Opinião

Regulamentação da repercussão geral no recurso de revista é inadiável

Autor

7 de abril de 2017, 6h46

Inadiável se torna a regulamentação da repercussão geral do recurso de revista pelo Tribunal Superior do Trabalho, na esteira do que o correu com o recurso extraordinário (EC 45/2004, artigo 102, §3º CF/88 e Lei 11.418/2006) e, ao que tudo indica, ocorrerá com o recurso especial[1].

Poucos se recordam, mas a medida provisória 2226 de 4/9/2001 alterou a CLT para introduzir o artigo 896-A que estabeleceu requisito de admissibilidade até então inédito[2]no ordenamento jurídico processual brasileiro, in verbis: “O Tribunal Superior do Trabalho, no recurso de revista, examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica”.

Conforme se constata da leitura do dispositivo, anos antes da criação da repercussão geral para o recurso extraordinário pela EC 45/2004, a CLT já havia incorporado requisito de admissibilidade muito similar, senão idêntico, para o recurso de revista, baseado na “transcendência da causa”. Entretanto, a norma nunca chegou a ser regulamentada e, por isso, nunca foi diretamente aplicada pelo Tribunal Superior do Trabalho.

Marinoni e Mitidiero[3] ensinam que o conceito de repercussão geral[4] se forma pela união da relevância coma transcendência. A relevância diz respeito à essência da questão debatida, e pode ser configurada sob um viés econômico, político, social ou jurídico. Isto é, uma questão jurídica pode configurar-se relevante e, ainda assim, limitar-se exclusivamente aos interesses das partes do processo a ser apreciado, o que não bastaria para preencher o requisito da repercussão geral. A transcendência, por sua vez, diz respeito à abrangência dos interesses atingidos pela decisão e ocorre quando a questão debatida desborda dos interesses subjetivos das partes para alcançar inúmeras outras pessoas em situações similares, desde que envolvam a mesma questão jurídica.

Dados os conceitos doutrinários, e em que pese uma aparente atecnia no artigo 896-A da CLT quando trata da “transcendência da causa” e dos “reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica”, é plenamente possível extrair a interpretação de que se trata de uma típica repercussão geral, com a relevância da questão e a transcendência dos interesses.

É mister atentar para os resultados obtidos com a repercussão geral no STF para que saibamos se vale a pena a sua regulamentação no recurso de revista. A instituição da repercussão geral obteve ótimos resultados nos primeiros anos da implementação do instituto[5], quando reduziu para menos da metade o número de processos que chegaram à Corte Suprema. A partir, no entanto, de 2012, observou-se considerável aumento no recebimento de processos — foram 38.075 — em relação ao ano anterior, chegando em 2014 a 48.963 processos e, em 2016, a 57.370 processos. Essa nova curva de aumento (que não anulou a substancial diminuição de recursos no STF em números absolutos desde a regulamentação do instituto)vai demandar dos ministros e juízes a utilização adequada dos novos instrumentos processuais presentes no CPC/2015 que visam a racionalização da atividade jurisdicional[6], notadamente no âmbito dos tribunais superiores.

Nessa linha de raciocínio, vem ganhando adeptos uma corrente nascida no âmbito do Supremo Tribunal Federal, capitaneada pelo ministro Luis Roberto Barroso[7], no sentido de limitar o número de matérias reconhecidas como de repercussão geral à capacidade da Suprema Corte de julgá-las no período de um ano. Hoje, o STF tem mais de 300 temas de repercussão geral reconhecidos e pode demorar mais de 10 anos para julgá-los[8]. Diante disso, creio ser uma boa medida de política judiciária a limitação de temas a serem julgados. Se, por um lado, é indispensável a formação de uma jurisprudência coerente e estável sobre os temas mais relevantes do país, a corte suprema não pode, por outro lado, selecionar causas em excesso e se tornar refém de suas próprias escolhas. A finalidade maior de uma corte constitucional é conferir previsibilidade e pautar a conduta cotidiana da sociedade a partir da apreciação dos casos que realmente sejam relevantes e transcendentes, dentro da capacidade do tribunal de julgar em tempo razoável. Precedentes demais dificultam o conhecimento da população acerca do que vem sendo decidido e ainda criam insegurança jurídica em razão da maior demora em solucionar os grandes casos. O alerta se aplica, perfeitamente, ao TST, se e quando for regulamentada a repercussão geral no recurso de revista, o que se espera.

Se no STF o número de processos distribuídos e pendentes ainda é muito alto, conforme demonstrado acima, no TST o cenário atual assusta ainda mais, em que pese se tratar de tribunal com mais de o dobro de ministros do STF. Na instância superior trabalhista, em 2016, foram recebidos 274.845 recursos e processos. Em 2015, foram distribuídos 291.454. Em 2014, foram recebidos 309.033. Não há sinais de que o acervo irá diminuir a níveis razoáveis no curto e médio prazo. A diminuição do número de processos distribuídos no TST ao longo dos últimos anos é quase insignificante eo acervo total ainda alcança patamares altíssimos, muito além da capacidade do tribunal de julgar as demandas com a devida qualidade (leia-se, bem fundamentadas) e em tempo razoável, como determina a Constituição Federal (artigo 5º, LXXVIII[9]).

Não há como negar que a criação da repercussão geral dará ao TST grande poder de escolha, como se fosse um ato político ou um ato administrativo discricionário, de quais matérias serão apreciadas, tal como já vem ocorrendo com a repercussão geral no Recurso Extraordinário. Embora o STF apresente fundamentação sucinta quanto à existência ou não de repercussão geral, não há possibilidade de recurso contra essa decisão, o que confere ampla margem de liberdade política ao STF na definição de quais matérias serão submetidas a julgamento.

A meu ver, não há mal nisso. Conforme lembrado por Marinoni e Mitidiero[10], o poder que se confere às Supremas Cortes de seleção das causas que serão por elas julgadas é assunto eminentemente político, e assusta mais os países de tradição romano-germânica, como é o caso brasileiro, do que países mais ligados à família da common law, como é o caso dos Estados Unidos da América. A Suprema Corte norte-americana não precisa justificar a escolha das (pouquíssimas, diga-se de passagem, menos de 100) causas que irá julgar durante o ano. Não me consta que haja quem denuncie o suposto autoritarismo da Suprema Corte por conta dessa política judiciária.

No atual estágio de assoberbamento processual do Poder Judiciário brasileiro em todas as instâncias, do que não escapa a Justiça do Trabalho, devemos reservar às instâncias superiores o julgamento e apreciação apenas de causas realmente relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, e que transcendam os interesses exclusivos das partes, desde que dentro da capacidade humana do tribunal de apreciá-las adequadamente. Tais conceitos jurídicos indeterminados — relevância e transcendência — somente poderão ser concretizados pelo próprio Tribunal Superior, na análise de cada nova matéria que chegar ao Tribunal, a fim de definir quais delas têm a relevância necessária para serem apreciadas por um tribunal superior.

Caberá, portanto, ao Tribunal Superior se debruçar exclusivamente sobre o debate de teses jurídicas a fim de informar à sociedade qual a interpretação possível de tal ou qual norma jurídica ou acordo/convenção coletiva de trabalho nacional. Para limitarmos nossos exemplos às matérias trabalhistas, o que importa é saber se o empregado pode acumular o adicional de periculosidade e de insalubridade; se cabe o pagamento de indenização por danos morais por revista íntima em bolsas e sacolas dos empregados; se o sábado dos bancários pode ser considerado repouso semanal remunerado e em quais hipóteses, entre tantas outras.

Permitir que um Tribunal Superior despenda sua energia e tempo julgando milhares de recursos sob o fundamento pouco científico de que as instâncias ordinárias não julgam corretamente significa não só inverter os papéis institucionais de cada tribunal, como também crer na ilusão de que o TST consegue julgar, com qualidade, todos os milhares de processos que lá chegam anualmente. O modelo atual está falido, isso é evidente, e é preciso pensar medidas de racionalização do sistema judiciário, como é o caso da regulamentação da repercussão geral no recurso de revista. O que tem ocorrido atualmente é que a Corte Superior não consegue dar conta de uniformizar sua jurisprudência, nem exerce eficientemente o papel de revisora das causas ordinárias, dada a quantidade de processos e recursos pendentes.

Sem ignorar que o Tribunal Superior do Trabalho necessita de uma estabilização urgente de sua jurisprudência oscilante[11]a fim de conferir maior previsibilidade aos trabalhadores e empresas sobre como atuar nas relações trabalhistas, a implementação do requisito da repercussão geral para o recurso de revista é medida que colabora para o aumento da credibilidade da Justiça do Trabalho e vem em consonância com a política judiciária dos demais tribunais superiores. Ela significará reforçar a função primordial do Tribunal Superior do Trabalho de dar uniformidade às matérias que julgar de ampla repercussão jurídica, política, social ou econômica, dotando as decisões de eficácia vinculante, de modo que a corte Superior Trabalhista possa sair de vez do “imenso varejo de miudezas”[12] na qual está mergulhada.


[1] A PEC n. 209/2012 cria o requisito da repercussão geral para o recurso especial e foi recentemente aprovada em segundo turno na Câmara dos Deputados, seguindo para o Senado Federal.

[2]Antes da repercussão geral, o ordenamento jurídico brasileiro (CF/67, art. 119, III, “a” e “d” c/c §1, alterada pela EC n. 1 de 1969, e RISTF, arts. 325, I a XI e 327, §1) conheceu a figura da arguição de relevância, instituto que visava possibilitar o conhecimento de Recurso Extraordinário a princípio incabível e que não se confunde com a repercussão geral.

[3] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2007, p. 33.

[4] Embora os autores tratem, na obra citada, do conceito de repercussão geral para o recurso extraordinário, nada impede que possamos utilizar o mesmo conceito no recurso de revista.

[5] Em 2006, o STF recebeu 110.716 recursos extraordinários e agravos, em 2007 foram recebidos 106.617 recursos; 59.314 em 2008; 32.649 em 2009; 31.536 em 2010; e 29.576 em 2011. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=REAIProcessoDistribuido. Acesso em 22 de março de 2017.

[6] Podemos citar os mecanismos de uniformização de teses jurídicas com efeitos vinculantes, a ampliação das hipóteses de reclamação, a ampliação das hipóteses de tutela de urgência, as novas medidas para evitar recursos protelatórios (sucumbência recursal), entre outras.

[9]Art. 5º, LXXVIII: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

[10] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2007, p. 30.

[11] Um bom exemplo, entre outros, da instabilidade jurisprudencial no TST ocorreu recentemente. No dia 13/10/2016, a SDI-1 no E-RR n. 1072-72.2011.5.02.0384 acolheu a tese da inacumulabilidade dos adicionais de periculosidade e insalubridade: “por unanimidade, conhecer do recurso de embargos, por divergência jurisprudencial e, no mérito, por maioria, dar-lhe provimento para excluir da condenação a possibilidade de acúmulo dos dois adicionais”. Ocorre que o mesmo órgão uniformizador (SDI-1) no E-ARR 1081-60.2012.5.03.0064, julgado meses antes, em 28/04/2016, acolheu a tese contrária no sentido da possibilidade de acumulação dos adicionais de periculosidade de insalubridade, in verbis: “Uma vez caracterizadas e classificadas as atividades, individualmente consideradas, como insalubre e perigosa, nos termos do art. 195 da CLT, é inarredável a observância das normas que asseguram ao empregado o pagamento cumulativo dos respectivos adicionais — arts. 192 e 193, § 1º, da CLT. Trata-se de entendimento consentâneo com o art. 7º, XXIII, da Constituição Federal de 1988”.   

[12] A expressão foi utilizada pelo Ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal para caracterizar a realidade atual do seu tribunal, notadamente a seleção equivocada de causas para serem julgadas em repercussão geral. A máxima também vale para o Tribunal Superior do Trabalho.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!