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Princípio da amplitude de defesa vs. princípio da dignidade da pessoa humana

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17 de abril de 2017, 8h00

Primeiramente, não há nada de inovador em se afirmar que os princípios da amplitude de defesa e da dignidade da pessoa humana, por serem princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito, são aplicáveis de forma irretocável ao processo penal brasileiro.

Ocorre que, como é cediço, a boa hermenêutica impõe que eventual colidência entre princípios reconhecidos no ordenamento jurídico sempre impõe uma solução conciliadora, quando o conflito deve ser resolvido por meio de ponderação, quer seja por parte do intérprete ou por parte do julgador (ESTEFAM, 2010)[1].

De fato, o tema proposto é digno de acurada discussão junto ao meio jurídico, pois sempre nos valemos da ponderação, o risco de elevado subjetivismo é muito grande, e na hipótese em bosquejo estamos tratando de princípios basilares do Direito Constitucional Processual Penal, vide disposto no artigo 1º, inciso III, e artigo 5º, inciso LX, da Constituição Federal.

Entretanto, se de um lado o Direito não é estanque, a sua interpretação também não o é, e os ideais garantistas não devem ser vistos somente sob a luz dos acusados criminalmente, mas também de igual sorte são aplicáveis às vítimas. Nessa seara, tem sido fato corriqueiro junto às varas criminais, nos feitos relativos à violência sexual, nos depararmos com estratégias defensivas no sentido de se desqualificar a pessoa da vítima, estratégia essa que, por vezes, inclusive, supera a análise defensiva fática constante da denúncia.

Nesse diapasão, apesar de rotineiro aludido desvirtuamento do direito constitucional à amplitude de defesa, em cotejo com o pilar central de todo o ordenamento jurídico, consistente na dignidade da pessoa humana, tal constatação extravasa qualquer limite do mínimo bom senso, e, a nosso ver, trata-se de prática eivada de vício de inconstitucionalidade, principalmente quando a pessoa da vítima refere-se a crianças ou adolescentes.

A afirmação é nesse sentido, primeiramente, adotando o entendimento da doutrina garantista mais moderna, a qual eleva o princípio da dignidade da pessoa humana como o superprincípio, sendo que dele seria decorrência todos os demais princípios num Estado Democrático de Direito. E, num segundo plano, e não menos importante, de que a ponderação deverá sempre pender para o lado no qual a norma (no caso princípio) esteja sendo utilizada na sua própria finalidade de existência e, por consequência, se mitigar aquela em que esteja sendo invocada com algum desvirtuamento de sua finalidade original.

Nesse cotexto, passamos então a analisar a situação posta, na qual, não raras vezes, algumas defesas, sob o argumento de estar se utilizando da garantia constitucional da plenitude, e sobre a qual não se admitiria qualquer possibilidade de limitação, parte para um ataque desmedido e, inclusive, preconceituoso à pessoa da vítima, a qual muitas vezes é uma criança ou adolescente.

De fato, principalmente quando da produção da prova testemunhal, ou, atualmente, com o amplo acesso às redes sociais, através da juntada de farto material de postagens das vítimas em rede social, em vez de realizar a efetiva defesa do réu, se parte para um ataque inconstitucional à pessoa da vítima, pois esse tipo de “defesa”, em si mesmo, sequer constitui-se como defesa, haja vista que a jurisprudência é praticamente unânime em afirmar que inclusive as prostitutas podem ser vítimas de estupro, assim, não tal linha argumentativa traz nenhuma valia para o processo, senão expor a vítima a uma situação vexatória, constrangedora e preconceituosa, pois trazer a baila supostos comportamentos “inadequados” ou tidos como “imorais” da mesma, nada mais é do um fortuito ataque à dignidade de sua pessoa.

Demais disso, a hipótese em comento, sequer de longe, se assemelha à possibilidade do uso de uma analogia em relação a admissibilidade, inclusive, de prova ilícita se for única a comprovar a inocência do réu, conforme já entendido pelo STF, pois: a um, não se vislumbra de que forma qualquer possibilidade do comportamento anterior da vítima com terceiros possa ser utilizado como justificador para a prática de crime contra a dignidade sexual por parte do réu, principalmente, se praticado meio de violência, grave ameaça, ou em razão da vulnerabilidade da vítima. E, a dois, o conflito aqui existente é com um dos fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito, sendo a ilegalidade da prova mero consectário.

Já em outra frente, é importante ressaltar que em momento algum comunga-se com uma limitação à plenitude de defesa. Entretanto, situação diversa é a que se coloca, pois a dignidade da pessoa humana num Estado Democrático de Direito é que não pode encontrar qualquer limitação, e, não caso em comento, não há qualquer justificativa para a sua mitigação, ainda que se trate de violência presumida em razão da vulnerabilidade, pois o STF já balizou entendimento que se trata de presunção absoluta, a qual só cede em situação de erro escusável sobre a idade da vítima.

Nessa senda, também é situação diversa daquela aqui colocada e que, mesmo fazendo-se incursões à intimidade da vítima, não haveria qualquer desvirtuamento da plenitude de defesa, mas, sim, o seu efetivo exercício, as incursões em relação ao exclusivo relacionamento entre vítima e réu, pois aqui está se falando da própria “causa de pedir” da ação penal e, portanto, não haveria que falar-se em limitações à amplitude de defesa em face à dignidade da pessoa da vítima.

Assim, temos que é papel do magistrado mitigar o princípio da amplitude de defesa frente a uma possível violação do princípio da dignidade da pessoa humana da vítima, quando em juízo para a defesa de fatos, se ataca a pessoa da vítima tentando desqualificar a mesma por questões de cunho comportamental e moral, cabendo a ele coibir tais excessos, pois, além de ser o destinatário de toda prova produzida em juízo, essa prova estará eivada de vício de inconstitucionalidade, sendo que é ele também quem preside as audiências e toda a instrução do feito.


[1] ESTEFAM, Andre, Direito Penal, Parte Geral, 2010, Ed. Saraiva, pg. 109/110.

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