Opinião

Tribunais de contas brasileiros necessitam de órgão de controle

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11 de abril de 2017, 6h48

Devemos ver com satisfação o fato de a imprensa e a opinião pública finalmente haverem atentado para a realidade dos tribunais de contas no Brasil.

As notícias recentemente divulgadas, que envolvem casos de corrupção e que dão conta, em diversos estados e municípios, de um grande número de conselheiros que respondem a ações judiciais e até mesmo condenados por improbidade administrativa ou outros ilícitos, inclusive penais, descortinam um triste cenário que desafia mudanças. [1]

Em meio aos que defendem a extinção dessas cortes — para muitos desnecessárias —, tramita, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à Constituição 329/2013, que altera a forma de composição dos tribunais de contas; submete os membros do Ministério Público de Contas ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e os conselheiros e ministros dos tribunais de contas ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e dá outras providências. Nesta semana haverá audiência pública para tratar do tema e a expectativa é de que as propostas sejam votadas em quinze dias.

A implementação de reformas, como o fim das indicações políticas, revela-se extremamente salutar. Equivoca-se quem pensa, contudo, que as únicas mazelas desses tribunais repousam na corrupção generalizada, a incluir os advogados que traficam decisões, e no modo de investidura de seus membros. Outro tema que merece atenção, até porque imbricado, é a absoluta falta de controle de suas atividades e, com isso, a ausência de uma disciplina constitucional que compreenda a fiscalização de seus membros, no caso, e em especial, dos conselheiros e procuradores do ministério público de contas — órgão especial previsto em suas estruturas para funcionar como custos legis.

Embora órgãos auxiliares do Poder Legislativo e providos de suas próprias leis orgânicas, os tribunais de contas não possuem previsão de nenhuma esfera correcional superior que possa funcionar para reprimir eventuais abusos e ilegalidades cometidos pelos seus integrantes no exercício das funções que lhes cabem. A competência para eventual censura, por ausência de previsão legal mais clara, fica à mercê de interpretações doutrinárias — já que as normas constitucionais que os regem são insuficientes para disciplinar e definir as sanções e a quem compete aplicá-las — ou limitada às corregedorias das próprias cortes, sujeitas a toda sorte de injunções internas.

De modo a retratar também a desestruturação institucional e ética do país, os tribunais de contas revelam hoje, melhor seria dizer há décadas, uma grande incidência de atos ilegais praticados pelos seus membros no exercício de suas funções, fruto, em grande medida, da forte politização no processo de nomeações dos conselheiros, o que, na prática, submete essas cortes a injunções políticas ou estritamente pessoais, aparelhando-as e desvirtuando-as para o uso de interesses privados e partidários, bem como acometendo-as dos mesmos vícios que comprometem o desempenho das esferas públicas de poder no Brasil.

É que, de há muito, os tribunais de contas são usados para resolver problemas de ordem política, resultando que passaram a ser integrados principalmente por ex-parlamentares, que não necessariamente reúnem os requisitos constitucionais que consistem em notórios conhecimentos sobre administração e contas públicas, idoneidade moral e reputação ilibada.[2]

Por outro lado, a dinâmica dos julgamentos proferidos por essas cortes revela, em boa parte das vezes, ausência de maior apuro técnico e jurídico na apreciação dos temas que lhes são afetos, isso quando não deparamos com atuações que exorbitam suas competências e jurisdições. Apesar de dotados normalmente de servidores qualificados em suas áreas técnicas, com grave recorrência, é possível perceber, no âmbito desses tribunais, decisões desamparadas de mínima legalidade, bem como violações ao devido processo legal, às prerrogativas dos advogados, sobretudo os públicos, e, até mesmo, o cometimento de crimes de abuso de autoridade, inclusive por parte de membros dos ministérios públicos de contas que, não poucas vezes, arvoram-se em exercer prerrogativas não previstas em lei.

Em que pesem as suas relevantes funções, casos como o exercício do poder de requisição, sem amparo legal, pelos procuradores dos ministérios públicos de contas, o recebimento e tramitação de supostas denúncias protegidas pelo anonimato, o que é vedado pela Constituição, e a responsabilização objetiva de advogados públicos por atos de gestão que não lhes competem, em flagrante contrariedade ao posicionamento da doutrina e da jurisprudência, notadamente a do Supremo Tribunal Federal, têm permitido aos membros dos tribunais de contas atuar em flagrante desvio, utilizando de suas importantes competências para, muitas vezes, perseguir, intimidar e achacar governantes, agentes públicos, servidores, cidadãos e empresários.

Neste contexto, portanto, o aprimoramento dos meios de controle dos atos desses tribunais de feição administrativa, bem como a exigência de maior qualificação técnica de seus integrantes, longe de significar a fragilização de suas atribuições, em verdade poderá representar importante passo em nosso processo de consolidação institucional e de avanço civilizatório. Afinal, seus membros são agentes públicos, o que lhes impõe, além das cautelas indispensáveis, responder pelos equívocos e excessos que eventualmente venham a cometer, na medida em que não podem pairar acima da Constituição e das normas legais em geral, vale dizer, não estão acima do bem e do mal, porque, apesar de investidos em funções relevantes, estão sujeitos ao erro e a outros pecados menores e maiores.[3]

No bojo das propostas em discussão na Câmara dos Deputados, destaca-se, na referida PEC, a previsão de que os ministros e conselheiros dos tribunais de contas e os integrantes dos ministérios públicos de contas se submetam, respectivamente, ao controle administrativo, financeiro e disciplinar do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, sob o argumento, dentre outros, da economicidade, por se considerar que existem menos de quatrocentos conselheiros e ministros no país, o que não justifica a criação de um conselho próprio, e com vista a atender antiga pretensão dos integrantes da carreira de procuradores dos ministérios públicos de contas, que há muito pleiteiam autonomia administrativa e orçamentária, mediante espécie de inserção no rol das carreiras que pertencem ao Ministério Público.

A solução, entretanto, não parece a mais adequada constitucionalmente. Com efeito, os tribunais de contas não compõem a estrutura do Poder Judiciário. Seus conselheiros, e mesmos os ministros do Tribunal de Contas da União (TCU), embora, no que couber, sejam regidos pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), para efeitos de se assegurar as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens, não pertencem ao Poder Judiciário. Os ministérios públicos de contas, por sua vez, não possuem perfil institucional próprio, tratando-se de órgãos integrantes dos tribunais de contas, ainda que reconhecida a independência para atuarem como fiscais da lei.[4]

Segundo o artigo 92, I-A, da Constituição Federal, e na esteira de posição do próprio STF, como se extrai do julgamento da ADI 3.367-DF, o CNJ é um órgão interno de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura, compondo a estrutura, portanto, do Poder Judiciário. Os tribunais de contas, diferentemente, vinculam-se ao Poder Legislativo, do qual são órgãos auxiliares.

Por mais que não componham propriamente o Poder Legislativo e julguem, sob o aspecto técnico-jurídico, as contas públicas, os tribunais de contas brasileiros desempenham jurisdição meramente administrativa. Não exercem, portanto, atividade judicante, de modo que incluí-los no rol dos submetidos ao controle de legalidade do CNJ representa a criação de apêndice nas competências desse conselho que não se coaduna com a disciplina constitucional instituída, na medida em que implica inobservância ao regime de separação de poderes e, com isso, violação a cláusula pétrea.[5]

O texto constitucional, ademais, não inclui os ministérios públicos de contas no âmbito do controle exercido pelo CNMP, sendo certo que não constam do rol do artigo 128 da Constituição Federal, isto é, o constituinte originário jamais conferiu ou pretendeu conferir a eles equiparação com o Ministério Público comum. O STF assim já decidiu em reiterados casos, a exemplo da ADI 789-DF, em que restou consignado que os ministérios públicos de contas não gozam de autonomia administrativa, financeira e orçamentária, cabendo ao TCU e, por simetria, aos tribunais de contas estaduais, a iniciativa de leis sobre organização, incluindo os ministérios públicos de contas a eles vinculados.

O próprio CNMP já decidiu, em mais de uma oportunidade e pelas razões explicitadas, que os ministérios públicos de contas não se submetem ao seu controle administrativo, financeiro e disciplinar. Assim, embora, neste tocante, ou seja, a previsão de autonomia aos ministérios públicos de contas, a proposta de emenda não padeça, em princípio, de vício de inconstitucionalidade, porquanto possível alterar o regime desses "parquets especiais", a medida parece, ainda assim, caminhar em descompasso com os interesses da sociedade e no que diz respeito à eficiência e organicidade dos tribunais de contas.

Por acrescentar disposições ao artigo 130 da Constituição Federal, conferindo autonomia aos ministérios públicos de contas e ampliando suas composições para um mínimo obrigatório de sete membros, a proposta cria nítido aumento de despesas para os estados, lançando por terra o argumento da economicidade em não se criar um conselho próprio de fiscalização e fazendo prevalecer nítida pretensão corporativista há muito perseguida pelos membros dos ministérios públicos de contas.

Parece-nos, assim, e de acordo com outras propostas que tramitam no Congresso Nacional, que a solução passa pela criação de um conselho próprio, o Conselho Nacional dos Tribunais de Contas, com atribuições para fiscalizar, administrativa e disciplinarmente, as cortes de contas do país. Trata-se de uma pretensão antiga, atualmente defendida por entidades antes refratárias à ideia, como a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas (Atricon), e mais consentânea com o regime constitucional a que submetidas as cortes de contas brasileiras.

A criação desse novo conselho, ainda que enxuto e embora cumpra reconhecer que a quadra histórica exige austeridade nos gastos públicos, não havendo espaço para a criação de sucessivos órgãos burocráticos responsáveis por incrementar as despesas ao encargo do contribuinte, revela-se constitucionalmente mais adequada. Necessário ter em vista, por fim, que os tribunais de contas podem prestar relevantes serviços ao bom funcionamento de um estado republicano, desde que, além dos mecanismos indispensáveis de controle, as preocupações se voltem às suas reestruturações, passando pela forma de investidura de seus membros, onde repousa, em boa parte, a gênese de todas as mazelas.


[1] Segundo levantamento da ONG Transparência Brasil, um em cada quatro conselheiros responde a processo ou já foi condenado judicialmente por ilegalidades que vão do peculato à improbidade administrativa.

[2] Ainda segundo a Transparência Brasil, de um universo de 233 conselheiros ativos e inativos incluídos na pesquisa, metade é de ex-deputados estaduais; 91 foram secretários estaduais ou municipais, 48 exerceram mandato de vereador e 22 são ex-prefeitos. Cerca de 60 também têm relação de parentesco com políticos, incluindo governadores.

[3] A PEC que tramita na Câmara dos Deputados estipula critérios técnicos para a investidura nos cargos de conselheiros e ministros dos tribunais de contas, com a previsão, inclusive, de que sejam também compostos por pessoas oriundas da classe de auditores de controle externo e dos conselhos profissionais das áreas jurídica, de administração, economia e contabilidade.

[4] A proposta peca também por prever que ao TCU caberá o planejamento e estabelecimento de políticas de organização do Sistema dos Tribunais de Contas, conferindo a ele a iniciativa de elaborar lei complementar que fixe normas gerais relativas ao processo de contas, bem como procedimento extraordinário de uniformização da jurisdição de contas, a ser processado autonomamente e em abstrato pelo TCU, em casos de repercussão geral, diante de decisão exarada por tribunal de contas que, aparentemente, contrarie dispositivo da Constituição Federal ou de lei nacional. Em grave violação ao princípio federativo, isto é, constituindo indevida ingerência de uma esfera da federação em outras, e sem compreender que os tribunais de contas não formam um complexo federal ou possuem instâncias revisionais, cumprindo aos estados organizar seus respectivos tribunais de contas, a PEC, neste tocante, é flagrantemente inconstitucional.

[5] Diferentemente do que ocorre em Portugal, por exemplo, em que o Tribunal de Contas pertence ao sistema judiciário.

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