Diário de Classe

Anotações de uma resenha para entender melhor o Estado contemporâneo

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22 de outubro de 2016, 7h10

Spacca
O livro Ascensão e Declínio do Estado, de Martin van Creveld, é um daqueles livros grossos e densos que vale a pena ser lido. O texto de Creveld reúne um número considerável de informações sobre o governo, o Estado e as formas de apresentação do poder político numa perspectiva histórica. Além de política, a análise cruza dados jurídicos, etnológicos e antropológicos projetando-os em um quadro teórico consistente que confere ao texto um interessante caráter de originalidade.

Do ponto de vista teórico, merece destaque o corte rigoroso com o qual opera Creveld diferenciando governo de Estado. Nessa medida, Creveld posiciona-se em sentido similar àquilo que Noberto Bobbio nomeou como tese da descontinuidade: a concepção segundo a qual o Estado é uma fórmula política nova, sem precedentes em períodos históricos anteriores, e que foi desenvolvida no eixo dos séculos XV e XVI. Antes desses eventos existem comunidades políticas que organizam um governo e distribuem a Justiça, mas isso não significa que haja Estado. Nesse contexto, “o Estado representa apenas uma das formas que, historicamente, a organização do governo assumiu”[1].

Essa posição, por si só, justifica o interesse pelo livro, que se encontra nos antípodas da literatura tradicional que usamos nos cursos de Direito para apoiar os estudos das disciplinas de Teoria do Estado e Ciência Política. A maioria destes textos didáticos costuma oferecer um capítulo inicial apresentando uma pretensa “evolução do Estado”, dando um tratamento quase atemporal para essa fórmula política perseguindo seus caracteres entre fenícios, egípcios, gregos e romanos[2] (a lista pode aumentar, de acordo com o autor que se esteja a analisar).

Sem embargo, para Creveld, as primeiras unidades políticas que podem ser denominadas Estados foram França, Espanha, Portugal, Inglaterra, os países que compunham o Sacro Império Romano, a Escandinávia e a Holanda[3]. Nota-se, portanto, que o Estado, além de ser um produto de um tempo histórico em específico (e não um dado natural da realidade), representa uma fórmula tipicamente europeia de organização do poder político. Depois disso, o modelo ultrapassou os limites do continente europeu e da ilha, migrando para o continente Americano, para a Ásia, para a Oceania e para a África. Assim, de um início bastante restritivo, em que apenas 2% ou 3% da superfície terrestre era ocupada por Estados, no decorrer do século XX assistimos a uma expansão fabulosa dessa fórmula política de modo que, contemporaneamente, a porcentagem foi invertida: apenas uma parcela ínfima do globo terrestre não se organiza politicamente na forma de Estado.

O século XX representa um tempo estratégico para a análise e reflexão sobre o Estado. Nele, essa fórmula politica encontrou o seu apogeu e também o início de seu declínio (ao menos nos termos da interpretação proposta por Creveld).

Na verdade, o que fica muito claro a partir da análise de Creveld é que o Estado se movimenta por meio de transformações que modificam sua estrutura — ou seu Design — a cada migração cultural ou alteração das coordenadas de espaço de experiência e horizonte de expectativa dos tempos históricos. Por outros caminhos, esse elemento da obra de Creveld acaba por nos remeter ao influente livro de Garcia-Pelayo, chamando Transformações do Estado Contemporâneo. Desse modo, é possível perceber transformações nas estruturas do Estado a cada migração cultural, quando a fórmula política é exportada — ou transplantada — da Europa para outras realidades culturais, como é o caso das Américas, da África, da Ásia e da Oceania. Ao mesmo tempo, percebem-se modificações estruturais também por conta da modificação nas coordenadas do tempo histórico.

Nesse último aspecto, o que diferencia o século XX dos tempos anteriores é o encurtamento que se observa nos interstícios destas transformações temporais.

Assim, entre o final do século XIX até a primeira metade do século XX, as atenções de toda burocracia estatal e das tarefas designadas para esta máquina estavam voltadas para o ambiente externo. Creveld afirma que o sucesso do Estado e seu fortalecimento nesse período não está ligado à sua eficiência para preservar a paz, mas, ao contrário, deve-se à sua competência para fazer a guerra. A captação de receitas, a criação de burocracias e o modo como o dinheiro público seria gasto, estavam vinculadas à agenda militar e à consequente lógica de expansão territorial e aumento do espaço de exercício de soberania que lhe é correlato.

O novo marco que irá forçar uma modificação dessas estruturas, por certo, será o fim da Segunda Guerra Mundial. A partir daí, especialmente dos primeiros anos da década de 1950, o Design assumido pela fórmula estatal passará a comportar um maior número de tarefas internas, a partir da expansão da social democracia, naquela que já foi chamada de “época de ouro do capitalismo”. Mas essa mudança, segundo Creveld, deve-se também a aspectos ligados ao militarismo, e não a uma espécie de epifania coletiva que seria responsável por uma espécie de despertar ético que passou a reconhecer no Estado um ator importante para produzir redução de desigualdades. Nos termos propostos por Creveld, o Estado pode voltar-se com mais vigor para solução dessas questões internas porque a corrida armamentista, e a posse de bombas atômicas por parte das duas superpotências antagônicas, acabou por imobilizar a ação do Estado voltada para a guerra. Ou seja, a posse de armas com potenciais destrutivos quase apocalípticos por parte dos dois lados da contenda, paradoxalmente, fazia com que qualquer ação militar mais ampla ficasse prejudicada.

Coincidentemente, nessa época, temos, ao menos no âmbito dos países centrais, o desenvolvimento de um modelo de Estado mais preocupado com a construção de redes internas de solidariedade que pudessem resolver os problemas econômicos e sociais gerados pela desigualdade. Nas palavras de Creveld: “Quando a criação de armas nucleares e a transformação das ideias no direito internacional levaram à perda da capacidade de se expandir às custas do vizinho, o Estado voltou para dentro suas consideráveis energias”[4]. Por certo, nem tudo são flores nessa nova face do Estado. Esse voltar-se para si teve também como consequência uma ampliação do poder do Estado sobre a sociedade, aumentando significativamente os níveis de intervenção por meio de leis e sufocando instituições menores nas quais o povo costumava passar a vida e resolver seus problemas mais cotidianos. A partir daí, o braço do Estado estava em praticamente todos os lugares.

A retração desse modelo — o Estado do Bem-Estar Social — tem início na década de 1970, quando duas crises econômicas desferem nele um golpe certeiro: a primeira representada pela insustentabilidade da paridade dólar-ouro com a subsequente erosão do dólar como moeda-reserva internacional estável, levando à flutuação do câmbio e abrindo caminho para a progressiva desorganização do sistema de regulação criado na metade da década 1940 pelo acordo de Bretton Woods; a segunda consubstanciada no choque do petróleo de 1973/1974 e de 1978/1979[5].

A partir da década de 1980, os países centrais passaram a desmantelar aquilo que o Estado de Bem-Estar havia produzido. Boa parte dessa retração tinha como justificativa de fundo um problema de financiamento, que ficou conhecida como crise fiscal do Estado de Bem-Estar Social. Como assinala Creveld, “os métodos usados para reduzir os benefícios e os serviços têm sido numerosos e variados. Um deles foi definir um teto arbitrário para os gastos, cortando assim a qualidade dos serviços e obrigando as pessoas a procurarem eles em outro lugar”[6].

De se notar, portanto, que toda essa situação tem muito a nos dizer a respeito de nosso atual momento. Ora, estamos diante de um processo longo de ajuste fiscal e, nas últimas semanas, assistimos o governo a batalhar na câmara dos deputados para aprovar uma PEC (PEC 241) cujo objetivo é exatamente criar esse teto arbitrário de gastos, medida já utilizada em países europeus que passaram pelo desmantelamento de suas políticas de bem-estar. Claro que isso não significa que a tal PEC possua um mal em si, seja inconstitucional e deva ser fulminada. Mas, esse dado deve nos fazer refletir sobre os efeitos que uma tal medida teria entre nós. Isso porque, os países europeus conseguiram, em maior ou menor medida, reduzir desigualdades com suas políticas de bem-estar. O Brasil, ao contrário, continua devendo nesse quesito. A conversa mole no sentido de que os governos do presidente Lula teriam operado algo semelhante a um processo de redução de desigualdades não é verdadeira. Pelo menos não totalmente. As politicas sociais conseguiram produzir algum tipo de inclusão pelo consumo, o que dá uma falsa sensação de redução das desigualdades, mas, na verdade, continuamos a patinar em cima da mesma lama histórica.

Esse é o fator que torna tudo muito mais complicado: nossas peculiaridades históricas e sociais fazem com que as discussões sobre o que seja tarefa essencial do Estado sejam diferentes daquelas que têm lugar no ambiente europeu ou estadunidense. Todavia, em face dos movimentos de globalização, sofremos, de algum modo, a incidência do resultado dessas discussões que lá são travadas. Como vamos resolver nosso problema é, a toda evidência, uma questão aberta. Livros como este de Martin van Creveld pode nos ajudar a entender melhor como essa situação surgiu e se cristalizou. E isso já é muita coisa! Ou seja, tudo o Creveld nos conta tem uma “aplicação” muito mais dramática em países periféricos — eufemisticamente chamados de “países em desenvolvimento” — como o Brasil. Se as consequências dos cortes como se pretende com a PEC 241 já eram deletérios em países europeus nos quais houve efetivamente o welfare state, o que dizer quando se corta antes de tê-lo? Seria um poupicídio? De outro lado, com o Estado engorda(n)do como está o brasileiro — em que a farra à sombra do Estado produz déficit como se a expansão de despesas fosse um universo em expansão (portanto, infinito) — o que fazer, mormente se gastamos um razoável percentual para pagar os juros da dívida pública engordando a banca?

Parece que, uma eventual atualização do livro de Creveld deverá ter um capítulo só para falar dessa situação do Brasil. Ou do que dele sobrar.     


[1] CREVELD, Martin van. Ascenção e Declínio do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 595.
[2] Por todos, Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 36 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. Evidentemente que possuímos livros com propósitos didáticos que manifestam uma posição similar àquela que percebemos em Creveld. Nesse aspecto, vale lembrar o livro de Lenio Streck e José Luis Bolsan de Morais, Ciência Política e Teoria do Estado. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
[3] CREVELD, Martin van. op., cit., p. 377.
[4] CREVELD, Martin van. op., cit., p. 507.
[5] Interessante anotar, com J. E. Faria, que a crise do padrão monetário mundial, surgida com o fim do gold exchange standard, decidido unilateralmente pelo governo norte-americano, abriu caminho para a progressiva desorganização do sistema de regulamentação criado em Bretton Woods e possibilitou a abertura dos mercados internos das economias desenvolvidas aos produtos industrializados oriundos do Terceiro Mundo. Já quanto à crise do petróleo, que se agravou no final da década de 1970, aduz o professor paulista que a acumulação dos efeitos dos dois choques do petróleo resultaram num aumento de cinco vezes o valor real do barril, desnivelando subitamente os preços relativos dos bens e serviços. Desta forma “provocaram uma crise generalizada de lucratividade e diminuíram drasticamente os níveis de acumulação; acentuaram os desequilíbrios comerciais; alteraram as direções dos fluxos do sistema financeiro; aumentaram ainda mais o já expressivo endividamento externo dos países subdesenvolvidos e, por fim, acabaram paralisando temporariamente os mercados” (FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 2000., p. 63).
[6] CREVELD, Martin van. op., cit., p. 523.

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