Ideias do Milênio

"A política clássica está defasada em relação às expectativas dos franceses"

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22 de abril de 2017, 10h13

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Michel Wieviorka [Reprodução]Entrevista concedida pelo sociólogo Michel Wieviorka, à jornalista Elizabeth Carvalho, para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

A poucos dias de um primeiro turno das eleições presidenciais, castigada por uma longa lista de atentados terroristas, por um crescimento inexpressivo e uma persistente taxa de desemprego, pouco abaixo de 10%, a França vai fechando o governo de François Hollande diante de uma verdadeira convulsão política.

O primeiro sinal é a evidente proximidade do poder da extrema-direita da Frente Nacional de Marine Le Pen, favorecida como nunca pela crise identitária que vive a França católica, conservadora e nostálgica da grandeza de um país que perdeu muito da força e de sua influência no mundo.

O segundo é a erosão dos principais partidos tradicionais que se alternam no poder, os republicanos e o Partido Socialista. O candidato da direita, François Fillon, chegou a ser apontado como o único capaz de roubar votos de Le Pen, mas Fillon há meses patina nas pesquisas depois que o chamado Penelope Gate levou a justiça francesa a investigar os mimos que o republicano concedeu à mulher a aos filhos quando era deputado e senador, todos empregados na assembleia sem trabalhar. O Partido Socialista sofreu um racha que parece irreparável e a crise gira em torno de dois ex-ministros de Hollande, o filho pródigo e o filho rebelde. O rebelde, Benoit Hamon, 40 anos, ex-ministro da educação, pertence a ala esquerda do partido e foi legitimamente escolhido pelo voto direto como candidato socialista, mas está cada vez mais isolado, porque a ala direita do partido, a qual Hollande pertence, está apoiando abertamente o filho pródigo, o ex-banqueiro e ex-ministro da economia Emmanuel Macron, 39 anos, que deixou o governo e o partido para sair candidato em nome de seu próprio movimento, o En marche.

O terceiro sinal de que tudo pode mudar no cenário francês é a espetacular ascensão de Jean-Luc Mélenchon e de sua França insubmissa, que vem arrastando multidões em todo o país. Político experiente, orador brilhante, Mélenchon é o candidato da chamada extrema-esquerda, uma esquerda que quer deixar a Otan, reformar a Europa e levar a França a uma transição ecológica.

Em resumo: as últimas pesquisas de intenção de voto indicam uma situação sem precedentes em meio século de história da França. Quatro candidatos, Fillon, Le Pen, Macron e Mélenchon, estão quase ombro a ombro na corrida que pode levar ao segundo turno. Para entender as hesitações dos franceses diante das urnas, viemos conversar com o sociólogo Michel Wieviorka, especialista em conflito e violência e presidente da Casa de Ciências do Homem, onde marcamos nosso encontro aqui em Paris.

Elizabeth Carvalho — Estamos às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial e a França parece estar virando uma espécie de caixinha de surpresas, de onde saem acontecimentos mais surpreendentes do que roteiros de ficção. Minha pergunta: estaríamos num momento em que a França está com vontade de mudar de cara?
Michel Wieviorka —
Estamos em um momento em que a política clássica está tão defasada em relação às expectativas dos franceses, em relação às demandas da sociedade, aos problemas sentidos pelos franceses, uma defasagem tamanha, que a França, os eleitores franceses consideram que o sistema político não corresponde a essa sociedade. Por consequência, quando um sistema político desagrada, você tenta muda-lo, ou diz: “Isso não me interessa mais”. Então, o que vemos? Vemos muitos franceses que dizem: “A mim isso não interessa mais, vou me abster. Não porque eu não esteja entendendo, mas porque a oferta política não é interessante”. Vemos outros que dizem: “O sistema político clássico morreu”.

Na extrema-direita, é o nacionalismo, é Marine Le Pen, um populismo que mudou muito em 30 ou 40 anos. É o partido Frente Nacional, que mudou completamente seu discurso, mas onde reencontramos permanentemente o ódio em relação aos imigrantes, o medo do Islã, o racismo, o antissemitismo e a ideia de que é preciso sair da Europa, de que precisamos de uma nação homogênea com uma sociedade fechada. Esta é a Frente Nacional. De fora do sistema.

Na outra ponta, Jean-Luc Mélenchon, um outro tipo de populismo. Porque ele não é nada racista, nada antissemita, mas, assim como a extrema-direita, é contra a Europa, contra o Euro, e que diz: “É preciso mudar o sistema, é preciso criar uma Sexta República” — estamos hoje na Quinta República. E não falta gente que concorda com uma Sexta República… Claro, é muito interessante essa ideia, a ideia de que a constituição francesa foi feita pelo general De Gaulle, um grande personagem, mas que os tempos mudaram e por isso também é preciso transformar as instituições.

Elizabeth Carvalho — Por que o senhor chama Jean-Luc Mélenchon de populista?
Michel Wieviorka —
Primeiramente porque ele não fica incomodado ao afirmar: “Vamos mudar continuando a ser nós mesmos”. É um jeito de ser muito populista. Em segundo lugar, ele é populista, na minha visão — a palavra tem tantos significados que devemos ser específicos — porque se coloca acima dos partidos. De toda mediação entre o povo e ele mesmo. O populismo também aparece toda vez em que se fala em nome dos pequenos, contra as elites. Ou seja, não é um juízo de valor o que estou dizendo, acredito que haja dimensões populistas nele.

Elizabeth Carvalho — Podemos também chamar de populista Emmanuel Macron?
Michel Wieviorka —
Temos o que chamo de populismo de cima. E aqui respondo à sua pergunta: Emmanuel Macron, na minha visão, é populista por quê? Porque ele diz que não existem mais esquerda e direita, ele diz que é, ao mesmo tempo, a esquerda e a direita. Em segundo lugar, é populismo, na minha visão, porque ele considera que o que conta é o líder, na sua relação direta com o povo. O movimento dele, “En marche”, é tão-somente uma máquina que tem como único objetivo fazer o que ele espera do partido dele. Em outras palavras, não é o partido que escolhe seu líder, é o chefe que escolhe a máquina que vai acompanhá-lo.

Elizabeth Carvalho — Estamos diante de um quadro em que os partidos que são os pilares da Quinta República têm 25% das intenções de voto. O Partido Socialista e os Republicanos. O Partido Socialista desmorona. Ao mesmo tempo, o que emerge são movimentos: o movimento “Em marcha”, o movimento “França insubmissa” de Mélenchon, etc. Haveria aí talvez um descolamento em relação aos partidos tradicionais da França?
Michel Wieviorka —
Você tem razão. Os partidos tradicionais hoje vão muito mal. À esquerda, o grande partido de esquerda, o Partido Socialista, largamente ignorado, e que tem um candidato abaixo da marca dos 10% em todas as pesquisas. Quer dizer que esse partido, que é o grande partido, hoje está moribundo, muito doente. Temos uma direita que não vai muito melhor do que isso, com um partido cheio de tensões, de subconjuntos que se digladiam, que não concordam entre si, dispostos a brigar feio a partir do primeiro turno, dos resultados do primeiro turno. E esse segundo partido, esse partido da direita tampouco vai bem nas pesquisas. Então, temos de fato os dois partidos tradicionais, de esquerda e de direita, bem fracos — e os outsiders, vindos de fora. E o que acontece em casos assim? Como esses outsiders não correspondem a partidos tradicionais, eles se apoiam, na questão da mobilização, em algo que é uma mistura de movimento com partido. Não dá para dizer que a Frente Nacional não seja um partido, é um partido político. Por isso acredito que a Frente Nacional existe, como força política importante, desde 1982, 83. Mas Jean-Luc Mélenchon, e o pequeno aparelho à disposição dele, é o que restou do Partido Comunista. Quer dizer, 2% ou 3% do eleitorado, mas também a máquina, esse mecanismo sobrevive. Fora isso, é mais um movimento. Quanto a Emmanuel Macron, é uma máquina criada para um processo eleitoral.

Elizabeth Carvalho — Uma máquina dos mercados, você diria?
Michel Wieviorka —
Não, eu seria prudente, é uma máquina complicada, sem dúvida, que reúne gente muito diferente, que vai tentar se transformar, na sequência, em um partido político.

Elizabeth Carvalho — Então, na sua opinião, o que está realmente em jogo para a sociedade francesa hoje?
Michel Wieviorka —
A sociedade francesa não ouviu debates verdadeiros no decorrer dessa longuíssima campanha. Porque poderíamos esperar uma discussão sobre os imigrantes, sobre o Islã. Que fosse discutido o terrorismo. Poderíamos esperar também um debate verdadeiro sobre a economia, o emprego, o desemprego. Poderíamos esperar um verdadeiro debate sobre a construção europeia, o que resta da Europa. Enfim, um grande número de temas. Mas, se perguntamos aos franceses comuns o que guardam desta campanha, não tem muito conteúdo.

Elizabeth Carvalho — Quer dizer então que o que os franceses guardaram dessa campanha foi a moral dos candidatos.
Michel Wieviorka —
Sim, mas tem isso: Marine Le Pen foi acusada de ter um emprego fictício por Bruxelas, ela se negou a ir à polícia. Ou seja, isso ocupou muito espaço na mídia. Mas falamos pouco de social, tampouco falamos de identidade, imigração, etc. E quando Marine Le Pen faz isso, ela fala disso nos discursos, isso não suscita um grande debate e isso é curiosíssimo. Então, o que isso quer dizer para a sociedade francesa? O fato de não nos concentrarmos nos grandes temas e de que isso não polariza as atenções na campanha. A insegurança poderia ser outro tema importante. O desemprego, a fratura social.

Elizabeth Carvalho — Mas o desemprego é um tema importante.
Michel Wieviorka —
Todos esses temas são muito importantes, mas temos uma sensação, os franceses têm a sensação de que nenhum dos candidatos avançou na busca de respostas mais elaboradas a todas essas questões.

Elizabeth Carvalho — E qual é o peso do medo do terrorismo?
Michel Wieviorka —
Sabe, tem várias coisas. Quando se diz que os franceses estão com medo, inquietos, não dá para falar apenas em terrorismo. Porque os franceses — estou simplificando, claro — juntam três problemas: o terrorismo propriamente dito, as questões de imigração e o Islã. O Islã na França. Então, quando se junta isso tudo, podemos chamar de terrorismo, mas do que temos medo? Dos novos imigrantes? Não é necessariamente terrorismo isso. Alguns terroristas podem ter chegado na onda de imigrantes vindos do Oriente Médio. Quando se fala em terrorismo, na realidade, o que não se quer discutir é o Islã. Não gostamos dos muçulmanos, existe racismo contra muçulmanos, pode-se dizer. E, enfim, há o problema do terrorismo. Eu sou um especialista em terrorismo e vou dizer algo que observo há muito tempo: quando o terrorismo ataca um país, só se fala disso. Isso enche os debates, a imaginação, os medos, o discurso político — preenche tudo.

Elizabeth Carvalho — Não é o caso dos franceses.
Michel Wieviorka —
Sim, no calor dos acontecimentos, quando há um ataque. Mas assim que a ameaça parece se afastar…

Elizabeth Carvalho — A gente esquece.
Michel Wieviorka —
É como as pessoas que moram em São Francisco, em cima da falha da San Andrés. Sabem que existe essa falha, sabem que pode haver um terremoto, mas não falam disso. Ou as pessoas que moram aos pés de um vulcão, esse tipo de coisa. Então, sobre o terrorismo na França, a dificuldade é que quando se fala em terrorismo, há por trás disso toda uma mistura com os fenômenos migratórios e com a questão do Islã, mas o terrorismo puro, se você quiser, como fenômeno, não ataca desde julho. Aí os franceses passam a agir como se fosse passado. Veja até que ponto os franceses vivem normalmente. Pegam um metrô, um trem.

Elizabeth Carvalho — Talvez isso possa ajudar a responder a uma pergunta que eu queria fazer, que tem a ver com os franceses estrangeiros nessa campanha. A ausência deles. Sobretudo os árabes. Isso me surpreendeu um pouco, porque a França é evidentemente hoje um país muito mais mestiço do que há 40 anos. A França de hoje não tem nada a ver com a França de Alain Delon, de Brigitte Bardot, dá para dizer isso. Então, como explicar essa ausência dos franceses estrangeiros na campanha?
Michel Wieviorka —
Há razões boas e ruins para isso. As boas são aquelas que nos remetem à imagem um pouco abstrata do modelo republicano francês. O modelo republicano francês, simplifico, consiste em dizer que, na esfera privada, você faz o que quiser. Quer ser árabe, pode ser árabe. Quer ser muçulmano, você é muçulmano. Quer ser judeu, você é judeu. Quer ser bretão, você é bretão. No particular, você faz o que quiser, desde que respeite a lei, claro. No espaço público, só há cidadãos, que são livres e têm direitos iguais. Mas, no espaço público, são indivíduos, e não representantes de uma minoria, da particularidade de um grupo, de uma cultura ou de uma religião. No espaço público, somos todos livres e com direitos iguais, somos todos cidadãos. Daí que essa bela ideia é a ideia republicana, segundo a qual, quando você se expressa politicamente, eu não pergunto se você é judia, muçulmana, católica, protestante, budista. Não, não vou perguntar. Você pode até me dizer se quiser, mas não é isso o que conta. Ou seja, essa imagem francesa, da república e seus indivíduos, não facilita a constituição de uma visibilidade dos grupos particulares. Houve, por vezes, tentativas de criar, por exemplo, um partido muçulmano na França. Zero vírgula zero cinco por cento, nada, nada.

Elizabeth Carvalho — Vamos falar um pouco da violência. Eu encontrei um ensaio que o senhor publicou na Revista Social da Universidade de São Paulo, no Brasil em 1997. E o senhor nos fala de um novo paradigma da violência, que me parece uma coisa da nossa época. A cada época, sua própria construção de violência. E, nesse momento, o que eu gostaria de destacar no seu trabalho, é o uso da violência como ferramenta de transformação, que se tornou cada vez mais menos concebível na nossa sociedade ocidental. O que mudou na sua percepção nos últimos tempos, em relação ao seu ensaio?
Michel Wieviorka —
Acabamos de viver — falando de um país como a França, porque poderíamos falar de outro país — grandes mudanças naquilo que é a violência mais pesada, a violência política. Eu não digo que as outras formas de violência não existam, claro. Mas houve mudanças consideráveis, em particular com o terrorismo. Eu lhe diria, com os atentados nos Estados Unidos em 2001, os atentados na Europa, em particular na França. E, quando pensamos sobre isso, essa violência é mais difícil de analisar que antes, e é talvez isso que seja novo na minha reflexão. Porque, quando queremos pensar sobre isso, é preciso andar com os dois pés, posso colocar dessa forma. De um lado, se eu quero compreender essa violência, é preciso que eu estude o que se passa na minha sociedade: que há jovens nos bairros populares, oriundos da imigração, mais ou menos delinquentes, mais ou menos rejeitados pelo sistema, desempregados, vítimas do racismo — enfim, poderíamos falar muito dessa juventude —, e alguns deles descambam para o terrorismo um dia.

Elizabeth Carvalho — São pessoas que não votam, não é?
Michel Wieviorka —
Claro, são pessoas que estão fora do sistema político. Mas, no terrorismo, há também meninas de boa família que se convertem ao Islã e ao radicalismo. Em suma: se passam muitas coisas na sociedade. Então a violência tem algo a ver com as transformações da sociedade na qual eu vivo. Mas não é possível compreender o terrorismo recente sem levar em conta o que se passa na Síria e no Iraque.

Elizabeth Carvalho — Eu gostaria de ouvir o senhor sobre a violência mais assustadora de todas: vivemos ultimamente sob a ameaça de um conflito global, justamente com a escalada dos eventos na Síria. E o único candidato que tem uma postura de fato pacifista é Jean-Luc Mélenchon, que diz não à guerra e quer que a França saia da Otan. O senhor acha que ele está certo?
Michel Wieviorka —
Como analista, eu lhe diria que me parece que um país como a França deve escolher: ou bem quer participar dos assuntos mundiais, ou bem quer vir a ser como a Suíça ou como algum outro país completamente neutro, que não pesa nada nos grandes assuntos do mundo, do ponto de vista geopolítico e militar. A França é o único país da Europa — porque a Inglaterra, o Reino Unido, está saindo — que tem arma nuclear. A França é o único país — com o Reino Unido, de saída — que tem assento no Conselho de Segurança. A França tem um lugar internacional importante.

Elizabeth Carvalho — E um peso ainda, mesmo que fraco.
Michel Wieviorka —
Então dizer à França: “Vamos sair de todo tipo de intervenção militar”… Não digo isso para defender as intervenções militares, mas “tornemo-nos um país neutro”, isso se torna um problema no que se refere à importância geopolítica, estratégica que esse país possa ter. Então, as críticas vêm daí. Mas, ao mesmo tempo, como você quer que a França resolva um problema como esse do terrorismo, se voltarmos à análise que propus há pouco? Eu disse: é preciso andar sobre duas pernas. O terrorismo é, de um lado, um problema interno da sociedade francesa e, de outro, um problema geopolítico, é o Daesh. Se o Daesh não desaparecer, o terrorismo vai continuar. E, para que o terrorismo desapareça, infelizmente, as únicas respostas são bélicas, são militares. Mas os franceses resistem à ideia de que seu país possa estar fora desta potência. É isso que desce mal, mas que pode também agradar a um certo eleitorado.

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