Contaminação total

PGR tenta emplacar tese que facilita seu trabalho para condenar Renan, diz defesa

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11 de abril de 2017, 13h48

A tese que a Procuradoria-Geral da República tenta emplacar para condenar o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) por lavagem de dinheiro pode ter sérias consequências para o sistema político. Em uma das denúncias contra o senador, a PGR afirma que o ingresso de dinheiro de origem ilegal numa conta contamina todas as quantias que estiverem nela no momento do depósito. Portanto, quem receber quantias dessa conta pode de ser processado por lavagem.

De acordo com a defesa do senador, feita pelo advogado Luís Henrique Machado, a interpretação é perigosa, embora sirva para facilitar o trabalho de investigação. O correto, diz ele, é que se investigue todo o caminho do dinheiro, e não apenas a origem, para que se possa acusar alguém por lavagem. “Não basta lançar a maçã podre no cesto misturando-a com as outras. É necessário provar se ela em contato com as outras a contaminou ou não.”

Na denúncia, a PGR chama a tese de “mescla”, que é como o procurador-geral, Rodrigo Janot, traduziu o conceito de commingling. Na definição do procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da “lava jato” em primeiro grau, commingling é “a mistura de ativos de origem ilícita com ativos de origem lícita".

A única citação expressa à tese está numa nota de rodapé da denúncia feita pela PGR contra o senador por suas relações com a construtora Serveng. De acordo com a denúncia, a empreiteira pagou R$ 800 mil ao senador para que ele atuasse para manter Paulo Roberto Costa na diretoria de serviços da Petrobras e garantisse a assinatura de contratos superfaturados entre a companhia e a estatal.

Sem fontes
Luís Henrique Machado afirma que a PGR lançou a tese sem grandes detalhamentos, muito menos rigor científico. Ele explica que a forma que o conceito foi aplicado na acusação vem do direito anglo-saxão, mas ainda é incipiente no Brasil. Segundo o advogado, as bibliotecas do Senado e do Supremo não têm obras sobre o assunto e livros sobre Direito Penal Econômico e lavagem de dinheiro tratam do tema apenas superficialmente.

Na Alemanha, onde Machado faz seu doutorado, a tese é discutida desde o início dos anos 1990. Lá, diz ele, há uma separação entre a “contaminação total” e a “contaminação parcial” do dinheiro. E o conceito aplicado pela Justiça alemã a casos de lavagem é o da contaminação parcial. O Tribunal Constitucional da Alemanha, diz Machado na petição de resposta à denúncia contra Renan, ainda não discutiu o assunto, mas afirma que os efeitos da pena devem respeitar os princípios da culpabilidade e da proibição do excesso.

De acordo com o advogado, a tese da contaminação total, ou da mescla, como chama a PGR, viola ambos os princípios, que também estão na Constituição Federal Brasileira, mas não na Constituição dos Estados Unidos. “A teoria da “contaminação total” viola princípios constitucionais como a proporcionalidade e a proibição de excesso, uma vez que a parcela menor ilícita macularia um capital majoritariamente formado por ativos lícitos”, afirma, em artigo publicado pela ConJur nesta terça-feira (11/4).

No texto, Machado afirma que a contaminação total é inconstitucional porque faz com que o acusado responda por uma quantidade de dinheiro maior do que a auferida com a atividade criminosa apontada como antecedente à lavagem. E o juiz Sergio Moro, responsável pela “lava jato” em Curitiba, em seus textos sobre o tema, diz que quanto maior a quantia lavada, maior deve ser a pena.

“Adicione-se que a teoria da “contaminação total” infringe o princípio da culpabilidade, porquanto ao responder pelo montante integral, e não somente pelo valor proveniente do crime antecedente, burla-se a premissa básica inerente ao princípio de que cada pessoa deve responder por seus atos “na medida de sua culpabilidade” — em violação chapada ao artigo 29 do Código Penal”, diz Machado, no artigo.

Caminho do dinheiro
A aplicação correta da tese, segundo o advogado, seria a de identificar o caminho do dinheiro e comprovar que o que foi gasto por Renan em sua campanha é o mesmo doado pela Serveng ao PMDB. A denúncia do caso, dizem criminalistas que acompanham o processo, é mais uma tentativa de criminalização do sistema político. Um passo a mais em relação ao caso do senador Valdir Raupp (PMDB-RO).

De acordo com a denúncia da PGR, a Serveng doou os R$ 800 mil ao Diretório Nacional do PMDB nas eleições de 2010. Depois, esse dinheiro foi para o Diretório Regional do PMDB em Alagoas, estado de Renan. E Renan contabiliza em sua prestação de contas verbas oriundas do Comitê Regional.

Para demonstrar o caminho do dinheiro e justificar o pagamento, a PGR diz que a Serveng nunca havia ganhado tanto dinheiro com a Petrobras quanto depois que passou a doar para o PMDB. De 2003 a 2009, diz a denúncia, a estatal pagou R$ 51 milhões à companhia. Entre 2010 e 2014, período das doações investigadas, foram pagos R$ 197 milhões.

A ligação com Renan está no fato de o dinheiro ter entrado no Diretório Nacional do PMDB, na época presidido por Michel Temer (PMDB), hoje presidente da República. O senador Eunício Amaral (PMDB-CE) era o tesoureiro. Ambos, segundo o MPF, são “notórios aliados de Renan”.

Já a ingerência do senador no Diretório Regional de Alagoas do PMDB está no fato de ele ter sido presidido por Maria Inez Santos, militante do partido, morta em 2013. Renan era ligado a ela porque foi ao enterro e lamentou a morte, narra a PGR, na denúncia.

Ato de ofício
Esses fatos mostram como o dinheiro que entrou no PMDB era para abastecer a campanha de Renan e que ele tinha controle sobre o caminho que a verba percorreria. São indícios do cometimento de corrupção ativa pela Serveng e passiva por Renan, no entendimento do MPF.

Luís Henrique Machado alerta para o perigo dessa construção. Em seu artigo, ele cita o exemplo do professor Stephan Barton, da Universidade de Bielefeld, na Alemanha, em livro lançado em 1993. O professor conta que o problema da tese da contaminação total por vício de origem é que todo mundo que tocar no dinheiro com a mesma origem corre o risco de ser processado por lavagem de dinheiro.

Ele cita o exemplo de um carro: um homem consegue dinheiro vendendo drogas e o deposita em sua conta — a partir daí, sua conta inteira estaria maculada, alerta o professor. O homem compra um carro e paga parte do automóvel com o dinheiro que conseguiu com as drogas. Anos depois vende o carro e o comprador o repassa para um ferro velho, que o desmonta para revender as peças.

Assim, prevalecendo a tese, o carro se transformaria em produto de um crime e todas as operações de compra e venda poderiam ser consideradas lavagem de dinheiro — com todos os envolvidos podendo ser processados por isso. Seria o mesmo que dizer que “tudo o que contribui para o resultado é causa”, completa Luís Henrique Machado.

“O simples ingresso de valores na conta do Diretório Nacional do PMDB não configura automaticamente os verbos do tipo ―ocultar‖ ou ―dissimular‖ da lavagem”, afirma o advogado, na petição que fez para responder às acusações contra seu cliente. “É necessário, portanto, um passo adiante. Isto é, saber se o ativo supostamente ilícito ao ingressar na conta chegou a contaminar ou não os valores ali (já) existentes.”

INQ 4.216
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