Opinião

Judiciário deve, sempre, intervir em abusos do poder político

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6 de setembro de 2016, 7h19

Terminado o julgamento de impeachment da presidente Dilma Rousseff e sendo esta afastada em definitivo, a defesa da ex-presidente recorreu ao Supremo Tribunal Federal buscando a anulação por vícios processuais do procedimento. Contudo, muito se discute sobre a natureza do crime de responsabilidade, se meramente imputado por aspectos políticos ou se imprescindível que haja o aspecto jurídico. Portanto, essa questão não estaria a livre disposição do julgador político e poderia ser deliberada pelo Poder Judiciário.

Esse debate é recorrente entre os próprios senadores que funcionaram como julgadores no processo do impeachment. Retratando essa confusão, cito como exemplo a colocação de determinada senadora, que ao contrapor a testemunha de defesa de Dilma, afirma que a definição de crime de responsabilidade é misto, mas caberia somente ao senado enquanto casa julgadora verificar a ocorrência do crime. Ainda frisa, que o STF ao julgar a ADPF 378, que estabeleceu o ritmo do impeachment, legitimou o procedimento do impeachment, resguardando assim a ampla defesa, sendo que a presença do presidente do STF na condução dos trabalhos é fruto dessa legitimidade jurídico-constitucional. Por fim, ressalta que a tese do golpe não é correta, visto que o processo de impeachment estar previsto na Constituição Federal.

Essa argumentação exposta é frequente até mesmo em parcela dos juristas pátrios. Contudo, carrega elevada imprecisão.

A jovem democracia brasileira nesse ano enfrenta seu segundo processo de destituição do seu presidente da república em 28 anos de constitucionalismo democrático. Esse processo foi iniciado ainda no ano de 2015 e imputa a presidente Dilma Rousseff o crime de responsabilidade pelas pedaladas fiscais (supostas operações de créditos entre o governo e instituições bancárias públicas controladas por este) e por decretos de suplementação orçamentárias não aprovados pelo Congresso Nacional.

Dessa forma, amparado pelo artigo 85, da CF/88, que imputa a cassação de mandato ao presidente da república que cometer o crime de responsabilidade e submete esse julgamento ao Senado Federal, após a Câmara Federal autorizar a instauração do processo (artigo 51 e 52, da CF/88), estar-se-ia sob um “impeachment constitucionalizado”

Entretanto, não é mera menção no texto constitucional do impeachment que o torna determinado processo de destituição do governante legitimado constitucionalmente. Há de mencionar que a norma fruto da interpretação do texto prevê que haja necessariamente o crime de responsabilidade. Portanto, a caracterização do crime é elemento sine qua non o impeachment não prospera (clique aqui para ler mais sobre a questão da natureza mista do processo de impeachment).

Ainda, pergunta-se: Esse crime pode ser definido pelo Senado utilizando critérios somente políticos? Respondendo positivamente a essa questão fica afrontado o aspecto jurídico do crime de responsabilidade, sendo que a juridicidade é figura constitutiva de qualquer crime.

Desta feita, o Senado não tem poder discricionário para imputar o crime de responsabilidade quando o aspecto jurídico não estiver claramente presente. Há somente discricionariedade no aspecto político, mas não na imputação do delito, sendo que ausente este pressuposto e aprovado o impedimento este será inconstitucional.

No caso de ocorrência do supracitado cabe ao guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, nulificar o ato praticado pela instância política. Aqui não é o próprio tribunal que está barrando o impeachment por sua vontade, mas sim aplicando o imperativo constitucional. Essa argumentação já foi exposta por juristas nacionais, que entendem que não haveria condições constitucionais para o prosseguimento do impeachment e, o STF deveria barrar ou nulificar o ato (leia aqui).

A disposição constitucional poderia parecer inicialmente contrária a noção de democracia e da vontade popular. No entanto, visto mais profundamente, a constituição não é contrária a democracia, sendo que aquela é fator indispensável a manutenção desta, preservando-a dos ataques dos poderes, inclusive do poder político.

A noção de Estado de Direito se inicia com as Constituições Liberais do Século XVIII, que buscavam a limitação do Poder e é a partir desse momento que o aspecto jurídico assume relevância para a democracia.

A limitação do poder pelo direito, ou seja, a democracia controlada pelo Direito, é tencionada frequentemente com a ideia que de que democracia representava a vontade da maioria e assim, poderia tomar as direções da nação como bem quisesse. Essa tensão permanece até a atualidade. Contudo, após a 2ª Guerra Mundial foi aceita quase unanimemente que a Constituição deve ser normativa, vinculante e normativa para a preservação do regime democrática.

A noção de controle judicial, ou seja, do direito deveria controlar aspectos políticos retorna ao início da jurisdição constitucional ocorrida nos  Estados Unidos já no ano de 1803, quando ocorreu o primeiro caso de controle de constitucionalidade de ato inferior a Constituição.

Situação oposta ocorreu na França, no qual o aspecto político se sobrepôs ao jurídico, sendo o direito utilizado na luta para a conquista de poder. E a consequência dessa atuação é que desde sua primeira constituição no século XVIII até a atualidade, as constituições pouco duraram, sendo destituídas de seu projeto de futuro diante da força política, visto a ausência normativa de vinculação do poder. Não havia freios para essa democracia e as maiorias imponham suas vontades a nação. Ocorre que, as vontades gerais são movidas por emoções e precisam de amarras presentes na constituição e que protegem a democracia dos “cantos das sereias”. Esse poder democrático decorrente do povo precisa auto proteger-se da sua própria destruição.[i]

Nesse sentido, é a própria constituição democrática que irá impor os freios à própria democracia. Assim, no regime democrático há limitações e a vontade do povo deve seguir as regras que o mesmo povo se impôs para que a democracia se mantenha viva.

O sistema presidencialista disposto na Constituição atual, descreve que para o impedimento do mandatário do chefe governo faz-se necessário a caracterização de crime de responsabilidade. Qualquer outro aspecto político utilizado como fundamento da decisão que não caracteriza o crime é nulo.

Utilizar-se somente de aspectos políticos, econômicos ou de governabilidade para a retirada de algum governante somente é possível em sistemas parlamentaristas, no qual diante da perda de apoio do parlamento, o governo é desconstituído.

A votação do impeachment como se fossemos um sistema parlamentarista é incompatível com o modelo de governabilidade gestado constitucionalmente, pois a moção de desconfiança que se está utilizando é somente fundada por aspectos políticos e deixa sem efeito a baliza do impeachment, ou seja, a imputação de um crime. A sua infringência ataca o núcleo essencial da democracia pátria, ou seja, o preceito fundamental do sistema de governo presidencialista.

Desse modo, o julgamento do impeachment deve ser seguir a constituição, sendo que a vontade popular presente no Congresso Nacional, não o autoriza a casa política a falar qualquer coisa de qualquer coisa quando está funcionando como julgador do chefe de governo.

Ademais, não é por que o impeachment tenha seguido o rito determinado pelo STF na ADPF 378 que o processo de impedimento torna por si legítimo constitucionalmente. Deve se distinguir entre um rito meramente formal e um procedimento legislativo constitucional que se coaduna com o devido processo legal, que é elemento fundante no procedimento do impeachment. Não é a mera menção que foram produzidas inúmeras provas e horas de depoimentos de testemunhas ou de interrogatório da ré, é que o devido processo foi resguardado. Além disso, que tipo de processo no qual durante a produção de prova e depoimentos finais, os julgadores políticos adiantavam julgamento antecipado da questão.

Será que o devido processo é assegurado quando os julgadores não estão abertos a argumentos jurídicos produzidos na instrução do processo do impeachment? Ademais, será que senadores que funcionam como juízes podem ser acusadores? Acusação e julgamento podem ser o mesmo lado?

Diante disso, mesmo em uma atuação procedimental de Jurisdição Constitucional e que não adentra do mérito das questões políticas, é tarefa fundamental a atuação do Judiciário no que concerne a preservação do devido processo legal, no qual as partes possam intervir verdadeiramente no delinear do feito. Assim, a constatação da possível ausência de justa causa é compatível com um procedimento constitucional material.

O direito, para Habermas, torna-se essencial a prática política, visto dar segurança ao embate político, ou seja, garantir o procedimento racional entre os envolvidos. Assim, diante de um caso de uma violação da deliberação equânime e racional das partes, poderia o Judiciário intervir para que fosse alcançado um procedimento correto, no qual nenhuma parte fosse subjugada.[ii]

Desse modo, por exemplo, utilizando a questão do devido processo legislativo do impeachment, ressalta-se que este não é mero direito das minorias, mas é exigência republicana baseada no princípio democrático e na materialização da Constituição. Poderíamos chama-la de Justiça procedimental. Contudo, ressalta-se que esse procedimento não é um formalismo sem algum tipo de substância trazida pelos princípios constitucionais. [iii]

Assim, o direito a um trâmite legislativo conforme a Constituição não deve ser somente um direito subjetivo do parlamentar como se fosse uma questão privada e sim, uma questão pública, pois o parlamentar está exercendo uma função pública. Nesse sentido o professor Marcelo Cattoni já há muito tempo tem criticado a jurisprudência do STF sobre a matéria, pois o parlamentar está defendendo a sociedade como todo.

Ao contrário do que sustenta o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, esses requisitos formais são, de uma perspectiva normativa, condições processuais que devem garantir um processo legislativo democrático, ou seja, a institucionalização jurídica de formas discursivas e negociais que, sob condições de complexidade da sociedade atual, devem garantir o exercício da autonomia jurídica — pública e privada — dos cidadãos. O que está em questão é a própria cidadania em geral e não o direito de minorias parlamentares ou as devidas condições para a atividade legislativa de um parlamentar X ou Y. Não se deve, inclusive, tratar o exercício de um mandato representativo como questão privada, ainda que sob o rótulo de ‘direito público subjetivo’ do parlamentar individualmente considerado, já que os parlamentares, na verdade, exercem função pública e representação política; e é precisamente o exercício necessariamente público, no mínimo coletivo ou partidário, dessa função que se encontra em risco. Trata-se da defesa da garantia do pluralismo no processo de produção legislativa, na defesa da própria democracia enquanto respeito às regras do jogo, da possibilidade de que a minoria de hoje possa vir a se tornar a maioria de amanhã.[iv]

Não podemos considerar que em pleno auge do constitucionalismo dirigente e normativo, que haja espaços blindados ao controle de constitucionalidade. No qual, a leitura feita do regimento ou de leis infraconstitucionais dá as balizas a interpretação constituição e não o contrário e o correto, no qual a Constituição Federal daria o norte para a interpretação das normais inferiores, incluindo os regimentos internos.

Logo não é possível concordar com as decisões sobre matéria interna corporis utilize a jurisprudência do Tribunal anterior a Constituição de 1988. Também não se pode ratificar os ensinamentos do ministro Paulo Brossard, quando afirma que o julgamento do Senado é pleno no caso do impeachment e que não merece nenhum controle do Poder Judiciário.[v]

Deve–se frisar que não está apoiando posturas ativistas, mas é dever do Poder Judiciário realizar a jurisdição constitucional, sendo está sua principal função. Não podemos considerar que a crítica da atuação do Judiciário e sua superexposição dê margem à interpretação que este deva ser inerte e não realizar seu papel constitucionalmente atribuído.

Numa última palavra, registre-se que em momento algum a posição externada deve confundir-se com qualquer defesa de uma hipertrofia do Judiciário ou sua elevação a patamar superior aos demais Poderes da República. Contudo, o controle dessa pretensa “ditadura do Judiciário” não pode ser feito em desrespeito à Constituição e à inafastabilidade da prestação jurisdicional, de modo que, hermeneuticamente, é possível e necessário estabelecer essa fronteira entre judicialização da política e ativismo, em que a primeira se apresenta de forma contingencial e inexorável ao paradigma vigente e o segundo como inadequado e danoso.[vi]

Assim sendo, a Jurisdição Constitucional deve garantir a constitucionalidade do processo do impeachment, visto tocar no cerne sensível do nosso sistema democrático, a soberania popular e o sistema presidencialista de governo. Por fim, como bem ressaltam os professores Alexandre Bahia, Diogo Bacha e Silva e Marcelo Cattoni os quais concordamos:

“Desde quando garantir a constitucionalidade do processo de impeachment é infringir a soberania popular? Ao que consta, o processo de impedimento toca o núcleo do sistema presidencialista de governo adotado pela Constituição — à separação de poderes, “cláusula pétrea” —, ou seja, ao modo com que as deliberações estatais mais fundamentais devem ser constitucional e democraticamente formadas […]”[vii]


[i] Para melhor compreender a diferença enre os dois modelos de constituição, sugrimoa a obra de DALLARI, Dalmo de Abreu. A constituição na vida dos povos. São Paulo: Saraiva, 2010.

[ii] HABERMAS, Jürguen. Direito e Democracia. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, vol I, em especial o capítulo sobre o papel da Jurisdição Constitucional.

[iii] “Tal perspectiva não poderá reduzir-se a uma leitura meramente instrumental do processo legislativo, como sugerem os enfoques liberais da política, pois há que se levar explicitamente em conta o caráter normativo dos princípios constitucionais que justificam a legitimidade desse processo”. OLIVEIRA, Marcelo A. Cattoni de. Processo Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 213.

[iv] OLIVEIRA, Marcelo A. Cattoni de. Processo Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 198.

[v] BROSSARD, Paulo. Impeachment. São Paulo: Saraiva, 1992

[vi] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 711.

[vii] BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes, BACHA E SILVA, Diogo e CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. O Impeachment e o Supremo. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p.94.

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