Ambiente Jurídico

Vaquejada, farra do boi e briga de galo na pauta do Supremo

Autor

  • Eduardo Coral Viegas

    é promotor de Justiça no MP-RS graduado em Direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) especialista em Direito Civil mestre em Direito Ambiental palestrante ex-professor de graduação universitária atualmente ministrando cursos e treinamentos e integrante da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. Autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

22 de outubro de 2016, 7h00

Spacca
A Lei cearense 15.299/2013 regulamentou a vaquejada, conceituando-a da seguinte forma: “Para efeitos desta Lei, considera-se vaquejada todo evento de natureza competitiva, no qual uma dupla de vaqueiro a cavalo persegue animal bovino, objetivando dominá-lo” (artigo 2º). Ocorre que, por trás dessa suposta manifestação cultural inocente, há maus-tratos aos bovinos e até aos cavalos, como descreveu em seu voto o ministro Marco Aurélio, relator da ADI 4.983, julgada em 6/10/2016:

Consoante asseverado na inicial, o objetivo é a derrubada do boi pelos vaqueiros, o que fazem em arrancada, puxando-o pelo rabo. Inicialmente, o animal é enclausurado, açoitado e instigado a sair em disparada quando da abertura do portão do brete. Conduzido pela dupla de vaqueiros competidores vem a ser agarrado pela cauda, a qual é torcida até que caia com as quatro patas para cima e, assim, fique finalmente dominado.

O autor juntou laudos técnicos que demonstram as consequências nocivas à saúde dos bovinos decorrentes da tração forçada no rabo, seguida da derrubada, tais como fraturas nas patas, ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, traumatismos e deslocamento da articulação do rabo ou até o arrancamento deste, resultando no comprometimento da medula espinhal e dos nervos espinhais, dores físicas e sofrimento mental. Apresentou estudos no sentido de também sofrerem lesões e danos irreparáveis os cavalos utilizados na atividade: tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias focal e por esforço, fraturas e osteoartrite társica.

A Constituição garante a todos (artigo 225, caput) o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbindo também a todos — poder público e coletividade — sua defesa intergeracional. E impõe alguns deveres ao poder público, dentre os quais o de proteger fauna e flora, vedando, na forma da lei, práticas que submetam os animais à crueldade (artigo 225, parágrafo 1º, VII).

Pela leitura desse regramento constitucional, parece não haver margem a controvérsias. Porém, há outro elemento fundamental a ser considerado, que é o direito estampado no artigo 215 da CF, consistente na obrigação do mesmo poder público de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, com proteção das manifestações das culturas populares.

Estamos, pois, frente a um conflito aparente de normas constitucionais que protegem interesses coletivos. De um lado, a vaquejada é uma manifestação cultural consolidada em diversas regiões do Nordeste. Por outro, trata-se de atividade que impinge sofrimento físico aos animais nela envolvidos, para satisfação dos interesses humanos. Um elemento adicional nesse contexto é que há lei estadual admitindo a prática cultural/esportiva e regulamentando-a. Mas a norma infraconstitucional resiste frente ao disposto no artigo 225 da CF?

A questão é tão complexa que o STF decidiu o mérito da ADI 4.983 com o apertado placar de 6 a 5, para declarar a inconstitucionalidade da lei estadual. Entretanto, enquanto para alguns decisores a questão é realmente delicada e polêmica — como para o relator —, para outros a situação é indiscutível, como se verifica das palavras do ministro Dias Toffoli: “Vejo com clareza solar que essa é uma atividade esportiva e festiva, que pertence à cultura do povo, portanto há de ser preservada”.

O STF vem enfrentando discussões jurídicas dessa natureza há longa data. As mais notórias dizem respeito à farra do boi catarinense e às brigas de galo. No julgamento do RE 153.531/SC, ocorrido há 19 anos (3/6/1997), prevaleceu o entendimento do ministro Francisco Rezek, relator, em detrimento do voto divergente do ministro Maurício Correa, que deu prevalência ao folclore regional, afirmando que a manifestação popular conhecida como farra do boi é tradição cultural formadora de patrimônio cultural imaterial resultante da vinda de portugueses açorianos para o litoral catarinense. Correa defendeu ainda que, frente a excessos, cabe ao Estado adotar as providências legais e judiciais pertinentes.

Por maioria, com o voto vencido mencionado, a 2ª Turma do STF considerou inconstitucional a prática sulista intitulada farra do boi, que se assemelha em essência à vaquejada nordestina, apesar de ser praticada sob forma e regramento diversos. O acórdão restou assim vazado:

COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado "farra do boi".

Outra situação também enfrentada pelo Supremo diz respeito às brigas de galo. Diferenciam-se das práticas da vaquejada e da farra do boi por terem maior viés esportivo do que cultural. Ao contrário da crueldade praticada contra os bovinos, na luta das aves o homem fica de espectador de qual delas vencerá uma briga sangrenta de galos criados para o combate. Em uma ADI igualmente do estado de Santa Catarina, decidia há 11 anos, o STF reconheceu a inconstitucionalidade da norma que autorizava e regulamentava a prática desumana, conforme a ementa que segue:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 11.366/00 DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ATO NORMATIVO QUE AUTORIZA E REGULAMENTA A CRIAÇÃO E A EXPOSIÇÃO DE AVES DE RAÇA E A REALIZAÇÃO DE "BRIGAS DE GALO. A sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição do Brasil. Precedentes da Corte. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente (ADI 2514/SC, julgada em 29/6/2005).

Dois anos depois, o mesmo entendimento foi ratificado em caso análogo, oriundo do Rio Grande do Norte (ADI 3776/RN, julgada em 14/6/2007). Mais recentemente, as rinhas vieram a ser novamente objeto de apreciação do STF, agora em face de lei fluminense, merecendo transcrição a seguinte passagem do aresto:

A promoção de briga de galos, além de caracterizar prática criminosa tipificada na legislação ambiental, configura conduta atentatória à Constituição da República, que veda a submissão de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à semelhança da “farra do boi” (RE 153.531/SC), não permite sejam eles qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter meramente folclórico (ADI 1.856/RJ, julgada em 26/5/2011).

Veja-se que o julgado faz referência à configuração de crime ambiental. De fato, até a Lei 9.605/98, a crueldade contra animais era tipificada como contravenção (artigo 64). Em 1998, passou a ser considerado crime praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos (artigo 32). Ou seja, abrange todas as espécies da fauna, não apenas as selvagens.

A CF, no artigo 225, parágrafo 1º, VII, impõe especial atenção à dignidade da vida de todos os animais. Não há uma proteção direta à vida em si, já que se pode matar animais domesticáveis, por exemplo, como aqueles que nos servem de alimento. O que não pode ocorrer é a prática de maus-tratos, crueldade, seja por ação do homem — caso da vaquejada, farra do boi ou das rinhas de galo — ou por sua omissão — como quando deixa de dar alimento a qualquer espécie animal.

Se os atos capitulados como criminosos pelo artigo 32 da Lei 9.605/98 resultarem em morte decorrente dos maus-tratos, a pena é um pouco aumentada. Isto é, matar animais domésticos ou domesticados somente será crime se for resultante de maus-tratos, independentemente de autorização. Isso permite às pessoas o sacrifício de seus bichos de estimação quando acometidos de doença grave, o que é bastante comum, sem necessidade de pedirem uma permissão ao poder público. Já quanto aos animais selvagens, o ato de matar é ilícito penal por si só, se o agente não tiver autorização regular (artigo 29), assim como é delito qualquer ato de crueldade que os atingir (artigo 32), à semelhança do que acontece com os domésticos e domesticados.

Uma contradição evidente se encontra no fato de que, de uma banda, a CF inseriu norma afirmando o destacado valor do respeito à qualidade de vida dos animais, impondo ao poder público o dever de proteger a fauna, com vedação, na forma da lei, de práticas que submetam animais a crueldade. Trata-se de uma disposição que não necessitaria estar na Lei Maior, porquanto não é matéria tipicamente constitucional, como ocorre com aquelas atinentes à estrutura, atribuições e competências dos órgãos do Estado. Se ali está é porque o constituinte entendeu que o assunto merecia uma atenção diferenciada.

Contudo, a lei infraconstitucional parece não estar em consonância com essa preocupação maior, na medida em que o tipo penal dos maus-tratos, ainda que deles resultem morte do animal, são de menor potencial ofensivo. Permitem, assim, medidas como a transação penal, o que nos parece ser desproporcional com a relevância do bem tutelado pelo Direito Constitucional brasileiro.

Enfim, o Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo corretamente que as iniciativas estaduais que autorizam condutas humanas violentas contra o bem estar e a qualidade de vida dos animais ferem a previsão constitucional de que todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, assim como o dever de defendê-lo e preservá-lo para esta e as futuras gerações (artigo 225, caput), e que uma das formas de causar desequilíbrio ambiental é a prática de atos de crueldade contra a fauna, independentemente de ser ela selvagem ou não.

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    é promotor de Justiça no MP-RS, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil e mestre em Direito Ambiental. Foi professor de graduação universitária e atualmente ministra aulas em cursos de pós-graduação e extensão. Integra a Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. É autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

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