Academia de Polícia

O Código de 1941 não pode ser o paradigma normativo fundamental da investigação

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

11 de abril de 2017, 8h05

Spacca
O regramento normativo da investigação criminal não pode se ater somente às regras e princípios do Código de Processo Penal de 1941, cujas marcas autoritárias e inquisitivas[1] são reveladoras de típico governo de exceção[2]. Disso ninguém duvida no plano teórico, embora alguns ainda resistam em sua efetivação ou operacionalidade prática, especialmente no cotidiano da Justiça criminal— espaço em que a pressão midiática e popular costumeiramente fala alto.

Não raras vezes sofremos com o desprezo pelo valor jurídico do texto constitucional, visto pelo senso comum como “espécie de manifesto ou programa político” de baixa concretude e, portanto, menor relevância em comparação com as normas infraconstitucionais[3]. Trata-se de uma absoluta inversão lógico-normativa que conduz a tragédias reais e coloca em xeque a própria democracia[4].

É necessário, contudo, romper com essa permanência autoritária e levar a sério a supremacia da Constituição. Mesmo porque, sem “oxigenação constitucional”, não há validade normativa[5]. A Constituição representa, em toda a sua substancialidade, o “topos hermenêutico que conformará a interpretação jurídica do restante do sistema”[6]. Não se pode esquecer que a desconfiança em relação ao exercício do poder, inclusive do legislador ordinário, é um dos principais motivos da primazia constitucional[7].

Por isso, a implementação da “força normativa da Constituição”[8] deve ser compromisso de todos os atores jurídicos, com o objetivo de assegurar incessantemente a máxima efetividade dos direitos fundamentais. A racionalidade jurídica ora proposta, de viés emancipatório, tem “o Estado não como realidade em si justificada, mas, antes, como construção voltada à integral satisfação dos direitos fundamentais”[9]. Segundo Clève, “não são os direitos fundamentais que haverão de ficar à disposição do Estado (em particular das maiorias ocasionais). Antes, é o Estado que haverá de permanecer à disposição dos direitos fundamentais” como mecanismo de sua própria legitimação[10]

Justamente com esse escopo deve ser vista a investigação criminal constitucional — “instrumento de efetivação das garantias constitucionais”[11]. A esperança, talvez utópica, é a de um sistema de Justiça criminal para além da mera instrumentalização da persecução penal, e sim de “concretização do projeto constitucional”[12]. Segundo Geraldo Prado, as novas democracias constitucionais impõem esse desafio de legitimação jurídica (constitucional) e política ao campo penal, que passa, dentre outras coisas, pela “função de assegurar diariamente a plenitude dos direitos fundamentais nos casos concretos”[13].

Mas não é só. A instrução preliminar criminal, além de exigir conformação plena e urgente à Constituição, também deve passar por ajuste de convencionalidade, ou seja, de normatividade convencional. É preciso adequar a legislação interna às normas de Direito Internacional em relação às quais o Brasil firmou compromisso político e jurídico no sentido de sua concretização, principalmente aquelas voltadas à tutela de direitos humanos.

Flávia Piovesan destaca que a essência da luta por direitos humanos consiste rigorosamente em “proteger a dignidade e prevenir o sofrimento humano, a fim de que toda e qualquer pessoa seja tratada com igual consideração e profundo respeito, tendo o direito de desenvolver suas potencialidades de forma livre, autônoma e plena”[14]. Logo, evidente a relação entre o núcleo humanitário de tutela e o campo processual penal.

Aliás, como diria Paiva e Lopes Jr., indispensável uma “nova política-criminal, orientada a reduzir os danos provocados pelo poder punitivo a partir do diálogo (inclusivo) dos direitos humanos”. Espera-se, de verdade, uma “mudança cultural, não só para que a Constituição efetivamente constitua-a-ação, mas também para que se ordinarize o controle judicial de convencionalidade”[15].

Enfim, não há opção à investigação criminal. Não se pode simplesmente ignorar os tratados internacionais, especialmente de direitos humanos. São fontes normativas e gozam de vigência e eficácia na ordem jurídica interna (após o devido procedimento normativo).

Com efeito, apesar das divergências quanto ao status normativo dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil[16], fica clara a necessidade de efetivação do modelo de dupla filtragem, a saber, constitucional e convencional.

Vale sublinhar, ainda, nessa dimensão de um sistema criminal conforme a ordem internacional humanitária, a força da Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida por Pacto de São José da Costa Rica, enquanto verdadeiro “paradigma de controle da produção e aplicação normativa doméstica”[17].

Não há, de fato, mais lugar para os atores jurídicos de filiação irrestrita e exclusiva aos códigos, especialmente o processual penal de 1941, num ambiente democrático. A postura exegeta fundada na cartilha autoritária de Francisco Campos revela um modelo ultrapassado de jurista que não se coaduna com a postura garantista emancipadora que se espera dos agentes estatais (delegados, juízes, promotores etc.) num Estado de Direito.


[1] Sobre o tema, recomenda-se a leitura de importante pesquisa feita pelo professor Diogo Malan e publicada na Coleção “Matrizes Autoritárias do Processo Penal Brasileiro” – coordenada juntamente com Geraldo Prado. Cf. MALAN, Diogo. Ideologia Política de Francisco Campos: influência na legislação processual penal brasileira (1937-1941). In: _______; MELCHIOR, Antônio Pedro; SULOCKI, Victoria-Amália de. Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. Diogo Malan e Geraldo Prado (Org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 01 – 85.
[2] Segundo AGAMBEN, o “estado de exceção”, que “tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea”, consiste em “um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”, instaurador “de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político” (AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13).
[3] DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 5.
[4] Ferrajoli adverte sobre o sério risco à democracia diante dessa manobra de produzir “no senso comum o declínio dos valores da Constituição”. Lembra-nos que “uma democracia pode ser derrubada sem golpes de Estado formais se os princípios dela forem de fato violados ou contestados, sem que suas violações suscitem rebeliões ou ao menos dissenso” (FERRAJOLI, Luigi. Poderes Selvagens: a crise da democracia italiana. Trad. Alexander Araújo de Souza. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 14).    
[5] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material: aportes hermenêuticos. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 15.
[6] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 11 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 345.  
[7] DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 5.
[8] HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1991, p. 25.
[9] CLÈVE, Clèmerson Merlin. Apresentação. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 25.
[10] CLÈVE, Clèmerson Merlin. Apresentação. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 25.
[11] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 09 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 69.
[12] CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antônio Pedro. Teoria do Processo Penal Brasileiro: dogmática e crítica. v. I: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 1.
[13] PRADO, Geraldo. Crônica da Reforma do Código de Processo Penal Brasileiro que se Inscreve na Disputa Política pelo Sentido e Função da Justiça Criminal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de (Org.). O Novo Processo Penal à Luz da Constituição. v. 2. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 06.
[14] PIOVESAN, Flávia. Direito Internacional dos Direitos Humanos. Coleção Para Entender Direito. Marcelo Semer e Marcio Sotelo Felippe (Org.). 01 ed. São Paulo: Estúdio, 2014, p. 5.
[15] LOPES JÚNIOR, Aury; PAIVA, Caio. Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal. Revista Liberdades, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, n. 17, Set./Dez. 2014, p. 14. Disponível em: <http://www.revistaliberdades.org.br/>. Acesso em: 25 Jul. 2015.
[16] Consulte a respeito: MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direitos humanos. 01 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 172; PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 121; TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário no Brasil pós-88: (des)estruturando a justiça. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 48; STF RE 466.343/SP; STF RE 349.073/RS; STF HC 87.585/TO.
[17] LOPES JÚNIOR, Aury; PAIVA, Caio. Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal. Revista Liberdades, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, n. 17, Set./Dez. 2014, p. 14. Disponível em: <http://www.revistaliberdades.org.br/>. Acesso em: 25 Jul. 2015.

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  • Brave

    é delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.

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