Consultor Tributário

PEC do imposto sobre grandes heranças é infeliz, mas não inconstitucional

Autor

  • Igor Mauler Santiago

    é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

19 de outubro de 2016, 7h00

Spacca
A Proposta de Emenda Constitucional 96/2015 pretende inserir na Constituição um artigo 153-A, facultando à União criar “adicional” ao ITCMD denominado Imposto sobre Grandes Heranças e Doações, com alíquotas progressivas e limitadas à mais alta do IRPF e com arrecadação destinada ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, afastada a vedação do artigo 167, inciso IV, da Carta.

A justificativa da PEC é indigente, resumindo-se a uma lista pouco precisa das alíquotas nominais máximas do imposto sobre heranças e doações em cinco países desenvolvidos, sem considerar que as alíquotas efetivas são muito inferiores, dadas as múltiplas deduções admitidas na base de cálculo.

Nada diz, ademais, sobre a inoportunidade política e a ineficiência econômica dessa abrupta elevação da carga tributária das pessoas físicas, que nos países onde intentada trouxe mais planejamento tributário e expatriação fiscal do que aumento de receita e redistribuição de riquezas. Prova disso é o Impôt de Solidarité sur la Fortune, que onera essencialmente os estratos superiores da classe média francesa (profissionais liberais, altos executivos, servidores públicos qualificados etc.), sem conseguir atingir os muito ricos.

Nesta análise, porém, deixaremos de lado a pouca simpatia que nutrimos pela proposta, concentrando-nos de forma exclusiva em seus aspectos jurídicos.

Comecemos pela identificação de seu conteúdo. A PEC fala em “adicional” ao ITCMD. Ao mesmo tempo, determina que as suas alíquotas serão “progressivas em função da base de cálculo” e dá-lhe nome próprio (Imposto sobre Grandes Heranças e Doações — doravante IGHD), razoavelmente distinto daquele do imposto que lhe serve de inspiração (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis ou Doação, de Qualquer Bem ou Direito — ITCMD).

A característica destacada na primeira frase do parágrafo anterior aponta para uma sistemática de cálculo: os impostos adicionais, por definição, são o produto de sua alíquota pelo valor devido a título do imposto subjacente. Assim era, por exemplo, o Adicional Estadual do Imposto de Renda, previsto na redação original do artigo 155, inciso II, da Constituição (“adicional de até cinco por cento do que for pago à União por pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas nos respectivos territórios, a título do imposto previsto no art. 153, III, incidente sobre lucros, ganhos e rendimentos de capital”).

Por sua vez, ainda que algo equívocas, as notas destacadas na segunda frase do mesmo parágrafo indicam metodologia diversa: incidência das alíquotas do novo imposto diretamente sobre o valor das grandes heranças ou doações.

A diferença é brutal: tomando-se as alíquotas máximas de ambos os impostos, chega-se no primeiro caso à carga tributária global de 10,2% (8% de ITCMD[1] + 27,5% de 8%); no segundo, a 35,5% (8% + 27,5%).

Pensamos que, em caso de aprovação da PEC e de instituição por lei do imposto, esta será uma controvérsia a exigir definição judicial. Sopesados os argumentos favoráveis a cada uma das leituras, temos que a segunda é a mais correta, seja do ponto de vista formal (a menção a adicional devendo ser entendida como atecnia do constituinte derivado), seja pela virtual inutilidade a que a outra reduz o novo tributo.

Resta definir o que são “grandes heranças e doações”, conceito a que a PEC vincula a competência federal. Embora se trate de expressão com elevado grau de indefinição, algum significado ela decerto tem. Um bom ponto de partida é a noção de “grande fortuna”, empregada no artigo 153, inciso VII, da Constituição. À diferença do que ocorre em outros países, onde o imposto patrimonial grava todos os contribuintes, ou todos os detentores de fortuna (caso da França, que a fixa em 1,3 milhão de euros líquidos), aqui se exige algo mais: uma grande fortuna. O termo há de ser valorizado, em atenção ao cânon de que a lei não contém palavras inúteis.

Thomas Piketty, que não pode ser tachado de direitista, propõe as seguintes faixas: pequeno ou médio patrimônio: menos de 1 milhão de euros; grande patrimônio: 1 a 5 milhões de euros; grande fortuna: acima de 1 bilhão de euros; donde se deduz que, para o autor, um patrimônio entre 5 milhões e 1 bilhão de euros constitui uma fortuna[2].

Não vamos a tanto, mas estamos convencidos da impropriedade dos pisos fixados nos projetos de lei em tramitação quanto ao Imposto sobre as Grandes Fortunas: R$ 5,5 milhões (deputado federal Dr. Aluízio), R$ 2 milhões (deputada federal Luciana Genro), e assim por diante.

Voltando ao IGHD, impõe-se observar que o qualificativo grande aplica-se de forma diferente a uma herança (uma universalidade de direito) ou à doação ou ao legado de um bem único. O limiar será mais alto para aquela do que para estes. Uma grande doação, a nosso sentir, deve ser fixada no mínimo de R$ 1 milhão. Uma grande herança, no mínimo de R$ 10 milhões. Uma fortuna (que não é objeto desta coluna), entre R$ 30 milhões e R$ 100 milhões. E uma grande fortuna (idem), no mínimo de R$ 100 milhões, sendo todos esses valores sujeitos a correção automática pela inflação.

Passemos agora ao juízo sobre a constitucionalidade da PEC. O artigo 5º da Constituição erige em cláusulas pétreas o direito à propriedade (caput e inciso XXII) e à herança (inciso XXX). Isso não impede, é evidente, a incidência de tributos sobre uma ou outra, como o ITR, o IPVA, o IPTU e o próprio ITCMD, além do Imposto sobre Grandes Fortunas, jamais instituído.

Ademais, a inclusão e a revogação de competências tributárias pelo constituinte derivado têm sido entendidas, em tese, como compatíveis com os direitos e garantias individuais (previsão do IPMF e da CPMF: Emendas Constitucionais 3/93, 12/96, 21/99, 37/2002 e 42/2003; da CIDE-combustíveis: EC 33/2001; da contribuição de iluminação pública: EC 39/2002; e das contribuições sociais e interventivas sobre as importações: EC 42/2003) e com a forma federal de Estado (supressão do adicional estadual do Imposto de Renda e do imposto municipal sobre venda a varejo de combustíveis: EC 3/93).

Os parâmetros de análise hão de ser outros, portanto. Duas são as principais teses arguíveis contra a PEC: (i) ofensa ao princípio federativo pela reiteração do fato gerador e da base de cálculo do ITCMD e (ii) violação ao não confisco. Pensamos que nenhuma delas prospera, pelo menos em relação à emenda em si mesma considerada — a segunda pode impor-se no controle da lei editada com base na emenda, a depender do respectivo teor.

A primeira tese baseia-se no artigo 154 da Constituição, que veicula a competência residual da União. Diz-se que o seu inciso I veda a reiteração de fato gerador ou base de cálculo próprios de imposto discriminado na Carta, o que a PEC decerto faz. Acrescenta-se que o comando exige lei complementar e não cumulatividade, requisitos que a PEC negligencia. E que a sobreposição de impostos só se admite em estado bélico ou pré-bélico (inciso II), em que não nos encontramos.

Os argumentos não convencem. Deveras, as limitações aplicam-se à União como ente federado, mas não ao Congresso Nacional como titular do poder constituinte reformador. De forma específica, a possibilidade de uma emenda superar os entraves do artigo 154 foi afirmada pelo STF no julgamento que convalidou, salvo quanto à anterioridade e à imunidade recíproca, a criação do IPMF (i) por lei ordinária e (ii) sem prejuízo de sua manifesta cumulatividade.

Nem nos parece — e aqui se enfrenta o coração do problema — que a autonomia estadual, de resto mitigada pela existência de um teto fixado pelo Senado, fique comprometida pela previsão de gravame justaposto ao ITCMD, se a alíquota deste último não é reduzida.

Mitigado fica, sim, o potencial de majoração do imposto estadual, que será menor do que era à falta do seu dublê federal. Mas aquela margem já não podia ser explorada de forma livre, face ao teto senatorial. E a calibração entre os dois impostos, sendo questão política da alçada do Senado (ITCMD) e do Congresso Nacional (IGHD), não virá necessariamente em detrimento dos estados.

Com isso entramos na segunda discussão. A somatória do ITMCD e do IGHD deverá, sem dúvida, obediência ao não confisco, que o STF já disse ser aferível a partir da carga tributária total incidente sobre o contribuinte[3].

Mas tal vício, se ocorrer, defluirá dos critérios de quantificação postos pela lei instituidora do IGHD (eis que o ITCMD atualmente não merece a pecha). O que não cabe é atribuí-lo desde logo à norma de competência, e isso nem mesmo à luz da alíquota máxima ali estabelecida, que pode ser reservada pelo legislador a valores tão elevados a ponto de mostrar-se aceitável.

Em síntese: consideramos a PEC uma ideia infeliz, mas nem por isso inconstitucional. Em tempos de judicialização da política e de politização do Judiciário, parece-nos salutar insistir na distinção entre esses dois campos.


[1] Resolução 9/92 do Senado Federal.
[2] O Capital no Século XXI. Trad. Monica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, p. 503.
[3] Pleno, ADI 2.010-MC/DF, relator ministro Celso de Mello, DJ 12/4/2002.

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