Limite Penal

Se você quer condenar digite 1:
o amor e o poder da punição

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23 de setembro de 2016, 8h00

Spacca
O julgamento pela mídia e não com a mídia é o nosso Big Brother Penal do momento. Os investigados e acusados participantes, todos no paredão, com manchetes, jornais, linchamento público, sem devido processo legal. O direito de informação transformou-se no mercado do produto do crime, vendido como qualquer produto no sistema capitalista. Se há consumidores, criam-se produtos. Se não existem, inventam-se.

Nas conversas que ouvimos o sentimento de que se foi enganado, de que a corrupção precisa ser debelada, parece-me absolutamente cínica. E antes que os moralistas de plantão venham crucificar-me, a questão é a de que o modelo de mercado e as frágeis amarras estatais, no fundo, fomentam a corrupção. Gente que descobriu a corrupção em 2015 e posa de vítima, mas procura votar nas eleições municipais nos candidatos que possam dar algum benefício pessoal. O vereador do bairro, o amigo que pode conseguir uma “boquinha”, enfim, os interesses individuais sobrelevando o que poderia ser coletivo, na lógica patrimonialista.

Por que será que as pessoas vibram tanto, comentam tanto, a prisão de gente importante? Talvez se possa pensar que a divisão clássica e maniqueísta entre o bem e o mal, apesar da secularização dos Estados, é mais de fachada do que se pensa. A eterna luta imaginária entre o bem e o mal serve para aplacar a falta de todos os dias, projetando-se (quem sabe) no outro o que há de pior em mim, na versão do “bode expiatório” indicada por René Girard. Decorrência disto é que a lógica da Inquisição se repete, mas como objetivo renovado: castigar de maneira exemplar os eleitos como símbolo do mal, escamoteando a complexidade da temática. O crime produto, com “pops conduzidos/presos”, fomenta o ‘pânico moral’ com interesses nem sempre confessáveis.

Partindo-se do argumento de Legendre, a “propaganda” possui, desde a sua criação pela Igreja[1], um objetivo bem definido: propagar e reiterar a ‘crença de amor’: é a cruzada contra Satã. A ciência do sorriso ganha espaço para fazer os sujeitados amarem o Poder, apontando o ‘Mal’ a ser perseguido/aniquilado em nome do ‘Bem’, palavra do enunciador, claro, divulgando-se a existência inata, em cada ser humano, da distinção entre os bem aventurados e os recalcitrantes.

Diretamente (sempre Adão e Eva[2]): entre os pecadores e os inocentes; porque para estes últimos, o paraíso estaria reservado[3]. “Os enunciados fantasísticos, difundidos na Idade Média em versões bem populares graças à predicação sobre as consequências penais do pecado, significam mais ou menos isto: ‘Vejam as coisas terríveis que lhes acontecerão, se vocês seguirem a inclinação de seus desejos; se vocês fizerem o que a Lei proíbe, e se vocês não se acusarem por serem culpados diante do confessor, nada poderemos por vocês’. O pecador que sofre de seu desejo é assim convidado a procurar substitutos; o objeto de substituição por excelência, ideal e sublime, é a própria Lei, transformada em objeto de amor.[4] Mesmo sendo um discurso ultrapassado, porque a “criminologia crítica” (Baratta/Vera Andrade) assim o mostrou, remanesce principalmente pelos interesses ideológicos/midiáticos que subjazem e reproduzem a obediência. Por mais que existam processos conscientes de secularização, a herança religiosa está no âmago da ‘Instituição’ – do Estado – e suas agências, portanto, é fundamental à dominação.[5]

De outra face, a mídia possui apelo destacado no fomento do discurso da “Lei e Ordem”[6]. Isto porque “o clima de insegurança passado pela imprensa, no tocante à violência criminal, de certa forma garante a manutenção do ideal dominante.[7] Baila conforme o ‘Mercado’, na lógica capitalista, dos interesses que se escondem por detrás da tela.[8] Batista assevera: “A televisão como novo panóptico tem mais presença nos lares brasileiros que as geladeiras, e da sua telinha escorre lentamente todos os dias o veneno de um certo olhar sobre o crime e a pobreza.[9] Desta avenida de entrada nos lares é possível a articulação da ‘cultura do medo’ para justificar e naturalizar como um caminho ‘doloroso e necessário’ para salvação: o agigantamento do sistema repressivo. Assim se proliferam, como metâmeros, os iludidos pelo rebaixamento da idade penal, do aumento das penas, das restrições de direitos fundamentais. 

Bourdieu argumenta que a televisão opera a violência simbólica[10]. Seu pensamento hegemônico simbolicamente homogêneo, coloca em risco diversas esferas do saber, dentre elas o Direito e, em última escala, a Política e a própria Democracia, principalmente numa sociedade capitalista na qual o objetivo é o lucro, sem ética. Em nome da audiência, então, são exploradas as ‘paixões mais primárias’ dos telespectadores: sangue, sexo, drama e crime, diz Bourdieu, “sempre fizeram vender, e o reino do índice de audiência devia alçar à primeira página, à abertura dos jornais televisivos.”[11] Para tanto, são articuladas ‘censuras’ veladas de quem irá ter ‘voz e imagem’ na programação, bem assim a construção de ‘especialistas’ auto-legitimados pelas ‘redações’, e sempre a mando de alguém que não aparece: o Ausente. Acrescente-se, ainda, que a ‘censura econômica’, do patrocinador, é um condicionante importantíssimo para se manter no ar. O que não choca, não agride, mantem o consenso, acaricia a audiência e ocupa o espaço do que pode ser importante para as pessoas “devotas de corpo e alma à televisão como fonte única de informações. A televisão tem uma espécie de monopólio de fato sobre a formação das cabeças de uma parcela muito importante da população.[12]

Uma das estratégias gregárias indicadas por Bourdieu é a de ‘ocultar mostrando’, apresentando as informações dramatizadas, fragmentadas, não permitindo ou impedindo a compreensão do todo, o que atrapalha o raciocínio de quem assiste, pois as respostas estão prontas confundindo realidade e ficção[13], movimentadas pela ‘urgência’ do ‘furo de reportagem’. Os substratos de sentido (poder) maquiados sob diversas formas (reportagens, telejornais, programas, músicas, filmes, decisões judiciais, argumentos retóricos, etc.) são repetidos pela ‘cultura de massa’ e pelo senso comum teórico sem maiores pudores, sonegando-se as diferenças, negando-se a singularidade e a exclusão social que campeia os próprios excluídos que se sentem menos excluídos ao verem reproduzidos na TV o seu modo de vida. Daí o sucesso de programas “policialiescos” que impõem à realidade uma cena e causam nos telespectadores uma sensação de ‘determinismo’ que lhes acalenta a alma/falta. São variações funcionais sobre o mesmo tema, inclusive nas películas[14], mantendo a imposição de ideias e os interditos à crítica. Os estereótipos são verdadeiras próteses linguísticas: os cúmulos de artifício e que informam as every day theories (Baratta). Por isto, o produto crime interessa, e vende. A questão é não se seduzir, se for capaz, porque para se condenar – qualquer um – deveríamos ter processo penal e não capa de revistas. Até porque, “o conhecimento das pessoas aumentou, mas é feito de banalidades” (Andrew Oitke).


[1] LEGENDRE, Pierre. O amor do censor. Trad. Aluísio Menezes. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 215.
[2] LEGENDRE, Pierre. O amor do censor…, p. 115.
[3] VIANNA, Túlio Lima. Fundamentos de direito penal informático: do acesso não autorizado a sistemas computacionais. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 97.
[4] LEGENDRE, Pierre. O amor do censor…, p. 127.
[5] LEGENDRE, Pierre. O amor do censor…, p. 25: “Contanto que os novos símbolos substitutivos assumam a relação com alguém ou alguma coisa que os doutores legítimos, mestres das propagandas da Fé, possam garantir com verossimilhança: eis o lugar-tenente-do-pai.”.
[6] KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói: Luam, 1993, p. 195-207.
[7] PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre a violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003, p. 78.
[8] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Trad. Maria Lucia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 54: “A televisão é um universo em que se tem a impressão de que os agentes sociais, tendo as aparências da importância, da liberdade, da autonomia, e mesmo por vezes uma aura extraordinária (basta ler os jornais de televisão), são marionetes de uma necessidade que é preciso descrever, de uma estrutura que é preciso tornar manifesta e trazer à luz.”
[9] BATISTA, Vera Malaguti. Prefácio.…, p. 7.
[10] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão…, p. 22: “A violência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com frequência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la.” BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean Claude. A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Trad. Reynaldo Bairão. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
[11] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão…, p. 22.
[12] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão…, p. 23.
[13] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão…, p. 28: “Os perigos políticos inerentes ao uso ordinário da televisão devem-se ao fato de que a imagem tem a particularidade de poder produzir o que os críticos literários chamam o efeito do real, ela pode fazer ver e fazer crer no que faz ver. Esse poder de evocação tem efeitos de mobilização. Ela pode fazer existir idéias ou representações, mas também grupos.”
[14] ARBEX JR, José; TOGNOLLI, Claudio Julio. O século do crime. São Paulo: Boitempo, 1998, p. 217-218: “A indústria cinematográfica apropriou-se de maneira muito curiosa dessa perversa equação. Nos enlatados de Hollywood, é o detetive que aparece glamourizado como o grande aventureiro, quando o que ele faz, na verdade, é defender a lei e a ordem, isto é, a mais absoluta rotina, o oposto da aventura. (…) Uma das saídas para dar credibilidade à imagem do herói ‘higiênico’ é transformá-lo em robô programado para obedecer à lei, isto é, desumanizá-lo. É o caso de Robocop. O grande problema desses ‘heróis programados’ é que eles aniquilam o único momento em que, de fato, a aventura está na lei: é a opção, que deve ser diariamente testada, por manter os princípios éticos acima da corrupção, do apleo à violência fácil e das incongruências do dia-a-dia. Aí reside, na verdade, a surpresa, o inesperado, a quebra da rotina.”

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  • Brave

    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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