Opinião

Reforma da Previdência deve se basear na realidade do Brasil, não de países da OCDE

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16 de abril de 2017, 7h30

No dia 8 de março, comemorou-se o Dia Internacional da Mulher; a data foi escolhida pela ONU em 1977, e essa comemoração foi conquistada depois de mais de um século de lutas históricas pela plena igualdade de direitos, o que era negado às mulheres. Mas será que no Brasil as mulheres devem comemorar conquistas e isonomia?

Segundo dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, divulgada pelo IBGE em 2013 [1], vivem no Brasil 103,5 milhões de mulheres, o equivalente a 51,4% da população. Segundo o IBGE, as mulheres brasileiras engravidam menos na adolescência, estudam mais que os homens e tiveram aumento na renda mensal, mas elas ainda ganham salários menores e têm dificuldades de ascensão na carreira.

O tema igualdade entre homens e mulheres divide opiniões no Brasil, tanto que a PEC 287/2016, que trata da reforma da Previdência, iguala a idade mínima para homens e mulheres aposentarem-se, 65 anos. Isso significa alterar a distinção entre gêneros que existia na Constituição de 1967 e que subsiste na Constituição de 1988.

Diante desse quadro, é necessário avaliar as regras sugeridas pela PEC 287 à luz da Constituição vigente. De fato, o princípio da isonomia ou, como também é chamado de princípio da igualdade é o pilar de sustentação do Estado Democrático de Direito. O sentimento de igualdade na sociedade moderna exige tratamento justo aos que ainda não conseguiram a viabilização e a implementação de seus direitos básicos e fundamentais, para que tenham uma vida digna [2]. O conceito de igualdade é de vital importância para a sociedade, a tal ponto, que para a filosofia, o núcleo da justiça é a igualdade, ou seja, o igual deve ser tratado de igual maneira e o desigual de forma desigual [3].

A igualdade material por outro lado é o instrumento de concretização da igualdade em sentido formal, tirando-o da letra fria da lei para viabilizá-lo no mundo prático. Deve ser entendida como o tratamento igual e uniformizado de todos os seres humanos, bem como sua equiparação no que diz respeito à concessão de oportunidades de forma igualitária a todos os indivíduos [4]. O caráter peculiar da igualdade garantida a homens e às mulheres titulares do direito a igualdade entre gêneros [5] é que, ao contrário do direito de igualdade formal, cujas principais concretizações se dão pela proibição de discriminação negativa, a isonomia entre homens e mulheres exige ações concretas por parte do Estado para evitar discriminação de gênero e tratamento arbitrário.

Diante do debate filosófico e jurídico sobre o tema igualdade e de sua importância para a sociedade, questiona-se: Há igualdade de gênero no Brasil? A PEC 287/2016, ao equiparar homens e mulheres para obtenção de benefício previdenciário, está em conformidade com as regras Constitucionais? A equiparação imediata é a melhor técnica legislativa?                   

A PEC 287/2016 estipula alteração de idade mínima, 65 anos, e mudança no tempo de contribuição para que homens e mulheres tenham direito a benefício previdenciário de aposentadoria; o tempo de contribuição exigido salta de 15 para 25 anos, sem qualquer regra de transição temporal ou que estabeleça igualdade real nas remunerações de homens e mulheres, que ganham 82% menos que os homens (segundo exposição de motivos da PEC 287), o que demonstra que a isonomia entre homens e mulheres não foi efetivamente concretizada.

O argumento de que as mulheres vivem mais do que os homens, como relata a citada exposição de motivos, não é suficiente para igualar homens e mulheres para a obtenção do acesso a benefícios, é necessário analisar o contexto histórico e social. A referida alteração desconsidera a herança social do patriarcado brasileiro e a desigualdade que existe no mercado de trabalho. A rotatividade, a intermitência do trabalho, a informalidade contribuem para que grande parte dos trabalhadores não consiga alcançar 25 anos de contribuição. No caso das mulheres, há outra peculiaridade: elas assumem grande parte dos afazeres domésticos, fatores que dificultam o acesso ao mercado formal e por isso elas terão mais dificuldade de acumular os anos de contribuição necessários para a aposentadoria integral. Hoje a contribuição de 15 anos exclui muita gente. Para as diaristas, por exemplo, é fator que contribui para a falta de proteção previdenciária, e a ausência da referida proteção é ruim para o país, pois aumenta gastos com assistencialismo.

O Ipea fez cálculos e descobriu que, no futuro, 47,3% das mulheres não alcançarão os 25 anos de contribuição [6]. Para os homens, esse percentual será de 30%. Essa reforma afetará ambos os gêneros, mas as mulheres sofrerão mais por questão de gênero o que é apontado nos estudos do IBGE.

É fato que a situação das mulheres no Brasil está evoluindo, mas, ainda é muito distante da realidade dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – parâmetro utilizado pelo governo como referência de alteração da legislação previdenciária. Nesses países, homens e mulheres aposentam-se com a mesma idade em mais da metade de uma lista de 51 países; no entanto, a realidade econômica e social dos membros da OCDE citados é distinta da realidade brasileira. Entre os países que apresentam as mesmas condições para homens e mulheres aposentarem-se estão Islândia e Noruega, países com alto índice de desenvolvimento e de isonomia entre homens e mulheres. Nessas nações, a idade mínima para se aposentar é 67 anos, a mais alta. Depois estão Estados Unidos, Portugal e Irlanda, com 66 anos [7].

Nos Estados Unidos, a idade de referência para aposentadoria varia, de 66 a 67 anos, de acordo com o ano de nascimento. Mas, para obtenção de um benefício proporcional, a idade mínima é de 62 anos [8]. Na Alemanha: 65 anos, aumentando 1 mês a cada ano, de 2012 a 2023, serão aumentados a 66 anos. De 2023 a 2029, aumentará 2 meses a cada ano, até 67 anos. Na Espanha, Real Decreto Legislativo 8/2015 [9], artigo 205.1: 67 anos de idade para aposentadoria ou 65 anos e 38 anos e 6 meses de contribuição, a partir de 2027 (disposição transitória sétima). Em 2017 é de 65 anos e 5 meses ou 65 anos e 36 anos de contribuição). Essa é uma idade de referência, pois há a possibilidade de idade menor, proporcional, para casos como desemprego involuntário (artigos 206 a 209). Há igualdade de gêneros nos requisitos, mas há um adicional (de 5 a 15%), a ser pago de acordo com o número de filhos (artigo 60). Em Portugal, 66 anos e 3 meses em 2017, 66 anos e 4 meses em 2018. A idade mínima pode ser de até 52 anos, para casos de desemprego involuntário, com redução do benefício [10].

É importante constatar, que nos países da OCDE, regras de transição foram elaboradas para tutelar a população, e, em relação à idade mínima, nesses países, ela difere uma das outras, evidenciando que as especificidades sociais são avaliadas pelos legisladores desses países, respeitando-se a dignidade do homem e a segurança jurídica [11] dos cidadãos habitantes dos países membros da OCDE.

O Fórum Econômico Mundial calcula regularmente um indicador sintético de desigualdade de gênero em quatro dimensões: saúde, educação, economia e política. Em 2016, o Brasil posicionou-se em 79 num ranking de 144 países, principalmente devido aos bons resultados em termos de educação e saúde. Já nos indicadores de igualdade política e econômica entre homens e mulheres, a posição do Brasil foi 86 e 91, respectivamente, sendo que o indicador de desigualdade salarial para qualificações semelhantes ficou na 129ª. Classificação entre 144 países [12].

O desassossego com o envelhecimento populacional para uma discussão atuarial de grupos, como mulheres, ou qualquer outro, atenta contra os objetivos protetivos da Previdência Social no Brasil, que é um regime de repartição e benefício definido, em oposição a um regime de capitalização de contribuição definida, o argumento de ‘quem vive mais paga mais’ é impróprio e apela para o conflito distributivo em um momento de alta disputa política e econômica [13].

Para estabelecer alteração no diferencial de idade para aposentadoria de homens e mulheres, é necessário reduzir as desigualdades de gênero em nossa sociedade, assim como ocorreu nos países membros da OCDE. Uma alternativa, segundo estudo do Ipea, é criar uma cesta de indicadores que espelhem essa redução, ou, pelo menos, alteração gradual na idade mínima para aposentadoria das mulheres do Regime Geral da Previdência Social. No caso, não se trata de defender o diferencial de idades como referência para concretização da igualdade de gênero em nossa sociedade, mas, sim, de pensar em políticas públicas a partir de dados reais da sociedade brasileira. Ignorar as desigualdades de gênero que existem em nosso país é penalizar parte considerável da população, sem que esteja sendo oferecida alternativa para solucionar os problemas que geraram as desigualdades.

O Estado deve cumprir o papel de oferecer alternativas e compensações aos cidadãos e, enquanto, a desigualdade de gênero persistir, o diferencial de idades como mecanismo de equalização deve existir para as mulheres no Regime Geral da Previdência Social [14].

No Brasil, o princípio da dignidade humana e a proibição do retrocesso social obrigatoriamente devem ser avaliados pelos legisladores e operadores do Direito, respeitando-se as peculiaridades da sociedade brasileira, sendo necessária uma regra de transição na Reforma da Previdência que tutele as mulheres no Regime Geral da Previdência Social, considerando-se a expectativa de direito e o contexto histórico do país.

O tema previdenciário é de vital importância para qualquer nação, pois um país assistido por uma previdência social estruturada e com alto índice de inclusão previdenciária equivale a direitos sociais e individuais consolidados e efetivados, fatores que correspondem a um país desenvolvido socialmente e com elevadas chances de crescimento econômico. Portanto, é fundamental o debate democrático sobre a temática e a percepção por parte da sociedade e de seus representantes de que o Brasil está vivenciando um momento de transição histórica, assim como os demais países democráticos. É sempre bom lembrar que os legisladores não podem perder de vista que as leis nacionais são elaboradas para homens e mulheres reais [15] da sociedade brasileira. A realidade nacional deve ser fonte de inspiração para os legisladores nacionais e não a realidade norueguesa ou a dos países membros da OCDE.

Destarte, no ensejo do debate acerca da Reforma da Previdência, verdadeira reestruturação do Estado Social pela qual a sociedade brasileira vem passando, a conclusão a que chegamos é uma pergunta  inevitável: o que é a realidade, no tratamento dado pelo Estado a homens e mulheres? A igualdade de requisitos para aposentadoria, que o Estado propõe indistintamente para homens e mulheres, aos 65 anos de idade, é algo compatível com a realidade? Ou servirá apenas para preservar desigualdades? Que realidade você acha mais justa e equânime?

É sua a palavra, leitor!

[1] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – IBGE :: Instituto …>

<www.ibge.gov.br/home/estatistica/pesquisas/pesquisa_resultados.php?id_pesquisa=4>

Pesquisa(s):. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, População). Obtém informações anuais sobre características demográficas e .. data de acesso 21/03/2017.

[2] SEM, Amartya. A ideia de justiça, Editora Companhia das Letras: 2009, pp. 19-142.

[3] RADBUCH. G, Filosofia do Direito, Editora Arménio Amado, Coimbra: 1979,  pp. 45-67.

[4] NETO, Cláudio Pereira de Souza e outros, Teoria da Constituição – estudos sobre o lugar da política no Direito Constitucional, Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2003, p. 6. Apenas em contexto de igualdade, poderiam prevalecer a vontade geral e a ética comunitária que é proposta pela isonomia, em substituição ao individualismo do homem hobbesiano, criticado por Rosseau. Na obra de Rosseau a igualdade material é tão importante que o autor acredita que a igualdade constitui condição e objetivo do governo democrático” (Nota da autora)

[5] Art. 5º., I  Constituição – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

[6] < Nota Técnica – 2017 – março – Número 35 – Disoc – Previdência e ..>. <www.ipea.gov.br >› Início › Publicações – Notas Técnicas 20 de mar de 2017 – Nota Técnica – 2017 – março – Número 35 – Disoc. Previdência e gênero: por que as idades de aposentadoria de homens e mulheres devem ..

[7] Brasil – OECD <https://www.oecd.org/brazil/Education-at-a-glance-2015-Brazil-in-Portuguese.pd>

“Education at a Glance: OECD Indicators” é a principal fonte de informações relevantes e …. verdadeiro para apenas 51% das mulheres com ensino superior.

[8] < https://www.ssa.gov/planners/retire/ageincrease.html> data de acesso 21/03/2017

[9] < http://www.seg-social.es/> data de acesso 21/03/2017

[10] < http://www.seg-social.pt/pensao-de-velhice> data de acesso 21/03/2017

[11] Valores considerados superiores na interpretação constitucional: dignidade da pessoa humana e segurança jurídica. Vide: JAVIER DÍAZ. F Revorio, Valores Superiores e interpretatióm constitucional, Centro De Estudios Políticos y Constitucionales: Madrid, 1997, pp. 117-123.

[12] O salário médio de uma mulher brasileira com educação superior corresponde a apenas 62% do de um homem com a mesma escolaridade, segundo relatório divulgado nesta terça-feira pela Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE), com dados de 46 países. O número coloca o Brasil, empatado com o Chile, no primeiro lugar do ranking de maior discrepância de renda entre gêneros no mercado de trabalho.

No país, 72% de homens que concluíram a universidade ganham mais de duas vezes a média de renda nacional. Entre as mulheres, essa taxa diminui para 52% (dados OCDE).

[13] <Nota Técnica – 2017 – março – Número 35 – Disoc – Previdência e ..>. <www.ipea.gov.br >› Início › data de acesso 21/03/2017

[14]< Nota Técnica – 2017 – março – Número 35 – Disoc – Previdência e ..>. <www.ipea.gov.br >› Início › … data de acesso 21/03/2017

[15] RADBRUCH G, El Hombre En el Derecho, Editora Depalama: Buenos Ayres, 1980, pp. 17-31.  “(…) Um ordenamento jurídico não pode ser apartado do homem real, individual que transita pela terra, sobre todos os caprichos e humores (…). Não é sobre o homem empírico que se conduz o caminho para um ordenamento jurídico, caso contrário ocorreria a negação do próprio ordenamento jurídico” (…). 

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