Garantias do Consumo

Apesar do que diz a medicina, indústria tabagista não responde por doenças

Autor

  • Adalberto Pasqualotto

    é professor titular de Direito do Consumidor no programa de pós-graduação da PUC-RS e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

28 de setembro de 2016, 8h01

Spacca
Medicina e Direito não tem se entendido quando se trata de doenças relacionadas ao tabaco. Enquanto o consenso médico está universalmente estabelecido há muitas décadas no mundo inteiro quanto à existência de relação direta entre fumar e doenças mortais como câncer de laringe e de pulmão e doenças cardíacas, além de outras, na jurisprudência não é reconhecido esse nexo causal nas ações de indenização promovidas por fumantes ou por seus sucessores.

Entendem os julgadores (nem todos, mas no Superior Tribunal de Justiça as decisões são recorrentes) que essas doenças são multifatoriais e que, na ausência de reconhecimento taxativo firmado por médico no atestado de óbito de que a vítima contraiu a doença fatal porque fumava, não é possível imputar ao fabricante a obrigação de indenizar. Trata-se, não há dúvida, de uma interpretação restritiva e extremamente conservadora do artigo 403, do Código Civil, segundo o qual as perdas e danos devem resultar de ato “direto e imediato“ do autor do dano.

O artigo 403, do atual Código Civil, foi importado do Código de 1917 com o mesmo conteúdo normativo. Todavia, o sistema de responsabilidade civil foi modificado. Em 1916, não tínhamos a cláusula geral de responsabilidade civil que hoje encontramos no artigo 927, parágrafo único, do Código atual. Se hoje a responsabilidade independe de culpa, não se pode mais restringir o conceito de nexo causal a um ato culposo que seja causador “direto e imediato“ do dano.

O fundamento jurídico da obrigação de indenizar não é mais a culpa, mas a assunção do risco. Portanto, a causa não está diretamente relacionada ao dano, mas ao risco criado pelo exercício de uma atividade. No Código de Defesa do Consumidor, o risco é colocar no mercado produto com defeito, que não corresponda à legítima expectativa de segurança do consumidor.

De acordo com a medicina, o tabaco é causa de uma vasta gama de doenças. Portanto, os produtos derivados do tabaco causam risco aos consumidores (fumantes), inclusive a terceiros circundantes (fumantes passivos). A equação parece absolutamente simples: o fabricante de produtos derivados do tabaco responde pelo risco das doenças contraídas pelos consumidores ativos e passivos. Não é assim que o STJ julga. Acolhendo argumentos de defesa, o STJ tem entendido: (1) que o cigarro não pode ser considerado um produto com defeito, porque a sua nocividade é amplamente reconhecida; e que (2) o fumante assume para si o risco da doença, em razão do seu livre arbítrio.

Esses argumentos criam um paradoxo: um produto cientificamente nocivo é juridicamente neutro e o risco migra do empreendedor para o consumidor, embora o empreendedor lucre e o consumidor sofra o dano. Ora, o direito não pode gerar o absurdo. Curioso que em outras situações, o STJ decide de modo diferente. Vejamos duas.

No caso dos assaltos em estacionamentos de shopping centers e outros grandes centros de compra, o STJ entende (dando um elastério que não havia na Súmula 130) que há responsabilidade da empresa, ainda que o dano tenha sido causado, de modo “direto e imediato“ pelo ladrão. O fundamento é a falta de legítima expectativa de segurança. No caso de fraudes contra os clientes de bancos, a Súmula 479 imputa a responsabilidade ao banco por se tratar de “fortuito interno“. Como é óbvio, a fraude também é um ato de terceiro, à semelhança do ladrão que age no estacionamento do shopping center.

Nesses dois casos, o STJ desconhece o fato “direto e imediato“ causador do dano, e mesmo assim imputa à empresa a responsabilidade de indenizar a vítima. Portanto, a decisão vai além da teoria da causalidade adequada, invadindo nitidamente uma área de risco própria da responsabilidade objetiva. Nos dois casos, o STJ reconhece uma imputação objetiva.

O mesmo não ocorre no caso do tabaco, embora haja nexo causal ligado ao risco e inexista fato de terceiro. Note-se que, no caso da Súmula 479, há o reconhecimento de um elemento importante: o fortuito interno, que significa a responsabilidade por um risco que é inerente à atividade. Em outras palavras: é inerente ao sistema financeiro a possibilidade de fraudes praticadas por terceiros. Não seria inerente ao fabricante de tabaco o risco de doença do fumante?

A se entender, mesmo assim, que o cigarro é um produto sem defeito do ponto de vista jurídico (afastando-se, por isso, a responsabilidade civil do fabricante com base no CDC), é de se lembrar que o artigo 931, do Código Civil, trabalha com outro fator de imputação: a simples colocação do produto no mercado, sem necessidade de constatação de defeito. Ao argumento de que existe a ressalva dos regimes das leis especiais (caso do CDC), responde-se com o diálogo das fontes: o artigo 7º, parágrafo único, do CDC, estende os direitos do consumidor para além do CDC, identificando-os em quaisquer outras leis — inclusive no Código Civil.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!