, inaugurando-se uma nova fase de concepção e de ação de nosso presidencialismo. A expressão Leviatã benevolente derivaria de uma metáfora de Fernando Henrique Cardoso, relativa à aliança entre oligarquias e necessitados, num contexto de “necessidade de sobrevivência de todos”, como se lê em Boris Fausto[2].

Com Getúlio Vargas anunciou-se entre nós o triunfo de uma categoria de dominação weberiana, marcada pelo carisma[3] do chefe político, e que o regime instaurado em 1930[4] plenamente representou[5], especialmente porque centrado na figura do Presidente da República.  É também a partir de onde se traça parte do fio da história do trabalhismo brasileiro[6]. Getúlio se equilibrou sobre a direita e a esquerda[7], polarização ideológica marcada pelas disputas entre integralistas[8] e comunistas, estes últimos agrupados em torno de Luís Carlos Prestes, a quem Jorge Amado chamava de o Cavaleiro da Esperança[9].

Na composição das forças e chapas que se enfrentariam na sucessão de Washington Luís o estado da Paraíba protagonizou papel especialíssimo. A Paraíba era ponto de inflexão que desiquilibraria o jogo, puxando votos no nordeste, a favor do continuísmo paulista ou em benefício da aliança formada por gaúchos e mineiros. Ainda no primeiro semestre de 1929, Washington Luís buscava o apoio do então presidente da Paraíba, João Pessoa.

João Pessoa recusou apoiar Júlio Prestes, o candidato da situação. Ao que consta, a resposta teve como emissário o deputado federal Tavares Calvalcanti (1881-1950), de conhecida trajetória na Paraíba, onde fora advogado, professor da Escola Normal e do Liceu Paraibano, deputado estadual já em 1907, chefe de polícia no governo de Francisco Camilo de Holanda. No Rio de Janeiro, onde faleceu em 1950, Tavares Cavalcanti lecionou direito romano na Universidade Católica.

Foi a Tavares Cavalcanti que João Pessoa encaminhou um telegrama datado de 29 de julho de 1929, no qual comunicava sua decisão, a ser transmitida a Júlio Prestes, da forma como segue:

“Paraíba, 29-7-1929. Deputado Tavares Cavalcanti, Reunido o diretório do partido, sob minha presidência política, resolveu unanimemente não apoiar a candidatura do eminente Sr. Júlio Prestes à sucessão presidencial da República. Peço comunicar esta solução ao líder da Maioria em resposta à sua consulta sobre a atitude da Paraíba. Queira transmitir aos demais membros da bancada esta   deliberação do partido, que conto todos apoiarão com a solidariedade sempre assegurada. Saudações. João Pessoa”

Essa negativa, que afastou João Pessoa de Washington Luís, aproximando-o da Aliança Liberal, consubstancia-se na inscrição da bandeira da Paraíba, simbolizando a resistência e o enfrentamento. A política, em seu sentido clássico, da arte do possível, cuja resgate da dignidade é função de nossos dias, também se faz com a bravura de dizer não.


[1] Dedico esse pequeno ensaio ao Professor Doutor Marcilio Toscano Franca Filho, professor e procurador na Paraíba, jurista, esteta, historiador e humanista, que com inteligência e bom gosto nos provoca e ensina sobre os temas da cultura.
[2] Cf. Fausto, Boris, História Geral da Civilização Brasileira- Tomo III, Volume 9, O Brasil Republicano, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
[3] O carisma de Vargas é também tema de comentário passageiro de Miguel Reale, em suas Memórias. Conferir, Reale, Miguel, Memórias- Destinos Cruzados- Volume 1, São Paulo: Saraiva, 1986, p. 152.
[4] Na visão pessimista de um historiador marxista: “Era o Brasil-Novo! Infelizmente, como sabemos, o entusiasmo durou muito pouco tempo. Uma quadrilha de ratos esfomeados e vorazes avançava sobre um queijo já razoavelmente esburacado. Ao lado dos chefes revolucionários, um bando de aventureiros e negociantes de lenço vermelho no pescoço tomara de assalto o país”. Basbaum, Leôncio, História Sincera da República, de 1889 a 1930. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976, p. 283.
[5] Especialmente quanto a uma exploração da dominação carismática exercida por Vargas, conferir, Bourne, Richard, Getúlio Vargas- A Esfinge dos Pampas, São Paulo: Geração Editorial, 2012. Tradução para o português de Paulo Schmidt e Sonia Augusto. Em esforço e dimensão historiográficas mais recentes, conferir Neto, Lira, Getúlio-1882-1930- Dos Anos de Formação à Conquista do Poder, São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Conferir também, no mesmo contexto, de identificação carismática de Vargas, Hilton, Stanley, Oswaldo Aranha- uma Biografia, Rio de Janeiro: Objetiva, 1994. Badaró, Murilo, Tempos de Capanema- A Revolução na Cultura, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. Schwartzman, Simon et allii, Tempos de Capanema, São Paulo: Paz e Terra, 2000. Pereira, Lígia Maria Leite e Faria, Maria Auxiliadora de, Presidente Antonio Carlos- um Andrada da República- o Arquiteto da Revolução de 30, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
[6] Cf. Ribeiro, José Augusto, A Era Vargas- 1- 1882-1950, Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial, 2002, p. 9.
[7] Cf. Fausto, Boris, Vargas- uma Biografia Política, Porto Alegre: L & PM, 2004.
[8] Para o ideário integralista conferir Cavalari, Rosa Maria Feiteiro, Integralismo- Ideologia e Organização de um Partido de Massa no Brasil (1932-1937), Bauru: EDUSC, 1999.
[9] Cf. Meirelles, Domingos, 1930- Os Órfãos da Revolução, Rio de Janeiro: Record, 2005.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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