Opinião

Eliminação do duplo filtro de admissibilidade foi tiro que saiu pela culatra

Autor

  • Lúcio Delfino

    é advogado pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro).

9 de abril de 2017, 11h03

Outros antes de mim identificaram o problema.[1] Mas a assiduidade com que tem ocorrido animou-me a escrever estas poucas linhas e, por intermédio delas, refletir sobre alternativas para superá-lo. Sobretudo, fui impelido pelo apetite de engrossar a fileira dos “chatos de plantão”, cravar bem fundo o dedo na ferida e, quem sabe, açular o ânimo dos nossos parlamentares para que coloquem em prática o (indispensável) trabalho de revisão do Código de Processo Civil, aprovado em 2015.

Embora a tratativa aqui esteja reservada a um de seus imbróglios, o que por si justificaria a intervenção legiferante, não se pode negar que a doutrina segue detectando distúrbios em número considerável, cuja atenção o Congresso Nacional não está autorizado a desdenhar.

Quando da sua elaboração, o anteprojeto do novo CPC teve múltiplas linhas mestras, entre as quais o propósito de simplificação procedimental: ansiava-se por imprimir à jurisdição mais brevidade e resultados. A eliminação do duplo juízo de admissibilidade em recursos de apelação foi uma das estratégias elaboradas com tal escopo, e que chegou incólume até a aprovação final do CPC 2015.

O que se fez foi suprimir na raiz a possibilidade de interposição de agravos de instrumento destinados ao destrancamento de apelações rejeitadas na origem, ou intencionados a reverter efeito no qual eram recebidas. A ideia não parecia ruim pois esse primeiro filtro era provisório, dependente daquele que viria em momento posterior, a ser operacionalizado pelo juízo ad quem. A economia burocrática soava incontestável, e com ela esperava-se fazer com que a máquina judiciária girasse mais prontamente, assegurando-se, de tal sorte, algum ganho em eficiência. 

Juízes de primeiro grau, por conseguinte, não mais têm permissão de recusar seguimento a apelações, porquanto o recurso lhes é dirigido apenas para que deem cabo das formalidades atinentes à materialização do contraditório (CPC, art. 1.010, §§ 1o e 2o), sendo que depois devem, por expressa disposição legal, determinar a remessa dos autos ao tribunal, independentemente de juízo de admissibilidade (CPC, art. 1.010, § 3o). Eventual decisão que inadmita na origem recurso de apelação, aliás, está sujeita a reclamação por usurpação da competência do tribunal de justiça ou do tribunal regional federal (FPPC, Enunciado 207).

Ao que tudo indica, porém, o legislador subestimou a importância do duplo filtro. Ou esqueceu-se que apresentava função paradoxalmente atrelada àquilo que a Comissão elaboradora do anteprojeto tanto prezava: a celeridade no trâmite da atividade jurisdicional. Não se tratava, portanto, de solenidade inútil. É o que não tardou rememorar o laboratório implacável da praxe forense logo que o CPC 2015 teve a sua vigência inaugurada.

Pois bem. O CPC é expresso ao impor que caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de cumprimento de sentença e também em processos de execução (art. 1.015, parágrafo único). A despeito disso, tem-se constatado, com regularidade, a interposição de apelações em face de decisões que rejeitam impugnações (ao cumprimento de sentença) ou exceções de pré-executividade.

Na vigência do código revogado, como o filtro de admissibilidade funcionava já em primeiro grau, recursos mal interpostos, frutos de erro grosseiro ou mesmo intempestivos tinham seu seguimento obstado de pronto, e os atos processuais voltados à satisfação do crédito seguiam trâmite regular, cabendo ao interessado, se assim quisesse, manejar o competente agravo de instrumento na tentativa de se fazer prosseguir no jogo recursal.

Hoje, contudo, os juízes encontram-se maniatados: banido o controle prévio de admissibilidade, estão obrigados, cumpridas as formalidades legais, a encaminhar para o tribunal os autos em que a apelação foi encartada (art. 1.010, §3o). Na prática, significa isso a paralisação inidônea da execução, cuja inanição processual se fará arrastar sabe-se lá por quanto tempo.

Sem querer o legislador abriu uma válvula de oportunidade para estratégias protelatórias a disposição daquele que deseja ganhar um tempinho a mais com o desenrolar da jurisdição. Ou ao menos emperrou a otimização procedimental na superação desses erros crassos, cujos exemplos pululam dia a dia na prática forense.[2]

Juízes inconformados até arriscam soluções acudindo-se na criatividade. Tem-se notícia, por exemplo, de decisões ordenando a extração de cópia integral dos autos a fim de que a execução prossiga normalmente em primeiro grau, enquanto os autos originários, com a apelação, seguem trâmite no tribunal.[3]

Há quem ainda defenda, por outro lado, a tese segundo a qual o ato recursal intempestivo, por violar princípios processuais-informativos da ordem consecutiva legal e da preclusão, deve ser tido por inexistente, permitindo ao julgador recusar-se a encaminhar os autos para o tribunal e manter incólume a sequência dos atos executivos.[4]

Entretanto, tais respostas mostram-se frágeis, legal e dogmaticamente: i) a primeira encontra óbice já no efeito suspensivo automático no qual a apelação é, em regra, recebida, de maneira que a clonagem dos autos não acarretará efeito pragmático algum; e ii) a derradeira é fruto de confusão entre os planos de existência e eficácia, valendo lembrar que o suporte fático de todo e qualquer recurso compõe-se apenas e tão somente de um ato de impugnação contra determinada decisão, feito por alguém que seja dotado de capacidade de ser parte, e dirigido a um órgão com investidura jurisdicional (Roberto Campos Gouveia Filho).[5]

A verdade é que o legislador errou ao recusar normatividade à lógica segundo a qual o juízo para quem o recurso é dirigido sempre é (deveria ser) o juiz natural do primeiro filtro de admissibilidade (Eduardo José Fonseca Costa).[6] Talvez fosse menos inventivo se tivesse atentado para fatos históricos, cuja relevância hoje assume-se patente: além de o duplo filtro apelatório ser da tradição histórica luso-brasileira, ele se repete nas principais nações da civilização ocidental. Trocando em miúdos: a nova regra nada mais fez que eliminar uma racionalidade algorítmica que evitava anomalias efecutais provocadas pela interposição de apelações manifestamente inadmissíveis, prejudicadas ou intempestivas.

O caminho, como se percebe, não está na esfera hermenêutica. É indispensável reconhecer o desacerto e remediá-lo com ligeireza pela via do processo legislativo constitucional: basta que se positive uma abertura na lei processual civil por meio da qual o filtro de admissibilidade em apelações deva também ser exercido, em determinadas hipóteses, pelo juízo de origem. Quem pariu Mateus que o embale!

Nem tudo pode o juiz, e aqui depende ele, sob pena de trocar os pés pelas mãos e assumir postura ativista,[7] de um impulso inexorável do legislador para a contenção dos prejuízos que já se acumulam Brasil afora.

 


[1] Por todos, o excelente artigo de Gustavo Vasques, publicado na Revista Consultor Jurídico: VASQUES, Gustavo. Novo CPC dificulta rejeição de recurso claramente inadmissível. Revista Consultor Jurídico. 13 de julho de 2016. Acessado: 04/04/2017. Disponível: <http://www.conjur.com.br/2016-jul-13/gustavo-vasques-cpc-dificulta-rejeicao-recurso-inadmissivel>.

[2] A eliminação do duplo filtro em apelações tem aptidão para provocar situações curiosas. Não há o que fazer o magistrado, a quem foi dirigido o recurso, senão recebê-lo, cumprir as formalidades legais e encaminhar os autos ao tribunal ad quem, mesmo em hipóteses absurdas, como: i) apelações interpostas contra decisões interlocutórias (erro grosseiro); ii) apelações interpostas fora do prazo (1110 dias fora do prazo, por exemplo, como ilustra Paulo Rubens Salomão Caputo, em obra já citada); e iii) apelações teratologicamente interpostas no STJ ou no STF (Eduardo José da Fonseca Costa indaga se, em tal caso, os autos deveriam ser remetidos para o tribunal de justiça ou tribunal regional federal).

[3] VASQUES, Gustavo. Novo CPC dificulta rejeição de recurso claramente inadmissível. Revista Consultor Jurídico. 13 de julho de 2016. Acessado: 04/04/2017. Disponível: <http://www.conjur.com.br/2016-jul-13/gustavo-vasques-cpc-dificulta-rejeicao-recurso-inadmissivel>.

[4] SALOMÃO CAPUTO, Paulo Rubens. Novo Código de Processo Civil Articulado. Leme: Editora JH Mizuno, 2016. pp. 1.067-1.069.

[5] Sobre o tema, conferir as excepcionais e elucidativas postagens do professor Roberto Campos Gouveia Filho, em sua fanpage no Facebook.

[6] Eduardo José da Fonseca Costa, em diálogo que desenvolvemos no aplicativo Telegram, elucidou seu posicionamento trazendo à lume interpretação sobre o art. 1.030 do CPC-2015: “O artigo 1.030 se refere ao presidente ou vice-presidente do tribunal porque, de ordinário, os recursos excepcionais são interpostos de acórdãos de tribunais inferiores.
Todavia, das decisões colegiadas de colégio recursal ou turma recursal – que não são tecnicamente tribunais – cabe recurso extraordinário. Nesse caso, o juízo de admissibilidade é feito pelo presidente do órgão. De sentenças inferiores a valor de alçada proferidas em embargos à execução fiscal  não cabe apelação, mas embargos infringentes oponíveis ao próprio juiz de primeira instância. Do julgamento monocrático desses embargos infringentes cabe recurso extraordinário. Aqui, o primeiro juízo de admissibilidade é feito pelo próprio juiz.
Assim sendo, o programa normativo do art. 1.030 deve ser compreendido em função da estrutura organizatório-judiciária do âmbito ao qual está sendo aplicado.” De qualquer sorte, Fonseca Costa também concorda que o CPC-2015 fez mesmo uma opção legislativa cujo resultado foi a eliminação do prévio filtro de admissibilidade recursal.

[7] Sobre os males do ativismo judicial, por todos: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 5a. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2014.

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    é advogado, pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro).

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