Opinião

Vivemos tempos estranhos, com verdadeiro "serial incarceration"

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21 de outubro de 2016, 18h07

Temos assistido, nos dias que correm, a fatos que nos levam a refletir sobre o proceloso mar em que estão a navegar nossa democracia e o Estado Democrático de Direito que logramos construir.

Vimos uma presidente da República legitimamente eleita pelo soberano sufrágio popular ser arrancada da primeira magistratura do país por razões políticas.

Testemunhamos, entre incrédulos e perplexos, o Supremo Tribunal Federal decretar a prisão cautelar de um Senador da República em pleno exercício de seu mandato, quando a Constituição Federal só autoriza a prisão de congressistas em hipótese de flagrante delito por prática de crime tachado como inafiançável (artigo 53, parágrafo 2º, da Constituição Federal), estado de flagrância este que evidentemente inexistia naquele caso. O Senado da República, em seguida, para assombro geral, chancelou a violação e manteve a prisão inconstitucional.

Tomamos conhecimento, aturdidos, ao depois, de que aquela mesma Suprema Corte determinou o afastamento do presidente da Câmara dos Deputados do exercício de suas funções parlamentares, medida esta fundamentada em uma tal excepcionalidade da ocasião.

Deparamo-nos com pedido de prisão processual de três parlamentares e de um ex-presidente da República, ao argumento de haverem “combinado versões de defesa” a ser produzida em eventual persecução contra eles intentada (conforme publicado no jornal Folha de S. Paulo, no dia 9 de junho de 2016)…

Prisões preventivas são decretadas, a mancheias, com fundamentos idênticos para investigados distintos, num verdadeiro “serial incarceration”, tudo sob o obsequioso e silencioso beneplácito dos tribunais superiores.

Vimos, agora, a Polícia Federal invadir o Senado Federal, para cumprir mandado de busca e apreensão expedido pelo Judiciário (de primeiro grau!), sob o pretexto de que se estaria a praticar “contraespionagem”, consubstanciada na inutilização de grampos ambientais (ilegais?) que teriam sido instalados no domicílio de três Senadores da República.

Esse cenário deixaria atônito Charles-Louis de Secondat, o Barão de La Brède e de Montesquieu, que ficaria cético quanto à sua teoria da separação dos poderes…

Afinal, que tempos são estes?

Exercício do constitucional direito à autodefesa tornou-se crime? Desde quando “combinar versão de defesa” é ato ilícito, penalmente censurável, suposta “obstrução de justiça” e motivo para a prisão de alguém?

Nem mesmo no Terceiro Reich…

É de se esperar, de outro lado, que, dando-se de barato sejam lícitos os “grampos”, a pessoa, ainda que investigada, se deixe escutar, placidamente?

Em época de pandêmica delação premiada, em que ao Ministério Público e à Polícia é dado “negociar” com colaboradores, escolhendo aquilo que julgam ser oportuno trazer à luz ou não, acusados (e seus defensores) não podem conversar entre si? Diálogo com a acusação é negociação; entre acusados é obstrução de justiça? Não é mesmo formidável?

Válida e elogiável a barganha – ética e seriamente questionável – da Polícia e do Ministério Público com supostos delinquentes, mas não se admite que corréus conversem entre si sobre a defesa e o processo? O contraditório (ciência do fato e possibilidade de reação) transmutou-se de direito constitucionalmente assegurado em reles delito?

É legítimo se impor ao acusado que se quede inerte e impassível diante da investigação/acusação que contra si é direcionada pelo Estado? Ignora-se o direito de autodefesa que, na amplitude constitucional, vai desde o silêncio até o de apresentar qualquer versão dos fatos e produzir sua contraprova? Revogou-se o privilege against self incrimination (direito de não se incriminar a si mesmo) assegurado na Constituição da República? Ou será que só se tolera a “defesa consentida” pelo Estado, como se dava na vetusta União Soviética? Ultrapassados os limites do que as autoridades da persecução entendem como aceitável para a garantia do êxito acusatório, o ato defensivo passa a ser reprovado, censurado, passível de sanção?

E os advogados a quem a Constituição impõe o dever de realizar a defesa técnica? Co-partícipes obrigatórios do novel “crime de defesa”?

Estarão próximos os dias em que o advogados dos réus em um mesmo processo ficarão igualmente impedidos de conversarem entre si sobre estratégia defensiva ou mesmo de orientarem seus clientes, posto que tal conduta passará a ser havida como delito de “obstrução de justiça”?

Se assim for, cabe ao democrata invocar a sabedoria do cancioneiro popular: parem o mundo que eu quero descer…

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