Segunda Leitura

Os imprecisos limites do recebimento de presentes por autoridades

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

11 de setembro de 2016, 10h15

Spacca
As investigações sobre o destino dos presentes recebidos pelo ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, trazem ao conhecimento público um dos temas menos tratados pela comunidade jurídica. Assim, revela-se oportuna uma análise da matéria, deixando claro, desde logo, que não se trata de avaliação da conduta do ex-presidente, mas sim considerações de ordem genérica e com o foco voltado para as profissões jurídicas, em especial a magistratura.

As autoridades, de qualquer dos Poderes do Estado, sempre foram aduladas, por motivos óbvios: atalhar caminhos, conseguir vantagens ou até mesmo evitar exigências excessivas ou indevidas. Mimo, presente, agrado, seja qual for o substantivo, sempre existiu a busca de proximidade e a tentativa de influenciar as pessoas com poder de mando.

As formas de alcançar-se tal objetivo são em número igual ao da criatividade humana. Facilidades como auxiliar na busca de um imóvel para alugar ou na compra de um automóvel a bom preço. Presentes, que podem ir de uma garrafa de vinho de baixo preço até uma joia valiosíssima. Apoio em uma situação de doença em família ou emprego para um filho sem muita vocação para o trabalho.

Entre o sim e o não da autoridade ou de um servidor menos graduado, mas nem por isso com menor poder na prática (v.g., um escrivão de Polícia ou um funcionário de Cartório Judicial), há uma zona intermediária, cinzenta, que desperta dúvidas. Vejamos os extremos.

Imagine-se que em pequena comarca do interior uma mulher, grata à juíza que promoveu sua reconciliação com o marido, dá-lhe de presente um artesanal e apetitoso queijo meia cura. Nada de mal há neste gesto e não o aceitar seria um ato exagerado. Coisa diversa seria um juiz receber de um advogado com várias ações na sua Vara, as chaves de um luxuoso apartamento mobiliado em Miami, para lá passar, gratuitamente, suas férias com a família.

Às vezes a situação não é tão clara. Suponha-se que a secretaria (ou cartório) de uma Vara Judicial estatizada tenha enormes dificuldades orçamentárias e péssima estrutura de trabalho. Um advogado que nela atua oferece em doação um moderno e caro computador, com impressora e acessórios. Será esta ação legítima? Deve ser aceito o presente? Rejeitado?

Para a solução das múltiplas dúvidas que surgem é preciso regramento. Não dá para esperar que cada um resolva com base no seu critério subjetivo, pois as decisões variam conforme a pessoa. Regramento significa lei, decreto ou ato administrativo, sendo que este último tem vantagem sobre os demais, porque pode ir se adaptando às mudanças da sociedade. Vejamos como o Brasil vem tratando a questão.

Para o Poder Executivo, a Lei 8.394, de 1991, dispõe sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República. O artigo 6º, inciso I, dispõe como primeiro objetivo o de preservar a memória presidencial como um todo num conjunto integrado, compreendendo os acervos privados arquivísticos, bibliográficos e museológicos.

A redação é clara quanto à preservação de documentos para fixação da memória do período de presidência, mas omissa quanto aos presentes ou vantagens de qualquer espécie.

Foi o Decreto 4.081, de 2002, que instituiu o Código de Conduta Ética dos Agentes Públicos em exercício na Presidência e Vice-Presidência da República, que avançou na matéria. Nele está disposto que:

Art. 10.  É vedado ao agente público, na relação com parte interessada não pertencente à   Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ou de organismo internacional de que o Brasil participe:

II – receber presente, transporte, hospedagem, compensação ou quaisquer favores, assim como aceitar convites para almoços, jantares, festas e outros eventos sociais;

Mais adiante, no parágrafo 1º, esclarece que não se consideram presentes os brindes que não tenham valor comercial ou sejam distribuídos de forma generalizada por entidades de qualquer natureza a título de cortesia, propaganda, divulgação habitual ou por ocasião de eventos especiais ou datas comemorativas, desde que não ultrapassem o valor de R$ 100.

Para dar as diretrizes, atender as consultas dos interessados e propor sanções administrativas, foi criado o Sistema de Gestão da Ética do Poder Executivo Federal, através do Decreto 6.029, de 2007, vinculado à Casa Civil. Em novo e importante passo, a Comissão de Ética Pública baixou a Resolução 3, de 2000, disciplinando quando é proibido e quando é permitido aceitar presentes.

Assim, por exemplo, o item 1, inciso II, veda o recebimento de presentes quando haja     interesse pessoal, profissional ou empresarial em decisão que possa ser tomada pela autoridade, individualmente ou de caráter coletivo, em razão do cargo. Já o item 2, inciso II, admite o recebimento quando ofertados por autoridade estrangeira, nos casos protocolares em que houver reciprocidade ou em razão do exercício de funções diplomáticas. No item 3 indica-se o destino a ser dado, conforme o caso, aos presentes recebidos, podendo ser o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN, entidade de caráter assistencial ou filantrópico reconhecida como de utilidade pública ou simplesmente incorporado ao patrimônio da entidade ou do órgão público.

No âmbito do Poder Judiciário, o Código de Ética da Magistratura Nacional, editado pelo Conselho Nacional de Justiça, estabelece no artigo 17 que é dever do magistrado recusar benefícios ou vantagens de ente público, de empresa privada ou de pessoa física que possam comprometer sua independência funcional. Este dispositivo vincula todos os magistrados brasileiros, exceto os ministros do Supremo Tribunal Federal, porque estes não estão subordinados ao CNJ.

O STF editou um Código de Ética para os seus servidores, através da Resolução 246, de 2002. Portanto, seus ministros não estão sujeitos a ele. No artigo 15 proíbe-se o recebimento de presentes de valor superior a R$ 100,00 e, quando não puderem ser recusados ou devolvidos, serão doados a entidades de caráter filantrópico ou cultural. O Tribunal de Constas da União também possui um Código de Ética para os seus servidores, objeto da Resolução nº 226, de 2009.

O Ministério Público não tem Código de Ética para os seus agentes. O Conselheiro Adilson Gurgel de Castro, em 17 de abril de 2012, formulou proposta de Resolução neste sentido, todavia ela, até o momento, não foi acolhida.

De todo o exposto, o que se percebe é um vazio normativo e o que é pior, um absoluto desconhecimento e interesse pelos critérios de razoabilidade no recebimento de presentes. Neste negativo vácuo surgem inúmeras dúvidas em que, muitas vezes, não se sabe o que pode e o que não pode ser feito.

Neste quadro, o que se tem a fazer é pautar-se pelo bom senso e aplicar-se, por analogia, Decretos e Resoluções de outros Poderes ou mesmo de outros Tribunais. Sempre tendo em mente que Código de Ética não é lei e, por isso, não pode criar ilícitos administrativos, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da legalidade.

Por exemplo, se a Resolução do CNJ não atribui valor a um presente que venha a ser oferecido a um magistrado, o correto será aplicar-se, por analogia, o Decreto 4.081, de 2002, fixando-o na quantia máxima de R$ 100. Já um livro doado por um autor também não deve ser recusado, ainda que ultrapasse este valor, porque se trata de um trabalho intelectual e que, se presume, terá utilidade.

Em suma, a bajulação e a entrega de presentes às autoridades sempre esteve presente na vida nacional. Todavia, no atual estágio de conscientização da sociedade brasileira, é chegada a hora de pôr o assunto às claras, seja debatendo-o com realismo, seja apontando-o quando existente, a fim de que seja coibido.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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