Opinião

A regularização fiscal da propriedade de obras de arte

Autor

  • Lina Santin

    é doutoranda em Direito Tributário pela PUC-SP mestre pela FGV pesquisadora e coordenadora executiva do NEF/FGV diretora do MDA e secretária da Comissão de Direito Tributário do Iasp.

15 de setembro de 2016, 7h07

O antiquíssimo hábito de aquisição e colecionismo de obras de arte tem se mostrado cada vez mais presente na sociedade contemporânea, muito provavelmente em razão da universalização ao acesso a esse universo antes restrito a uma pequena parcela da população mais bem provida sócia e economicamente.

Para fins tributários, é importante ressaltar que obras de arte são consideradas mercadorias, sujeitas à incidência de impostos tanto na sucessão, doação e comercialização no mercado interno quanto na importação desses bens, bem como são ativos passíveis de declaração no Imposto de Renda de seus proprietários/colecionadores e sujeitos à incidência do Imposto de Renda na hipótese de apuração de ganho de capital na venda.

No entanto, dada a informalidade de parte do mercado de arte ou ainda em razão da facilidade de se manter tais bens fora do alcance do Fisco, é fato que muitos colecionadores encontram-se em débito com a Receita Federal e em grande parte dos casos só se dão conta da dimensão do problema que esta irregularidade pode lhes causar quando, por exemplo, estão diante de uma grande transação e deparam-se com esse obstáculo. O presente artigo busca justamente apontar algumas formas de regularizar tal situação.

Assim, vislumbramos quatro cenários recorrentes das obras de arte em situação irregulares, quais sejam: a) adquiridas no Brasil e não declaradas ao Fisco; b) havidas por sucessão ou doação no Brasil e não declaradas ao Fisco; c) adquiridas no exterior e trazidas ao Brasil sem declaração e recolhimento dos impostos incidentes na importação; e d) adquiridas e mantidas no exterior sem declaração ao Fisco.

Inicialmente, em qualquer das hipóteses de aquisição relatadas acima, é imperioso ressaltar a necessidade de comprovação da existência de recursos de origem lícita ao tempo da obtenção da obra de arte que se pretende regularizar. No mesmo sentido, deve haver comprovação do custo de aquisição de tal bem por meio de documento hábil e idôneo, caso contrário deverá ser reconhecido pelo valor simbólico de R$ 1 na declaração de Imposto de Renda do proprietário[1].

Ademais, sendo possível provar que as obras foram adquiridas ou havidas por doação ou sucessão há pelo menos seis anos, a obrigação de recolhimento dos tributos incidentes resta extinta por decadência[2]. Assim, caso tenha decorrido o prazo decadencial, as autoridades fiscais não mais poderão cobrar os tributos devidos.

Contudo, enquanto nos cenários “i” e “ii” não há que se falar na concomitância de crime, nas hipóteses “iii” e “iv” a situação é um pouco mais complexa e possui reflexos penais, conforme será tratado adiante.

Assim, trataremos das alternativas a seguir, lembrando que em todas elas os valores eventualmente devidos em razão dos impostos incidentes devem ser acrescidos de juros e multa, ressalvada a possibilidade de exclusão da multa em razão do instituto da denúncia espontânea, nos termos do artigo 138 do Código Tributário Nacional.

Para a primeira hipótese — obras de arte adquiridas no Brasil e não declaradas ao Fisco —, caso não tenha decorrido o prazo decadencial, basta que se recolham os impostos incidentes nesta comercialização, com os acréscimos cabíveis, e proceda-se, consequentemente, a sua inclusão na declaração de bens do Imposto de Renda do proprietário.

Na segunda hipótese — obras de arte havidas por sucessão ou doação no Brasil —, recomenda-se a reabertura do processo que ocasionou a partilha ou a elaboração da declaração de doação, mesmo que a posteriori, para recolhimento do imposto sobre doação (ITCMD) incidente, sempre que não decorrido o prazo decadencial.

Tanto na sucessão quanto na doação, se não houver comprovação do valor originário do bem, é prudente que se providenciem laudos valorativos elaborados por especialistas renomados, adotando-se o maior valor indicado para fins de recolhimento dos impostos devidos.

Quando se tratar da terceira hipótese — obras de arte adquiridas no exterior e trazidas ao Brasil sem recolhimento dos impostos devidos na importação —, a solução seria providenciar o pagamento em atraso dos tributos incidentes[3], com os acréscimos legais.

Outrossim, considerando os aspectos penais envolvidos e a configuração do crime de descaminho nessa hipótese, importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de que o descaminho é um crime com natureza tributária, sendo imperioso que se reconheça que a persecução criminal, nesse campo, surge como meio coercitivo de chegar-se ao recolhimento do tributo, razão pela qual o pagamento dos impostos extingue tal punibilidade[4].

Ademais, caso já tenha decorrido o prazo decadencial para cobrança dos tributos incidentes nesta importação e ainda que não esteja prescrito o crime decorrente dessa prática, é possível alegar que em razão da extinção da obrigação tributária pela decadência restaria também extinta a punibilidade do crime de descaminho, em analogia ao posicionamento do STF no caso de pagamento dos tributos, acima citado.

Quanto à quarta e última alternativa — obras de arte adquiridas e mantidas no exterior sem declaração ao Fisco —, esclarecemos que tal hipótese foi excluída da Lei 13.254, de 13 de janeiro de 2016 (Lei 13.254/2016), popularmente conhecida como Lei da Anistia ou da Repatriaçao, que instituiu o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT).

Conforme constante da mensagem de veto, a possibilidade de se regularizar joias, metais preciosos, obras de artes, antiguidades e material genético de produção animal, foi excluída “em decorrência da dificuldade de precificação dos bens e de verificação da veracidade dos respectivos títulos de propriedade, o que poderia ensejar a utilização indevida do regime”.

Estando, portanto, excluídas do RERCT, os tipos penais passíveis de serem aplicados ao caso não estão anistiados e é justamente esse o aspecto sensível da questão, mormente em razão da discussão acerca da caracterização de crime permanente nesse caso e a impossibilidade de se falar em decorrência do prazo prescricional penal enquanto tais bens forem mantidos no exterior.

Assim, a comprovação da origem e licitude do recurso utilizado para tal aquisição é de extrema importância e demanda, muitas vezes, o reconhecimento da existência de valores transferidos ou mantidos no exterior e não devidamente declarados segundo as normas cambiais e tributárias vigentes, o que implica numa análise em conjunto àquela que deverá ser feita pelos contribuintes destinatários do RERCT que pretendem aderir ao programa.

Superada essa questão e considerando a regularidade dos recursos utilizados para aquisição das obras de arte, é possível declarar a propriedade da obra de arte no exterior, procedendo-se à retificação das declarações de bens quando necessário ou, ainda, providenciar a importação de tais bens, recolhendo-se todos os impostos incidentes na operação.


[1] Conforme artigo 125 e seguintes do Decreto 3000/1999 (Regulamento do Imposto de Renda(, os bens devem ser declarados de acordo com o seu custo de aquisição (vide também Instrução Normativa SRF 84/2001). No entanto, na ausência do valor pago, o custo de aquisição é assim definido: a) o valor que tenha servido de base para o cálculo do imposto de importação, acrescido do valor dos tributos e das despesas de desembaraço aduaneiro; b) o valor de transmissão utilizado, na aquisição, para cálculo do ganho de capital do alienante anterior; c) o valor corrente na data da aquisição; d) igual a zero, quando não possa ser determinado nos termos das letras anteriores.
[2] Conforme contagem do prazo decadencial nos termos do artigo 173, inciso I: “Art. 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados: I – do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado”
[3] a) Imposto de Importação, 4%; b) Pis-Importação, 2,1%; c) Cofins-Importação, 9,65%; d) ICMS Importação, 18% (SP e RJ); e (e) IPI, 0% em geral (10% para determinados tipos de impressão e fotografia).
[4] STF, HC 85942/SP, min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJe 29/7/2011.

Autores

  • Brave

    é advogada e aluna do mestrado profissional da FGV Direito SP e membro do Núcleo de Direito Tributário Aplicado da mesma instituição.

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