Mudanças na lei

"Whistleblower é um aliado do Estado no combate à corrupção"

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20 de setembro de 2016, 9h26

Uma figura jurídica já consolidada na Europa e nos EUA como importante ferramenta no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro está sendo estudada, debatida e adaptada para integrar o ordenamento jurídico nacional. É o whistleblower: aquela pessoa que faz parte de uma instituição pública ou privada e, sem participar dos crimes, ao constatar a ocorrência de atos ilícitos na organização, relata voluntariamente o que sabe à autoridade competente. O assunto está em debate no Seminário Internacional sobre Programas de Proteção e Incentivo ao Whistleblower, em Florianópolis (SC), na sede da Justiça Federal. 

Conforme o coordenador científico do evento, desembargador Márcio Antônio Rocha, da 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o reportante (designação dada pelos que estudam a implantação do programa no Brasil) recebe medidas de proteção do estado para contar o que sabe. Entre elas, estão o sigilo de identidade e a garantia de que não haverá retaliações no ambiente de trabalho, tais como punições, negativas de promoções ou até mesmo demissões. Outro ponto relevante já consolidado em outros países que utilizam o programa de whistleblower é a recompensa com recursos que entrarão nos cofres públicos pela apuração do ato ilícito ou crime. 

Autoridades nacionais e especialistas estrangeiros participam do seminário, que tem como objetivo identificar os principais programas e as boas práticas desta figura jurídica no mundo. Do evento, sairão contribuições à minuta de anteprojeto de lei que está em discussão no Congresso Nacional. A reportagem da ConJur conversou com o desembargador Márcio Rocha. Acompanhe os melhores trechos.

ConJur — O whistleblower é diferente do que se vê na delação premiada ou no acordo de leniência?
Márcio Antônio Rocha
— São figuras diferentes. O que é uma delação premiada? Hoje, trata-se de uma situação em que o estado, precisando de mais informações, negocia com um sujeito que comprovadamente já causou um dano. Para que ele não tenha que sofrer a totalidade das punições que lhe cabem, em troca de informações preciosas, entra na delação premiada. O acordo de leniência é a mesma coisa, só que feito por uma empresa. A empresa flagrada em corrupção está sujeita a multas altas por ofensa à livre concorrência, fraude à licitação ou ao mercado financeiro etc. E, para não sofrer todas as penas, resolve ‘‘falar’’ sobre os demais participantes do esquema, que estão em grupos fechados, cartelizados. Já a figura do whistleblower, ou do reportante,  é o sujeito que não cometeu irregularidade nenhuma. Ele não está em busca de nenhuma vantagem de natureza criminal. Este agente está participando de uma ação de cidadania. Então, com a aprovação desta lei, estaremos criando uma cultura de cidadania.

ConJur — Isso muda a percepção de denúncia anônima?
Márcio Antônio Rocha —
Correto. O programa de whistleblower propicia a diferenciação da denúncia anônima. A denúncia anônima, em geral, não é aceita em nenhum processo jurídico — seja administrativo ou judicial. Neste caso, com a ação do reportante, o estado tem todos os dados de quem fez o relato. E a pessoa, que recebe a proteção do estado, estaria disposta a se identificar. Afinal, é um cidadão que está interessado na apuração destes fatos.

ConJur — Qual o objetivo do evento?
Márcio Antônio Rocha —
  Importante destacar que o Seminário Internacional sobre Programas de Proteção e Incentivo ao Whistleblower é produto da Ação 4/2016 da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), da qual sou o coordenador desta ação específica. O encontro visa trazer para seus participantes uma visão de como este assunto é tratado na comunidade internacional. Dará subsídios para os estudos feitos pela Enccla e auxiliará no debate sobre alguns pontos da legislação. Ou seja, nos auxiliará na redação da minuta de anteprojeto de lei, prevendo a criação da figura do reportante, que entregaremos ao Congresso Nacional. Afinal, o Fórum de Combate à Corrupção no Brasil tem a compreensão de que precisamos implantar este tipo de programa de incentivo ao cidadão.

ConJur — E como é no exterior?
Márcio Antônio Rocha —
Na Europa e nos Estados Unidos, a participação do cidadão vai muito além do relato apenas da corrupção. Nestes países, o cidadão é protegido ao relatar qualquer fato de interesse público. Ou seja, qualquer anormalidade, irregularidade ou fraude. Pode ser ato de corrupção ou até uma fraude no setor financeiro, por exemplo. Então, o Poder Público abre as portas ao cidadão para ter estes relatos. O essencial destes programas governamentais existentes na Europa e EUA é a proteção do cidadão. Queremos discutir esta participação também no Brasil, identificando, no Congresso Nacional, os projetos e as melhores práticas sobre o tema.

ConJur — Quais os enfoques dos projetos que tramitam no Congresso?
Márcio Antônio Rocha —
Analisando estes projetos, verificamos que estão focados em dois aspectos: se limitam apenas a atos de corrupção e preveem a oferta de premiações aos cidadãos que fazem a denúncia. Em síntese, deixam de fora uma série de outras irregularidades que também são de interesse público, e não só a corrupção. Então, o anteprojeto que a Enccla está elaborando alarga bastante este espectro. Com este instrumento, o Poder Público pode receber informações importantes sobre irregularidades cometidas em agências bancárias, por exemplo, numa compra ou lançamento público de ações. Ou sobre fraudes em licitações.

ConJur – Explique melhor.
Márcio Antônio Rocha —
Numa licitação, se dois sujeitos se unem para combinar preço, não existe corrupção. Há, apenas, duas empresas que combinaram preço. Então, o relato deste fato de fraude em licitação também é importante, embora não se enquadre em corrupção. Por isso, é importante não limitar o programa. A proposta da Enccla é que se crie um programa nacional de recebimento de relatos de interesse público.

ConJur – Mas nem todas as irregularidades são relevantes. Há um filtro?
Márcio Antônio Rocha —
Sim. Nestes programas, certamente, existe um certo ‘‘patamar’’ para que o relato seja aceito, afastando casos sem importância ou denúncias sem fundamentos, motivadas por retaliação, por exemplo. O importante é que o relato seja do interesse de determinada agência reguladora. Um pequeno caso de tráfico, muito incipiente, ou uma sonegação de impostos no comércio ambulante, por exemplo, não teriam tal relevância. Muitas vezes, as agências, por restrições orçamentárias ou falta de pessoal, não têm condições de apurar todas as irregularidades, daí, por que, a necessidade de um ‘‘patamar mínimo’’. Esta exigência, por um lado, evita que o cidadão reportante se coloque numa situação de risco desnecessário; e, por outro, assegura que o risco de trazer uma informação valiosa vai gerar a apuração do fato relatado pelas autoridades.

ConJur – A criação do reportante ajudaria o Ministério Público?
Márcio Antônio Rocha
– Sim, claro, mas vai além. Na verdade, as entidades comprometidas com o combate à corrupção no Brasil resolveram fazer a proposta de um programa nacional no sentido de não só receber notícias de corrupção (atribuição específica do Ministério Público), mas também de outras irregularidades. Por exemplo: notícias de danos ambientais sérios, de sonegação de direitos trabalhistas em grandes obras, de entrada irregular de mercadorias pelos portos etc. É um leque muito grande. Assim, as agências de fiscalização e controle podem ter informações sobre os vários tipos de fraudes, beneficiando todo o Poder Público.

ConJur — Como se dá a atuação do whistleblower nos EUA?
Márcio Antônio Rocha — 
Esta figura existe desde 1976 nos EUA e está presente e consolidada em milhares de legislações (União, estados e municípios). Isso mostra que o Congresso e o governo americano consideram necessária a participação do cidadão, dando-lhe voz no controle da administração pública. Alguns dizem que o whistleblower é, na verdade, o ‘‘cão de guarda’’ de todo o cidadão. Nos Estados Unidos, em função das diversas leis nesta área, é muito ampla a atuação destas agências. Lá, o cidadão reportante também é premiado por sua colaboração. Ou seja, além de protegido, ele é incentivado através da premiação. Trata-se de remunerar o risco que ele corre de ser retaliado.

ConJur – Não é visto como dedo-duro?
Márcio Antônio Rocha
– Não. É visto como um cidadão honesto que está tentando cooperar com o estado. Esta indenização serve para compensar os danos que o próprio reportante sofre, pois, muitas vezes, ele teve de delatar um colega ou reportar irregularidades na própria empresa em que trabalha. Algum tipo de dano ele sofreu ao pensar no todo, no social.

ConJur — Mas ele pode beneficiar também a organização empresarial, não?
Márcio Antônio Rocha —
Claro. Ao reportar irregularidades, a empresa pode se precaver de danos maiores, como perdas de negócios, multas do Poder Público, desvalorização na bolsa de valores etc. Ao trazer estes fatos, ele acaba obrando para preservar o propósito de uma empresa, que não é o cometimento de irregularidades. Por isso, a ideia de dar voz ao cidadão. Aliás, a Corte de Direitos Humanos da União Europeia considera este tipo de programa uma ferramenta para o exercício de um dos atributos dos direitos humanos, que é poder falar livremente em sociedade.

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