Segunda Leitura

Visualizar e sentir o lugar do outro é essencial no mundo jurídico

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

9 de abril de 2017, 8h00

Spacca
Vladimir Passos de Freitas [Spacca]Vivemos tempos de radicalização. Basta uma divergência teórica, uma opinião política diversa, até torcer para diferentes clubes de futebol, para que as relações se transformem em trocas de palavras ásperas, vinganças e até agressão física.

Estes sentimentos ambíguos, muitas vezes descontrolados, como não podia deixar de ser, refletem-se no mundo do Direito e, em especial, nas profissões jurídicas. E assim, como se não bastassem as dificuldades próprias e normais da existência, a elas se adicionam outras, absolutamente desnecessárias.

As relações entre os operadores jurídicos são ignoradas nos cursos de Direito. Dá-se, cada vez mais, realce a temas como os tratados internacionais ou o reconhecimento de personalidade jurídica aos animais, e omite-se o básico, ou seja, saber como posicionar-se face aos conflitos do dia a dia.

Paradoxalmente, na vida profissional, o saber conduzir-se na arena jurídica acabará sendo muito mais importante do que a discussão de complexas e importantes teses, como o alcance dos direitos dos refugiados.

Manejar sentimentos, palavras e ações nos embates profissionais é uma arte que abrange diversas formas de conduta. Porém uma delas, que tem na simplicidade a sua maior grandeza, é essencial: colocar-se no lugar dos outros. O psiquiatra Augusto Cury, com perspicácia, observa que:

Toda vez que vir um jovem ou adulto individualista, radical, intolerante, excessivamente crítico e indiferente às necessidades dos demais, saiba que houve uma falha educacional. Quem aprende a se colocar no lugar dos outros se torna, espontaneamente, compreensivo, altruísta, preocupado em não ferir pessoas.[i]

Complementando o autor, quem é compreensivo, altruísta e não fere gratuitamente as pessoas, terá possibilidades muito maiores de ter sucesso em qualquer das profissões jurídicas. Vamos aos exemplos, sempre com foco no colocar-se no lugar dos outros.

a) Professores e alunos
No ensino jurídico, o relacionamento entre docentes e discentes nem sempre é pacífico. Mestres queixam-se de desatenção, falta de interesse dos alunos. Esta é uma verdade parcial. Jovens criados em um mundo totalmente diverso, tecnológico, perigoso, que lhes oferece péssimos exemplos de corrupção, não podem ser iguais aos de gerações que os antecederam. Cabe ao professor colocar-se no lugar deles, cativá-los, conhecer suas aspirações, entender suas dúvidas e amoldar-se ao novo mundo. O uso da tecnologia, por exemplo vídeos, é essencial. Discussão de sentenças, casos concretos, é importante. Visitas a locais relacionados com a matéria são interessantes. Por exemplo, quem ensina sobre agências reguladoras pode agendar uma visita à Anvisa.

b) Promotores, delegados de Polícia e crime de hermenêutica
Os agentes do Ministério Público estão muito preocupados com o Projeto de Lei 280/2016 do Senado, que no artigo considera crime de abuso de autoridade, punido com até 5 anos de reclusão, dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa, sem justa causa fundamentada. Com toda razão afirmam que isto lhes trará risco de serem processados, só porque deram à lei uma interpretação divergente. No entanto, é comum que, valendo-se do controle externo da Polícia, instaurem investigação contra delegados, atribuindo-lhes crime de prevaricação ou outro, porque discordam da medida tomada. Por exemplo, por entender que a tipificação não foi correta ou porque não lavraram Termo Circunstanciado em conflito de família como visitas a filhos. Tal fato ocorre em muitos estados, registrando-se que tem sido comum no Ministério Público de Santa Catarina. Pelo fato de não se colocarem no lugar do outro, agentes do MP acabam espalhando temor e desestimulando os policiais que trabalham. Agora o mal volta-se contra eles.

c) Juízes e advogados
Nas relações entre estes profissionais ocorrem inúmeros conflitos inúteis. Advogados são intimados diariamente de decisões judiciais. Gostam apenas das que lhes são favoráveis. Normal. A reação às que lhes são desfavoráveis é que distingue um bom e experiente advogado de um imaturo. Este sente-se obrigado a reagir, por vezes até de forma ofensiva, sem avaliar se é a melhor estratégia. Se a decisão deferiu três pedidos e indeferiu um, vale a pena agravar deste, Interpor mandado de segurança, correição parcial ou representar à corregedoria? Estas atitudes podem tirar o processo do caminho natural e atrasar por meses o cumprimento dos outros três. Será a estratégia mais adequada? Ou será melhor ver as três cumpridas e depois peticionar, com novos argumentos, pela única indeferida?

Outro aspecto. Advogado marca para falar com o juiz, mas não é atendido, porque outro colega se encontra no gabinete e dele não sai. Dois erros. O primeiro é do advogado, por tomar tempo excessivo do juiz. O outro é do juiz, por deixar aquele tempo se prolongar desnecessariamente, obrigando um terceiro a uma longa espera. Portanto, ao advogado cabe falar o necessário e se despedir e, ao juiz, se a conversa se prolongar em prejuízo de outros, solicitar que o advogado conclua, para que o direito do seguinte seja respeitado.

d) Peritos e advogados
Refiro-me a peritos judiciais em ações cíveis, cujas conclusões são da máxima importância para o desfecho da causa, praticamente um rascunho da sentença. Então, lógico que o advogado faça de tudo para obter um laudo favorável. O primeiro contato processual é feito através dos quesitos. E aí, por vezes, há exagero, seja quanto à quantidade, seja quanto aos detalhes. Quesitos excessivos, desnecessários, pouco claros, levam à má vontade do perito e isto não é bom. Mas pode ser que o Perito nomeado não seja especialista na matéria (por exemplo, engenheiro, avaliando questão contábil), seja suspeito (por exemplo, por ter sido empregado da parte) ou seja flagrantemente parcial (por exemplo, ativista de ONG ambientalista em perícia de natureza ambiental). Estes casos exigem cautela redobrada. Afinal, o perito é da confiança do juiz e este tenderá a prestigiá-lo. Assim, os fatos devem ser expostos com firmeza, mas sem enveredar para o ataque pessoal, de forma respeitosa e sem que atinjam o próprio juiz. Mas, principalmente, provados por documentos. É uma iniciativa sem volta, se for tomada é para provar e ganhar.

e) Servidores, colegas e chefias
As disputas internas nas unidades judiciárias existem, como em todos os locais em que se encontre o ser humano. Por vezes elas são simplesmente fruto de divergências pessoais e, em outras, ocorrem por disputa de funções mais bem remuneradas. Com ou sem razão, sempre existirão os que se consideram injustiçados. Mas uma coisa é certa. Os que trabalham com seriedade, dedicam-se além da rotina, sempre serão lembrados. Podem perder em um primeiro momento, porque quem manda atendeu a um pedido de alguém a quem devia favores ou outro motivo pouco elogiável, mas ao final será reconhecido. Em suma, ser injustiçado faz parte do pacote e reagir com profissionalismo e serenidade é o único caminho. Os que têm méritos, mais cedo ou mais tarde serão lembrados.

Em suma, aos que desejam ser bem sucedidos nas profissões jurídicas, fica o recado: prestem muita atenção nas suas relações pessoais. Como lembra Lígia Marques, “hoje se sabe que 85% das chances de qualquer profissional estão ligadas às suas atitudes pessoais e somente 15% aos seus conhecimentos técnicos”.[ii]


i Cury, Augusto. Mentes brilhantes, mentes treinadas. São Paulo: Ed. Planeta do Brasil, 2016, p. 105.

ii Marques, Lígia. OS SETE PECADOS do mundo corporativo. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 11.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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