Segunda Leitura

Liberdade para o goleiro Bruno: compreendendo o incompreensível

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

2 de abril de 2017, 8h13

Spacca
O goleiro Bruno Fernandes de Souza foi condenado pelo Tribunal do Júri da Comarca de Contagem (MG) a cumprir pena de 22 anos e três meses de reclusão, dos quais 17 anos e seis meses em regime fechado, por homicídio triplamente qualificado e ocultação de cadáver, sob a acusação de ter sido o mandante do sequestro, cárcere privado e morte de Eliza Samudio, que, contra ele, propôs ação de alimentos.

Preso desde junho de 2010, assim foi mantido até 21 de fevereiro deste ano, quando, por liminar do ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, que não especificou nenhum detalhe sobre a demora, foi posto em liberdade, porque:

“A esta altura, sem culpa formada, o paciente está preso há 6 anos e 7 meses. Nada, absolutamente nada, justifica tal fato. A complexidade do processo pode conduzir ao atraso na apreciação da apelação, mas jamais à projeção, no tempo, de custódia que se tem com a natureza de provisória”.

A soltura causou surpresa geral. Afinal, os fatos eram de gravidade ímpar e a cautela de ouvir a autoridade impetrada não retardaria a decisão por mais que quinze dias. Por outro lado, nos termos da Súmula 52 do Superior Tribunal de Justiça, “Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de prazo”.[1]

Todos imaginaram que logo viria um esclarecimento oficial da presidência do Tribunal de Justiça mineiro e ficaria demonstrado que o ministro Marco Aurélio foi levado a erro ao decidir. Passaram-se os dias e no site do TJ-MG nada surgiu.[2]

Todavia, o relator da apelação no tribunal mineiro, desembargador Doorgal Andrada, a quem cabia levar o recurso a julgamento, deu entrevista para a Rádio Itatiaia em 11 de março passado, quando:

“Comentou que o processo envolve vários réus e tem outros recursos para serem analisados. “O processo dele (goleiro Bruno) é um pouco complexo por causa de muitos recursos. Nós já julgamos um recurso de sentido estrito, estamos julgando embargos declaratórios, depois vamos julgar a apelação incidental, e vamos julgar a outra apelação, que é quanto o resultado do processo contra a sentença. O  ideal é que esse processo termine ainda neste ano. Vamos fazer esforço para que até o final do ano ele seja julgado. Não depende só de mim. Depende da defesa, do Ministério Público. Quem julga também são três desembargadores, não é só eu”,             afirmou”.[3]

As declarações do relator surpreendem. Afinal, ninguém duvida de que se trate de apelação em processo de complexidade incomum, com nove acusados, muitos volumes, centenas de documentos e uma série de incidentes processuais que dificultavam a apreciação pelo relator.

Mas é exatamente aí que se exige do Poder Judiciário competência para julgar bem e com a rapidez adequada às peculiaridades do caso concreto. Afinal, o goleiro Bruno já havia tentado conseguir liberdade no STJ onde, em 20 de outubro de 2011, Habeas Corpus foi denegado.[4] Era óbvio que faria nova tentativa no STF.

No entanto, ao caso não foi dada prioridade, foi tratado como mais um. Isto ficou evidente nas declarações do desembargador relator ao ser  entrevistado, quando afirmou que o “andamento dele é comum, porque tem muitos recursos, tem muitos réus, tem que abrir vista para todo mundo falar”.[5]

E aí está o ponto crucial. Não teve o relator sensibilidade para dar ao caso o tratamento especial que ele merecia. Por exemplo, utilizando parte de suas férias de 60 dias para isto. Muitos magistrados, em situações especiais, sacrificam parte dos dias de descanso a que têm direito.

Exemplo. No Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, o desembargador Élcio Pinheiro de Castro recebeu apelação contra sentença da Justiça Federal em Criciúma, SC, onde a empresa A J BEZ BATTI ENG/ LTDA foi condenada por crime ambiental. Valendo-se do período de férias, submeteu o recurso a julgamento na 8ª. Turma, em 6 de agosto de 2003. E assim veio a público o primeiro acórdão da América Latina a condenar uma pessoa jurídica por crime ambiental.[6]

Também o TJ-MG, por sua cúpula, não revelou preocupação com o caso. Experientes desembargadores da Corte Especial e o presidente em particular poderiam antecipar-se ao ocorrido. Por exemplo: a) cobrando do relator o julgamento; b) convocando um juiz de Direito para auxiliar no seu gabinete, encaminhando os demais recursos e deixando ao relator apenas este processo; c) designando dois ou mais assessores de reconhecida competência, que poderiam ser da presidência, da corregedoria ou de outro órgão, para somar forças com os servidores do gabinete na análise das múltiplas alegações dos recursos.

No entanto, o caso foi conduzido sem qualquer estratégia. Como uma apelação entre outras tantas, como era comum no século passado. Agora a família da vítima tenta, com poucas possibilidades de sucesso, reverter a decisão liminar no STF.[7]  

Da decisão favorável ao goleiro Bruno advirão reflexos. Por exemplo, José Dirceu, que exerceu a chefia da Casa Civil e outras relevantes funções no Poder Executivo federal, preso em Curitiba cumprindo condenação que lhe foi imposta pelo STF no mensalão e condenado pelo juiz federal da 13ª Vara Federal em dois processos (11 anos e 3 meses e 20 anos e 10 meses de reclusão), invoca presunção de inocência e reclama seu direito à liberdade.[8]

A análise do ocorrido impõe, também, alguns comentários sobre a duração da prisão preventiva. No entanto, ao contrário do que parece, o assunto nada tem de novo. Vejamos.

No distante ano de 1964, Edgar Magalhães Noronha ensinava que as testemunhas da acusação deveriam ser ouvidas em 20 dias, em caso de réu preso, e que o juiz tinha obrigação de dar os motivos da demora na formação da culpa.[9] A jurisprudência ia além. Só no índice da Revista dos Tribunais em 1970, podemos citar três Habeas Corpus nos quais se determinou a soltura dos denunciados por excesso de prazo na formação da culpa (Revista dos Tribunais 416/71, 418/60 e 420/290).

Se o tema, como visto, é banal, o certo é que cada caso deve ser examinado dentro de suas peculiaridades. Se o atraso no andamento é provocado pelo réu, justamente para depois invocar excesso de prazo, óbvio que não há qualquer motivo para que se conceda liberdade.

Isto pode ocorrer através de diversas formas que, muito embora já bem antiquadas, às vezes dão resultado. Por exemplo: arrolar testemunhas em comarcas distante ou no exterior; juntar centenas de documentos que nada têm a ver com o mérito da ação, apenas para complicar;  ingressar com dezenas de petições para causar tumulto; criar incidentes em audiências, como provocar o juiz para que perca a serenidade e se torne suspeito; juntar atestado médico às vésperas do julgamento e pedir adiamento. E outras tantas que a imaginação humana possa criar.

Com certeza, tais condutas, em que o comportamento do réu prolonga o desfecho da ação penal ou do julgamento de recursos, serão rechaçadas em pedidos de liberdade, conforme antiga jurisprudência do STF.[10]

Porém, se o atraso ocorre por desídia da autoridade policial ou judicial, o excesso de prazo deverá ser reconhecido. Ou, como ensinam Pacelli e Fischer, “ausentes, entretanto, justificativas para o atraso e comprovada a superação indevida dos limites aceitáveis para a instrução, deverá ser relaxada a prisão, que, no caso, passaria a ser ilegal”.[11]

Porém, nos casos em que a decisão liminar ponha o preso em liberdade por excesso de prazo, espera-se que ela seja explícita onde, quando e de que forma ocorreu o atraso, e não apenas uma afirmação genérica, que se limita a referir ao prazo de duração da custódia.

Em suma, de tudo o que foi dito, serve este caso para mostrar aos tribunais a necessidade de criarem estratégias para enfrentar as questões que lhes são submetidas, cada vez mais complexas, aguardando, no mais, que o bom senso prevaleça.

 


[1] STF, MEDIDA CAUTELAR NO HABEAS CORPUS 139.612 MINAS GERAIS, ACESSO 27/3/2017.

[2] www.tjmg.jus.br, acesso em 29/3/2017.

[6] Revista eletrônica do Consultor Jurídico, http://www.conjur.com.br/2003-out-02/trf_regiao_condena_empresa_crime_ambiental?pagina=4, acesso em 31/3/2017.

[8] O Estado de São Paulo, 28/3/2017, A5.

[9] Curso de Direito Processual Penal,  Saraiva, p. 226.

[10] HC 89.525, 2ª. Turma, Rel. Ministro Gilmar Mendes, j. 14/11/2006.

[11] PACELLI, Eugênio e FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência”. São Paulo: Atlas, 8ª. Ed., p. 719.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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