Opinião

Ativismo judicial agora permite que juízes digam quando as normas valem

Autores

  • Gamil Föppel

    é advogado professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) pós doutor em Direito Penal pela USP doutor em Direito pela UFPE e membro das comissões de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro do Código Penal e da Lei de Execução Penal nomeado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

  • Pedro Ravel Freitas Santos

    é pós-graduando em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito). Graduado em Direito (Universidade Federal da Bahia. 2015.1). Técnico Administrativo Ministério Público da Bahia (2012-2015).

26 de setembro de 2016, 16h00

No caminho (da lei)[1], por Pedro Aldair

“No caminho da lei tinha um advogado.
Tinha a lei, um advogado no caminho
tinha um advogado
no caminho da lei tinha um advogado.

O povo não pode se esquecer desse acontecimento
na vida de seus direitos tão negados.
Nunca poderá esquecer que entre a lei e o direito
tinha um advogado
tinha um advogado entre a lei e o direito
no meio do caminho tinha um advogado.”

Na última quinta-feira (22/9), a Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu, por 13 votos a um, pelo arquivamento de representação levada a efeito por advogados contra determinada conduta do Juiz Federal, Sua Excelência Sergio Moro. A representação tinha por objeto a ocorrência de suposta infração, consistente na divulgação de interceptações entre a então presidente da República e um ex-presidente do Brasil (como o leitor pode ver, não se analisa, neste texto, o mérito da representação). O arquivamento é possível — mormente quando se presume a inocência das pessoas (e não nos cabe estabelecer exceções voluntaristas), mas no caso concreto, chama atenção (negativamente, com as devidas e necessárias licenças) os fundamentos trazidos à baila pelos eminentes desembargadores federais.

Apesar da inconsistência e manifesta improcedência dos argumentos, há algo a ser elogiado: ao menos se acabou com a desfaçatez do discurso: declarada e assumidamente, agora, vive-se um direito penal de exceção. Acabaram-se os álibis, as licenças, consagrou-se a realidade: o ativismo judicial agora permite que os juízes digam quando as normas valem.

Segundo o Relator do feito:

“… não há indícios de prática de infração disciplinar por parte de Moro (…) (a Lava Jato) constitui um caso inédito no Direito Brasileiro, com situações que escapam ao regramento genérico destinado aos casos comuns”.

Ainda segundo o E. Relator:

“A publicidade das investigações tem sido o mais eficaz meio de garantir que não seja obstruído um conjunto, inédito na administração da justiça brasileira, de investigações e processos criminais, a Operação Lava-Jato, voltados contra altos agentes públicos e poderes privados até hoje intocado.”

A lógica do eminente relator parece ser: como se trata de um caso excepcional, as regras ordinárias não valeriam (e quais valeriam, então?). Não convém deslembrar das lições de Ferrajoli:

Mais: ignora-se, também, que toda emergência introduzida num determinado sistema tende a se perenizar, expandindo-se em metástase, contaminando as instituições e os homens que a compõem e impondo a lógica da brutalização(…) Agora, no Brasil, aqui e acolá remete-se às ‘mãos limpas’, sem qualquer preocupação técnica mais sérias, para defender medidas esdrúxulas como o ‘juiz sem rosto’, pirotécnicas como o ‘interrogatório virtual’ (prenúncio de uma justiça virtual?) e, como não poderia deixar de faltar no pacote de emergências, o aumento de penas. [2]

Não se adentrará ao mérito do processo administrativo, mesmo porque desconhecida uma série de fatores constantes dos autos. Portanto, não se critica aqui a decisão de arquivamento, em si, mas o fundamento (?) utilizado por Sua Excelência, o Desembargador Federal, e referendada por significativa maioria.

Em que pese a sinceridade de (finalmente!) se reconhecer a anomalia/aberração da operação "lava jato", incabível se valer das constantes violações às garantias individuais para tentar legitimar o ilegitimável.

O discurso da emergência é usado para legitimar arbitrariedades; em tese, a quebra de garantias (ou incorporação, a depender do ponto de vista) é fundamentada em uma situação excepcional, como, por exemplo, um atentado terrorista, ou, no país, um caso rumoroso de corrupção. O (maior) problema é que cessada a emergência, as garantias não são restabelecidas. De forma lapidar, há mais de uma década Leonardo Sica advertia:

Nos últimos 20 anos, nossa política criminal foi sempre uma política de emergência não amparada por qualquer desenho teórico, privada de todas as dimensões axiológicas, e cujo resultado foi um direito penal máximo, ao mesmo tempo inflacionário e inefetivo e uma justiça que golpeia reiteradamente o pequeno desvio. Uma política caracterizada em todos os níveis por uma fuga de responsabilidade que se expressa num conjunto de delegações à prisão. A doutrina penalística parece haver abdicado de seu papel crítico e projetual de suas origens iluministas se contenta hoje, em nome de um manifesto juspositivismo, em contemplar a legislação existente. A legislação, privada de uma remissão axiológica e vinculada unicamente à política conjuntural, abdicou, por sua vez, da finalidade de escolher os bens fundamentais merecedores de tutela penal, despejando sobre a jurisdição funções de controle sobre as infrações mais variadas, inclusive aquelas que deveriam estar sujeitas a controle político e administrativo.”.[3]

Dos males o menor… As máscaras e disfarces do devido processo legal (devido para quem?) foram retiradas pelo eminente desembargador, que reconhece, ao fim e ao cabo, que para situações atípicas, medidas não ortodoxas são bem vindas… medidas antidemocráticas são justificadas e passíveis de perdão (bem… sabe-se que, ultimamente, perdão é coisa para se ofertar aos advogados, os que teimam por fazer respeitar as regras, indistintamente…)

O processo penal de há muito padeceu! Mas o Estado Democrático (ainda) não. O discurso (cansativo e equivocado) da impunidade justificou o dilaceramento diário dos direitos individuais.­ Se de um lado emergiu da Constituição de 1988 a superioridade ética do Estado, noutra ponta, acentua-se, em tempos em que jatos são lavados, a presença de um Estado draconiano, que menoscaba e inviabiliza a efetivação de um processo penal compatível com seus cânones acusatórios e democráticos. O estado de polícia acaba por enfraquecer o Estado de Direito.

Para a correta adequação do processo aos parâmetros do Estado Democrático de Direito, fundamental reconhecer o princípio da supremacia da Constituição em relação às normas processuais. Ou seja: as prescrições constitucionais, com lastro nas garantias, devem ser tomadas como mandamentos obrigatórios.[4] Fredie Didier Jr., por exemplo, chama atenção para a crescente intensificação entre processualistas e constitucionalistas, cujos benefícios são recíprocos. Trata-se de progressiva incorporação de normas processuais à Constituição (direitos fundamentais processuais).[5]

Quer-se dizer com isso que a aplicação dos preceitos constitucionais necessita de um processo. Como a Constituição não tem o condão de auto aplicar-se, caberia à lei (ao menos até a "lava jato") a tarefa de criar as regras processuais. O ponto nevrálgico, contudo, reside justamente na concretização do aparato processual, vez que, a lei, tampouco os servos da lei, não deveria forjar formas processuais que colidissem, direta ou indiretamente, com os ditames do processo, pensados e desejados na Lei Maior.

Veja-se que a “operação” judicial chegou a se sobrepor à “operação” do hospital! E vamos (?) à jato, ligando, à la carte,  o triturador de regras.

Veja-se que até mesmo os mais ferrenhos críticos políticos apontam graves falhas na condução da então imaculada operação — Há algo de podre no reino da Dinamarca — ou quem sabe um pouco mais abaixo da linha do Equador. Mas se o “thatis the question”, na Dinamarca, era o ser ou não ser (crise ensimesmada), aqui, muito abaixo da linha média do Equador, nosso dilema é: ser ou não ser um Estado Democrático Constitucional de Direito (crise institucional, republicana). Enfim, esqueçamos os reis Shakespearianos e voltemos aos reis Machadianos (ah… Simão Bacamarte, se teu pai fosse inglês…)

Por falar em reis, ou heróis, como preferem os fãs supremos dos quadrinhos, é preciso reconhecer que ninguém, repita-se, ninguém está acima da lei, nem mesmo os que as deveriam resguardar e as tutelar de maneira imediata. Repita-se ao caro e curioso leitor: o arquivamento poderia ocorrer e não se estar aqui a tecer crítica ao resultado, mas sim ao método. O problema, definitivamente, não é o processo (meio). O problema é quando o objetivo (resultado) determina o caminho. Ao contrário do que se afirmou há tempos (ainda vigorava a CR/88) o problema não é processo, sim as intenções, sejam más ou boas.

Se o processo penal já padeceu, resta a centelha de esperança depositada nas Instituições da República. Quando a anormalidade é aplaudida e as disfunções são úteis, apaga-se essa última flâmula de fé.

É lição das mais fundamentais que o verbete República (res + publicae) designa “coisa pública”. E o grande mote da luta anticorrupção foi a legítima e verdadeira, frise-se, constatação de que a “coisa pública” é muitas vezes destratada, quando não subtraída, usurpada…

Todos reconhecem tal situação. É consenso, seja em Curitiba ou no Brasil. Indiscutível.

Propõe-se aqui a ampliação deste termo:“coisa pública”. Coisa não pode significar tão somente bem material, verba, erário. É preciso entender que dentre as coisas públicas, está o texto da Constituição. Dentre as coisas públicas estão as garantias deixadas pelo Constituinte. Dentre as coisas públicas está o dever de se cumprir a legalidade estrita. Se o dinheiro é recuperável, não há repatriação (mesmo voluntária) que devolva o bem maior da nação: o regime democrático.

Enfim, acreditamos que quando qualquer dos itens acima são olvidados (lei, garantias, direitos, democracia), macula-se a coisa pública.

Camuflado pelo discurso eficientista (cool, para lembrar o imortal Zaffaroni) verificado no pedido de arquivamento do processo disciplinar intentado contra Sergio Moro há uma perigosa lógica. Como se as autoridades da República (sim, os juízes são autoridades e formam um Poder tão forte e legítimo quanto o Executivo e o Legislativo) pudessem desprezar anos de consolidação jurídico-democrática para o cumprimento de determinadas agendas.

Institui-se uma nova lógica de decidir: as regras valem para as situações ordinárias, comuns; na exceção, vale tudo, vale tudo, vale o que vier, vale o que quiser…

Obviamente a corrupção deve e pode ser combatida. Mas é dever funcional de qualquer servidor público (sim, os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público são servidores públicos) respeitar os alicerces básicos do ordenamento jurídico.

A exceção, hoje, é a regra. Porque a exceção justifica, conforta, permite alucinações e deformações. Em verdade, exceção e direito penal do inimigo [6] são irmãs gêmeas univitelinas.

Cada vez mais, imperioso questionar: para quem são as regras? Para quem são as exceções?

Transmite-se a falsa ideia, em terra brasilis, de que a impunidade é a regra. Isso quando possuímos a terceira maior população carcerária do mundo! Em um Estado, cujas condições precárias do sistema prisional são usadas para incitar a luta (justa) contra a corrupção, a exceção é a forma (escancarada, a partir de agora) de “democratizar” a falência do sistema penal.

Ora, se as garantias não são respeitadas para a maioria dos brasileiros, às favas essa coisa chamada Constituição — verdadeiro empecilho, erva daninha desta terra colonizada por degradados (essa última constatação não dos autores deste ensaio, sim, de um funcionário público). 

Se no caso aqui trazido a exceção foi empregada para absolver, outras exceções já foram manejadas para decretar a prisão de senador da República, para determinar a prisão temporária de ofício, para fixar regime sem previsão legal… Se, antigamente, para toda regra havia uma exceção, hoje, para toda exceção há uma utilidade… Os fins justificam os meios, e as utilidades justificam as exceções…

De exceção em exceção não surpreenderá se o Estado, até então Democrático, se tornar, definitivamente, Estado de Exceção. Talvez neste momento as regras sejam, enfim, respeitadas. Mas serão respeitadas a que custo?


[1]Pedro Aldair, em Rumos, Poesias e Abrigos.

[2]SICA, Leonardo. Medidas de Emergência, Violência e Crime Organizado. IN: Boletim IBCCRIM, ano 11, nº 126, maio, 2003, p. 8.

[3]FERRAJOLI, Luigi. A Pena em uma Sociedade Democrática. IN: Discursos Sediciosos Crime, Direito e Sociedade, ano 7,  número 12, 2º semestre de 2002. – Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 38.

[4] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional. Vide: Revista Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v.2, n. 3 e 4, 1999, p. 89-154.

[5] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. 12.ed. Salvador: Jus Podium, v.1, 2010, p. 29 e 30.

[6]Sobre o assunto, consultar: SICA, Leonardo. Direito Penal de Emergência e Alternativas à Pena de Prisão. São Paulo: RT, 2002 e CHOUKR, Fauzi. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. Está-se a se “eternizar a emergência”, a necessidade de combate.”.

Autores

  • é advogado e professor. Doutor em Direito Penal Econômico (UFPE). Membro da Comissão de Juristas para atualização do Código Penal e da Comissão de Juristas para atualização da Lei de Execuções Penais.

  • é pós-graduando em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito). Graduado em Direito (Universidade Federal da Bahia. 2015.1). Técnico Administrativo Ministério Público da Bahia (2012-2015).

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