Observatório Constitucional

Supremo deve evitar o duplo julgamento em ADI e Repercussão Geral

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10 de setembro de 2016, 8h00

Spacca
A atuação do Supremo Tribunal Federal mudou significativamente nos últimos anos. O tribunal deixou de ser “esse outro desconhecido” – como o chamava o provocativo título da obra de Aliomar Baleeiro[1] – e passou a protagonista dos principais debates públicos do país. Existe, no entanto, uma questão que desafia o Supremo, permanentemente, desde os primeiros anos de sua existência – a crise numérica.

Há décadas, o Supremo recebe mais casos do que consegue julgar. Pedro Lessa[2], ministro do STF de 1907 a 1921, já apontava, em 1910, sobrecarga de trabalho que assolava o Tribunal.[3] Em 1913, em conferência realizada no Instituto dos Advogados, o ministro Guimarães Natal expunha preocupação com o crescimento assombroso do número de feitos no Tribunal, que, à época, chegava apenas a 2.136 processos.[4] Os números de então eram, evidentemente, muitíssimo menores do que os atuais. O passar dos anos só agravou o problema.

A tendência de massificação de demandas e a ampliação do acesso à justiça levam ao Supremo, a cada ano, milhares de casos. Segundo dados oficiais do Tribunal[5], em 1990, foram distribuídos 16.226 feitos de diferentes classes processuais. Em 2006, atingiu-se a impressionante marca de 116.216 distribuídos, o maior número registrado até o momento. Os números são ainda mais expressivos, se considerarmos todos os feitos protocolados e não apenas os efetivamente distribuídos. A história do Supremo é marcada pelo esforço de conter a torrente de processos que chega à Corte e conferir racionalidade e eficiência aos julgamentos – desde a arguição de relevância, adotada na década de 1960, até o atual sistema da repercussão geral. [6]  

Não é novidade que a instituição da sistemática da repercussão geral, pela Emenda Constitucional 45/2004, tentou justamente remediar esse problema. Com o novo instrumento, pretendeu-se criar um “filtro de relevância” e um meio de ampliação subjetiva do alcance da decisão, de modo que o recurso extraordinário interposto só pudesse ser conhecido se o recorrente demonstrasse “a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei” (art. 102, §3o, da Constituição Federal) e, uma vez julgado, a mesma tese fosse aplicada a todos os recursos com  idêntica controvérsia.

Pode-se dizer que a EC 45/2004 foi exitosa, ao menos a princípio, na medida em que conseguiu reduzir, de forma significativa, os feitos distribuídos no Supremo, nos anos que seguiriam à sua implementação. Os números caíram de 112.938 feitos distribuídos, em 2007, primeiro ano de efetiva aplicação do regime, para 66.873 no ano seguinte, chegando à marca de 27.528, em 2013, – a menor cifra registrada após a implantação da repercussão geral no STF. É certo que nem todos esses feitos são recursos extraordinários e recursos extraordinários com agravos, classes a quais se aplica a repercussão geral, mas essas são decerto as principais entre os processos distribuídos.

Hoje, sabe-se que a própria repercussão geral também vive sua crise numérica e talvez precise ela mesma de ajustes. O STF tem reconhecido repercussão geral a mais questões do que efetivamente consegue julgar.[7] Os temas acumulam-se, na Suprema Corte, à espera de decisão, assim como os processos sobrestados nos tribunais de origem. A lista já supera 900 processos-paradigmas, dos quais cerca de 320 ainda aguardam julgamento, alguns há muitos anos. O mais antigo deles é o tema 6, que tem como processo-paradigma o RE 566471, no qual se discute “a obrigatoriedade de o Poder Público fornecer medicamento de alto custo”. O reconhecimento da repercussão geral deu-se em 15.11.2007 e o caso ainda não foi decidido.

Essa circunstância impõe à Corte um esforço de autocrítica quanto às práticas de julgamento que vem adotando para os casos de repercussão geral e, de certo modo, põe em xeque o próprio futuro do instituto.[8] Há, no entanto, um aspecto pontual que também merece atenção: a relação entre a repercussão geral e os meios de controle abstrato de constitucionalidade.

Como se sabe, a EC 45/2004 promoveu uma considerável aproximação entre os meios de controle difuso e abstrato de constitucionalidade, por meio da objetivação do recurso extraordinário. A eficácia das decisões proferidas em sede de RE e de ADI, contudo, são ainda substancialmente diferentes. A despeito do efeito multiplicador que é ínsito à repercussão geral, as decisões de mérito proferidas nesses feitos não são dotadas de efeito vinculante, ao contrário do que ocorre com as ações diretas, que “produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal” (art. 102, §2o). Ou seja, nos termos da Constituição Federal, a eficácia das decisões de mérito em ADI e ADC é mais ampla do que a das decisões em recurso extraordinário.

As ações diretas, por outro lado, não têm o condão de automaticamente suspender a tramitação na origem dos recursos extraordinários que versem sobre idêntica questão constitucional, a não ser nos casos de concessão de tutela cautelar com esses feitos, como prevê o art. 12-F da Lei n. 9.868/1999. Assim, ainda que tramite no STF uma ADI contra determinada lei, nenhum recurso deixará de ser remetido à Corte, mesmo que tenha por objeto a constitucionalidade do mesmo diploma normativo impugnado pela via da ação direta.

Na prática, em tais situações, os ministros do STF adotam uma destas três soluções: 1) determinam o sobrestamento de todos os recursos extraordinários com o mesmo tema nos próprios gabinetes para aguardar o julgamento da ação direta e, então, decidi-los individual e monocraticamente; 2) negam seguimento monocraticamente aos recursos, sem avançar propriamente no mérito do caso, com fundamento em jurisprudência defensiva ou 3) submetem o caso ao Plenário (Virtual) a fim de reconhecer a repercussão geral da questão constitucional e assim devolver à origem os feitos com idêntica controvérsia.

Nenhuma das três soluções é satisfatória. A primeira remete ao período anterior à EC 45/2004, em que os relatores eram levados a repetir inúmeras vezes a mesma decisão em incontáveis casos similares. A segunda pode conduzir a precedentes conflitantes sobre a mesma questão, nos casos em que se julga o recurso, ao fundamento de ofensa reflexa ou de impossibilidade de reexame dos fatos (Súmula 279), mas se decide pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade da mesma lei em sede de ADI. A terceira solução implica que o Tribunal julgue, pelo menos, duas vezes a mesma controvérsia, uma vez em controle abstrato e outra em controle difuso, o que pode gerar trabalho dobrado e atraso nos julgamentos.

A hipótese de duplo julgamento é mais comum do que se imagina. Diversos temas de repercussão geral reproduzem questões constitucionais idênticas às submetidas à Corte em controle abstrato. É o caso, por exemplo, do RE 601.314, de relatoria do ministro Edson Fachin, e das ADIs 2.310, 2.397, 2.386 e 2.859, de relatoria do ministro Dias Toffoli, que discutiam a constitucionalidade da Lei Complementar 105/2001, especialmente no tocante ao acesso direto do fisco aos dados bancários dos contribuintes. Também é o caso da discussão quanto à validade do Protocolo n. 21/2011, do Conselho Nacional de Política Fazendária, que dispunha sobre a tributação das vendas interestaduais realizadas por meio do comércio eletrônico, e foi examinado tanto na ADI 4628, de relatoria do ministro Luiz Fux, quanto no RE-RG 680.089, de relatoria do ministro Gilmar Mendes.

O mesmo aconteceu com o debate sobre a constitucionalidade da redução dos valores de indenização do Seguro DPVAT pela Medida Provisória 340/2006, convertida na Lei 11.482/2007. O ato normativo foi objeto das ADIs 4350 e 4627, de relatoria do ministro Luiz Fux, e também, em repercussão geral, do ARE 704.520, de relatoria do ministro Gilmar Mendes. Outro exemplo diz respeito à constitucionalidade dos §§ 15 e 17 do art. 74 da Lei 9.430/1996, com redação dada pelo art. 62 da Lei 12.249/2010, que estabelecem multa isolada de 50% sobre o valor do crédito tributário objeto de pedido de ressarcimento indeferido ou indevido. Tal questão aguarda julgamento tanto na ADI 4905, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, quanto no RE 796.939, de relatoria do ministro Edson Fachin.

A lista é apenas exemplificativa. Uma pesquisa atenta nos 900 temas examinados pelo Plenário Virtual deve revelar muitos outros casos. Em todos eles, o Tribunal realiza um duplo julgamento da questão, uma vez em controle abstrato – ADI, ADC, ADO ou ADPF – e outra em controle concreto – recurso extraordinário. Por quê? É que, apesar da eficácia vinculante das decisões em controle abstrato, os recursos extraordinários com idêntica controvérsia não podem ser simplesmente devolvidos à origem, nos termos da legislação processual vigente. São julgados um a um no STF.

Essa prática do duplo julgamento traz ao menos três inconvenientes. Primeiro, submete a condução de uma mesma questão constitucional a dois relatores diferentes, um para a ação direta e outro para o recurso. Segundo, pode gerar demora no julgamento, causada pela diferença de tramitação dos feitos, haja vista que um relator acaba tendo que esperar pelo outro para que ambos os feitos sejam julgados em conjunto. Terceiro, implica trabalho dobrado para o Tribunal e para as partes, além do risco de prolação de decisões contraditórias, por razões circunstanciais como, por exemplo, quórum e oportunidade de julgamento.

O novo Código de Processo Civil não solucionou esse problema. As ações diretas continuam disciplinadas por legislação específica, em geral, anteriores à sistemática da repercussão geral – à exceção da Lei n. 12.063/2009 (ADO), que é posterior – e o Código não lhes estende os efeitos processuais da sistemática dos recursos repetitivos.

Ao que parece, a legislação processual merece um ajuste nesse ponto, a fim de conferir às ações diretas efeitos processuais similares aos do reconhecimento de repercussão geral. Em outras palavras, Trata-se de permitir que os recursos que versem sobre a mesma questão constitucional discutida em ação direta fiquem – se assim entender necessário o relator do caso – sobrestados na origem para aguardar a decisão de mérito do STF, nos termos dos art. 1.036 e 1.037 do Código de Processo Civil. Decidido o mérito da ação, caberia ao Tribunal de origem reexaminar os feitos sobrestados, julgando-os prejudicados ou retratando-se, conforme o caso, sem que os recursos tenham que ser encaminhados, um a um, ao Supremo.

É certo que pequenas mudanças como a que se sugere neste artigo não serão suficientes para pôr termo à permanente crise numérica que assola o Supremo Tribunal Federal. Podem, no entanto, contribuir para se conferir mais eficiência e racionalidade aos julgamentos do Tribunal – um pequeno ajuste entre muitos outros que podem ser necessários em breve.


[1] BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, êsse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968.
[2] Dizia então Pedro Lessa: “Desde que todos os litigantes podem, invocando o artigo 59, II, da Constituição, recorrer para o Supremo Tribunal Federal das sentenças dos juízes e tribunais federais, a consequência indefectível  será continuar o Supremo Tribunal Federal sobrecarregado do mesmo abundante trabalho que o oprime, e protelar-se muito mais a decisão dos feitos. Não se compreende que a ideia da instituição dos tribunais de segunda instância tenha sido sugerida pelos que desejam abreviar o julgamento definitivo dos pleitos judiciais. É um contrassenso. Fazer do Supremo Tribunal Federal uma terceira instância ordinária é aumentar a já insuportável lentidão com que se decidem as causas federais”. LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 23-24.
[3] É fundamental, no entanto, considerar que os contornos da  “crise” eram muitíssimo diferentes dos atuais. Explica, à propósito, Carlos Horbach: “É importante destacar, entretanto, os reais contornos dessa “crise”: Aliomar Baleeiro registra, por exemplo, que o ministro Epitacio Pessôa, em dez anos de Supremo Tribunal Federal, recebeu por distribuição, para relatoria, somente oitenta e seis feitos”. HORBACH, Carlos Bastide. Memória jurisprudencial: ministro Pedro Lessa. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2007.
[4] Expressando preocupação quanto ao tema, aduziu o ministro Guimarães Natal, em conferência publicada em 1913: “De ano para ano cresce assombrosamente o número dos feitos que sobem em grau de recurso ao Supremo Tribunal. […] A simples enunciação do movimento dos processos no Supremo Tribunal, no corrente ano, documentará suficientemente o que acabo de afirmar:  Em andamento, 1.104; Com dia para julgamento, 264; Dependentes de prepara, 301; Julgadas até 23 de setembro, 467; Total, 2.136.” [SIC] NATAL, Joaquim Xavier Guimarães. A reforma da Justiça Federal. Revista Forense, Belo Horizonte, v.20, n. 115-120, p. 329-338, jul./ dez., 1913.
[5] As informações estão disponíveis em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=REAIProcessoDistribuido
[6] A propósito do tema, ver: CARVALHO FILHO, José dos S. Repercussão Geral: Balanço e Perspectivas. São Paulo: Almedina, 2015; FUCK, Luciano Felício. O Supremo Tribunal Federal e a repercussão geral. Revista de Processo, v. 181, p. 9-37, 2010.
[7] Ver a propósito: BARROSO, Luís Roberto. Reflexões sobres as Competências e o Funcionamento do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/palestra-ivnl-reflexoes-stf-25ago2014.pdf
[8] Ver: http://www.conjur.com.br/2016-jul-01/stf-discutira-solucao-acervo-recursos-volta-recesso

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