Direito do Agronegócio

Propriedade, empresa e função social no Direito Agrário

Autor

21 de abril de 2017, 8h00

Spacca
Quando pensamos em qualquer empresa, temos de ter em mente que esse é um instituto de formulação originalmente econômica. Por ele se vislumbra uma organização de capital e trabalho voltada para a produção ou intermediação de bens ou de serviços para o mercado, coordenada pelo empresário, a quem se destinam os resultados e se impõem os riscos.

Por aí, pois, há uma perspectiva diversa daquela contida no direito de propriedade, em especial no que diz respeito à finalidade de bens que, de algum modo, são submetidos ao poder de alguém.

De fato, na empresa esses bens passam a ser considerados no tocante ao cumprimento de destinações específicas, voltados para a consecução de seu potencial gerador de riquezas, de bem-estar social e de proteção ambiental.

Para que exista empresa, por outro lado, não se deve exigir patamares mínimos de avanço tecnológico ou a adoção de soluções impostas por sistemas econômicos dessa ou daquela natureza. A empresa representa, na verdade, um instituto que tende ao universal, inserido em qualquer sociedade organizada.

Nada importa, assim, para o surgimento da empresa que os resultados auferidos sejam apropriados pelo empresário, pelo Estado ou mesmo repartidos com pessoas que não tenham participado do desenvolvimento da atividade realizada.

O que se constata é que, no âmbito da empresa, os bens que a compõem passam, quaisquer que sejam eles, a ser avaliados sob a perspectiva da riqueza que são capazes de gerar, e não apenas do valor que apresentem, de modo isolado e desconectado de um ciclo de produção.

Temos aí, pois, uma faceta do que pode representar as noções de função social e de desenvolvimento sustentável, muito semelhantes no âmbito do Direito Agrário quanto ao seu sentido.

Em ambas as ideias, busca-se alcançar a coexistência de três valores relacionados ao desenvolvimento da empresa: produção eficiente, garantia aos direitos sociais e preservação ambiental.

Confrontemos, então, os institutos da propriedade e da empresa.

A propriedade agrária diz respeito principalmente — ainda que não unicamente — ao domínio exercido sobre frações do território, seja ela considerada individualmente, seja acrescida dos instrumentos próprios à produção dos gêneros vegetais ou animais destinados ao consumo humano direto ou indireto.

Para tanto, devemos considerar o preceito constante do artigo 1.228 do  Código Civil brasileiro.

Havendo título e modo adequados à aquisição da propriedade imobiliária rural, o então proprietário disporá da faculdade de “usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”, fazendo-o de acordo com as balizas impostas pela “finalidade econômica e social” do bem, pelo respeito à “flora, fauna, belezas naturais, equilíbrio ecológico, patrimônio histórico e artístico”, evitando-se ainda a “a poluição do ar e das águas”. É também vedado a tal proprietário o abuso do direito, ou seja, a sua utilização cujo mote preponderante seja causar malefícios aos demais.

Essa abordagem é objeto, sobretudo, do estudo do chamado Direito das Coisas, no qual prevalecem as faculdades do uso, gozo, fruição e retomada do desapossamento injusto. É o que dá os contornos mais marcantes do direito de propriedade, o mais amplo dos direitos reais.

Tal perspectiva, porém, não conduz à necessária apreciação do bem sob a ótica de sua destinação à produção, em especial com o exercício das atividades agrícolas e pecuárias, tema preferencial do Direito Agrário.

Assim, ao pensarmos nas bases maiores desse ramo especial do Direito, devemos, na verdade, ter em mente as relações derivadas da empresa e, especificamente em relação à matéria ora tratada, àquelas relacionadas à função que o fundo rústico ocupa nesse cenário, sobretudo considerando a questão do desenvolvimento da chamada atividade agrária.

O objetivo dessa abordagem é, então, o de situar a questão da função social da propriedade agrária a partir de uma perspectiva que esteja atenta ao âmago das atenções do Direito Agrário, localizado em verdade na empresa, instituto no qual a função social do bem imóvel agrário efetivamente se realiza.

De fato, a propriedade da terra historicamente representou elemento a partir do qual derivava, de modo diretamente proporcional, o poder político e social, o que se deu durante longos períodos na história. Assim, apenas lembrando das tentativas dos irmãos Graco na Roma antiga para limitar o acesso particular à propriedade das terras até então públicas e alcançando o período medieval, surgiu, naquele momento, uma das classificações mais importantes pela qual se distinguem os bens, qual seja aquela que os distingue entre imóveis e móveis.

Como ensina Comparato, nos momentos iniciais do surgimento de tal classificação, as res mobilis eram consideradas vilis porque a propriedade não atribuía ao seu titular um proporcional poder político, ao contrário do que ocorria com a em relação ao fundo rústico[1].

Essa situação foi alterada com o surgimento dos fenômenos que deram origem ao regime capitalista — dentre os quais se destaca, inicialmente, a chamada Revolução Comercial —, provocando a paulatina e crescente acumulação de valores nas mãos de setores sociais e econômicos distintos daqueles até então tradicionais, o que modificou a importância relativa entre as duas classes de bens.

A riqueza mobiliária vinculada à propriedade da moeda, dos metais preciosos e à titularidade de créditos passíveis de cessão constituiu o fundamento para a criação do sistema financeiro que, em pouco tempo, conquistou a economia rural e até mesmo o Estado, cujo poder central mostrava-se ainda débil e não totalmente consolidado[2].

Com o eventual inadimplemento das obrigações de restituição do crédito concedido pelos novos detentores da riqueza àqueles que eram titulares apenas ou majoritariamente de bens imobiliários de crescente iliquidez, dava-se a consequente execução forçada das hipotecas que garantiam esses mesmos créditos. Com isso, a titularidade da propriedade rural foi sendo sistematicamente transferida aos recém-surgidos “capitalistas urbanos”.

Nesse novo ambiente, uma outra classificação se tornou útil, qual seja aquela que distingue aqueles então chamados bens de produção e os bens de consumo.

Sempre acompanhando as lições de Comparato[3], aprendemos que não é qualquer qualidade intrínseca que distingue os bens sob essa nova perspectiva. Os bens de produção, com efeito, podem ser móveis e imóveis, indistintamente. Pode ser um bem de produção também o dinheiro. Pode, enfim, ser a própria terra ou, mais convenientemente denominada, para fins de nossas reflexões, o fundo rústico.

A atividade — concebida tal como a sequência de atos destinada a uma finalidade comum — é reconhecida na análise econômica não pela criação de coisas materiais, mas pela criação de valor, isso enquanto inseridas no estabelecimento. Depois de transferidos, os bens passam a ser considerados insumos de produção ou bens de consumo[4].

Bens de consumo, portanto, são aqueles que se extinguem pelo uso ou que, pelo menos, destinem-se ao uso, sem que se imponha a sua destruição necessária.

Desse modo, a classificação entre bens de consumo e bens de produção não se funda em sua natureza ou consistência, mas na destinação que se lhes dê. A função que as coisas exercem é independente da sua estrutura interna.

A função, por sua vez, é nas palavras de Eros Grau, “o poder que se exerce não por interesse próprio ou exclusivamente próprio, mas por interesse de outrem ou por um interesse objetivo”[5]. O adjetivo social mostra que o objetivo corresponde ao interesse coletivo, e não ao interesse pessoal do dominus[6].

A função social da propriedade corresponde, portanto, a um poder-dever atribuído e imposto ao proprietário.

Abrange tanto os bens como as relações jurídicas e ainda os negócios jurídicos que podem ter funções ou utilidades na vida social.

Tal análise funcional do direito parece ter o seu ponto de partida na monografia de Karl Renner de 1904, Die Soziale Funktion der Rechsinstitute.

Outros, contudo, remetem as primeiras formulações desse conceito a Auguste Comte e a Leon Duguit[7]. Este último negava, em relação à propriedade, o caráter de um direito a ser atribuído ao indivíduo, entendendo-a, na verdade, como sendo unicamente uma função. Recebeu críticas de Pugliati, Perticone e Barassi[8], dentre outros.

Vê-se, pois, que a função social dos direitos em geral e, em especial, do direito de propriedade, é quase um “lugar-comum”, tal como reconhecido por Barassi ainda na primeira metade do século passado[9].

Na verdade, tal conceito surgiu como contraponto ao sentido que prevaleceu no Code Napoléon e, a partir dele, em todos os países da família romano-germânica no tocante ao conteúdo do conceito de propriedade que se referia, apenas e tão-somente, à posse, ao uso, ao gozo e à disposição como componentes da relação entre a pessoa e o objeto do direito.

Justificativa tradicional para a existência e proteção à propriedade privada era a de resguardar o indivíduo e a sua família contra as necessidades materiais, ou seja, como forma de prover a sobrevivência. Constituía, nesse sentido, uma reserva de valor que hoje coexiste com outras, tais como a garantia de emprego e da previdência social.

De toda forma, quando se pensa na função social da propriedade, não há daí uma direta e irrestrita limitação ao uso e gozo dos bens próprios pelo titular de tal direito. A função social, sob a perspectiva jurídica, não condiciona o exercício da propriedade, mas sim o qualifica, derivando daí inúmeras consequências.

Dentre elas, há de se ver que o não atendimento de tal função social não torna a propriedade resolúvel, ou seja, sujeita a um evento futuro e incerto — o seu descumprimento — que possa determinar a sua extinção.

Representa, na verdade, o acréscimo de um poder-dever àqueles outros próprios ao domínio, qual seja o de dar ao objeto da propriedade um destino certo e determinado, vinculando-o a certo objetivo que é, no caso, o bem comum.

Caso não cumpra o proprietário esse poder-dever, poderá então sofrer algum modo de sanção pela ordem jurídica.

Essa sanção é, fundamentalmente, a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária.

Tal possibilidade de desapropriação não constitui, na verdade, ato vinculado do poder público, estando submetida aos critérios de conveniência e de oportunidade que caracterizam a discricionariedade do agente público e as limitações orçamentárias.

A Constituição brasileira, por sua vez, reconhece o direito de propriedade em seu artigo 5º, inciso XXII, e determina que tal direito atenderá à sua função social, o que se acha explicitado pelo inciso XXIII seguinte.

Refere-se o texto constitucional, ademais, ao atendimento da função social pela propriedade urbana (artigo 182) e ao atendimento da função social da propriedade rural (artigo 186).

Quanto à legislação ordinária, o Código Civil brasileiro atual menciona expressamente a função social no seu referido artigo 1.228, parágrafo primeiro.

Assim, a noção de função social, no Direito Agrário, não apresenta o vício da generalidade e da abstração que se observa muitas vezes quando referida aos institutos da propriedade, do contrato ou da empresa genericamente considerados.

No Direito Agrário, o legislador se preocupou em definir quando a função social será atendida, o que fez tanto na norma suprema — qual seja o artigo 186 da Constituição Federal, em seu caput e incisos — como na legislação ordinária, o que se vê no Estatuto da Terra e na Lei 8.171/91, por exemplo.

Esse cuidado de tornar mais objetivas as cláusulas gerais, hoje inseridas em profusão na legislação brasileira, é mesmo um bom caminho a ser seguido em prol da segurança jurídica sempre desejada.


[1] Fábio Konder Comparato; Direito Empresarial, Estudos e Pareceres. São Paulo: Saraiva, 1990, pág. 28.
[2] Ob. cit., pág. 28.
[3] Ob. cit., pág. 29 e seguintes.
[4] Ob. cit., pág. 29.
[5] Eros Grau; Direito, Conceitos e Normas Jurídicas. 1ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1988, pág. 107.
[6] Comparato, ob. cit., pág. 32.
[7] Luciano de Souza Godoy, Direito Agrário Constitucional. 2ª ed., São Paulo: Atlas, 1999, pág. 30.
[8] Telga de Araújo, A Propriedade e sua Função Social. In Direito Agrário Brasileiro, coordenado por Raymundo Laranjeira.  São Paulo: LTr, 2000, pág. 158.
[9] Conf. La Proprietà nel Nuovo Códice Civile. Milão: Dott. A. Giuffrè, 1943, pág. 77.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!