Opinião

Julgamento de crimes ambientais pelo TPI é marco histórico no Direito Ambiental

Autor

  • Alessandra Lehmen

    é advogada (Brasil e Nova York) laureada pós-doutoral no Programa Make Our Planet Great Again (Presidência da França/CNRS) doutora em Direito Internacional (UFRGS) mestre em Direito Ambiental (Stanford) e em Direito Internacional (UFRGS) especialista em Negociação (Harvard) e em Direito da Empresa e da Economia (FGV) vice-presidente da Comissão de Direito Ambiental e coordenadora do Grupo Temático de Mudanças Climáticas da OAB/RS.

16 de outubro de 2016, 16h10

O Tribunal Penal Internacional anunciou, no dia 15 de setembro, que passará a processar e julgar crimes ambientais. Em documento de 18 páginas que anuncia as prioridades para a seleção de casos pela corte[1], o gabinete do procurador explicitou que a corte dará especial atenção a crimes relacionados à destruição do meio ambiente, à exploração de recursos naturais e à apropriação ilegal de terras.

Essa notícia é de extrema importância para o Direito Internacional Ambiental por três motivos centrais: primeiro, porque não há, hoje, corte internacional exclusivamente dedicada à matéria ambiental; segundo, porque o acesso de atores não-estatais – seja como autores ou réus – às cortes internacionais de competências diversas que apreciam também casos ambientais é ainda significativamente limitado; e, terceiro, porque é vital que a proteção internacional do meio ambiente seja compreendida como preocupação comum da humanidade[2], ou seja, como parte de um conjunto de valores fundamentais dos quais a coesão da sociedade depende.

O anúncio do TPI é um importante avanço nessas três frentes. O tribunal é vocacionado, nos termos do Estatuto de Roma, a julgar crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e, a depender de ratificação, crimes de agressão. A expansão de seu foco para incluir crimes ambientais entre os casos que priorizará deixa claro que a comunidade internacional passará a contar com uma corte internacional permanente para, ainda que não exclusivamente, julgar crimes ambientais.

A competência do TPI para o julgamento de indivíduos é particularmente digna de nota, bem como o fato de que, sob o Estatuto de Roma, o processo pode ser iniciado por decisão do procurador levando em consideração qualquer informação sobre crimes sob a jurisdição do tribunal, incluindo informações enviadas por indivíduos ou grupos, estados e organizações intergovernamentais e não governamentais[3]. Em um mundo globalizado, e considerando também que os danos ambientais frequentemente transcendem fronteiras geográficas, é vital que os atores não estatais tenham acesso à justiça ambiental internacional. É também essencial que possam responder pelos danos ambientais que causarem, e assim também serem julgados pelos crimes correspondentes[4].

O anúncio do TPI deve ser saudado como um marco no que diz respeito a essas questões. Abrem-se portas para o julgamento de crimes que afetam comunidades inteiras – como a grilagem de terras –, bem como aqueles que são transfronteiriços por natureza e afetam a população global como um todo – como os relacionados às mudanças climáticas. Dado, porém, que na maioria das vezes esses crimes são cometidos por empresas, o mandato do TPI apresenta importante limitação na medida em que, sob o princípio da responsabilidade penal individual estabelecido no artigo 25 do Estatuto de Roma, pessoas jurídicas não estão sujeitas à sua jurisdição.

A proposta da delegação francesa para estender a jurisdição do TPI a empresas e a outras pessoas jurídicas foi rejeitada sob o fundamento de que contradiria o princípio da complementaridade adotado pelo TPI[5]. Com efeito, ainda que países – tais como, notadamente, o Brasil, que dispensou inclusive a necessidade de dupla imputação da sociedade e de seus representantes legais[6] – consagrem a responsabilidade penal ambiental das pessoas jurídicas, esta possibilidade ainda é rejeitada por Estados Partes do TPI.

Sobre os crimes relacionados às mudanças do clima, deve-se notar porém que, dentre os Estados que ratificaram o Estatuto de Roma, há ausências notáveis de grandes emissores de gases de efeito estufa, tais como Estados Unidos, China, Índia e Rússia. Além disso, o TPI julga apenas crimes ocorridos após a entrada em vigor do Estatuto de Roma, em 1º de julho de 2002 – o que limita a possibilidade de o tribunal apreciar crimes relativos a emissões históricas.

Restrições à parte, a implicação mais relevante do anúncio do TPI reside talvez não em um aspecto prático, mas no reforço da noção de que o meio ambiente constitui uma preocupação comum da humanidade; de que as normas destinadas à sua proteção são jus cogens; e de que o interesse no seu cumprimento e aplicação é erga omnes[7]. O policy paper do TPI não acrescenta propriamente uma nova competência àquelas constantes do Estatuto de Roma, de modo que é forçoso concluir que a anunciada priorização de crimes ambientais se insere naquela já existente para processar e julgar crimes contra a humanidade.

A tarefa que se impõe ao Direito Internacional Ambiental contemporâneo é a de avaliar a efetividade das instâncias internacionais de solução de controvérsias no que diz respeito às questões ambientais, assim como a de ativamente criar novas alternativas para promovê-la.

A adição do TPI ao rol dos tribunais internacionais "não-ambientais" com mandato ambiental explícito e o reconhecimento de que os crimes ambientais podem ser julgados como crimes contra a humanidade devem, sem dúvida, ser saudados como um passo decisivo rumo a essa meta.

 


[1] Tribunal Penal Internacional. Gabinete do Procurador. Policy Paper on Case Selection and Prioritization, disponível em https://www.icc-cpi.int/itemsDocuments/20160915_OTP-Policy_Case-Selection_Eng.pdf. Acesso em: 16 set.  2016. 

[2] Alexandre Kiss, Economic Globalization and the Common Concern of Humanity, in ECONOMIC GLOBALIZATION AND COMPLIANCE WITH INTERNATIONAL ENVIRONMENTAL AGREEMENTS (Alexandre Kiss et al. eds., 2003).

[3] Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, art. 15 (2).

[4] Argumentamos nesse sentido em The Case for the Creation of an International Environmental Court: Non-State Actors and International Environmental Dispute Resolution. Colo. Nat. Resources, Energy & Envtl. L. Rev. [Vol. 26:2.

[5] Donald K. Anton e Dinah L. Shelton, ENVIRONMENTAL PROTECTION AND HUMAN RIGHTS (2011, p. 944).

[6] Supremo Tribunal Federal, RE 548181/PR, j. 06.08.2013; Superior Tribunal de Justiça, RMS 39.173-BA, j, 06.08.2015 (Informativo 566).

[7] Veja-se M. Cherif Bassiouni, International Crimes: Jus Cogens and Obligatio Erga Omnes, 59 LAW & CONTEMP. PROBS. 63 (Winter 1996); Jutta Brunnée, “Common Interest” – Echoes from an Empty Shell? Some Thoughts on Common Interest and International Environmental Law, 49 Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht (ZaöRV) 791, 800–07 (1989); Alexander Orakhelashvili, YJIL Symposium – Observations on a Fiduciary Theory of Jus Cogens, OPINIO JURIS BLOG (Oct. 19, 2009; 1:01 PM), http://opiniojuris.org/2009/10/19/yjil-symposium-observations-on-a-fiduciary-theory-of-jus-cogens.  

Autores

  • Brave

    é doutora em Direito Internacional pela UFRGS, mestre em Direito Ambiental por Stanford, Rising Environmental Leaders Fellow por Stanford e especialista em Direito da Empresa pela FGV. É sócia do escritório Juchem Advocacia, membro do Conselho de Meio Ambiente da Fiergs e autora do livro Governança Ambiental Global e Direito.

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