Opinião

Alcance da imunidade religiosa necessita ser revista

Autor

  • Tadeu Puretz

    é mestrando em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) LL.M. em Direito Tributário pelo Ibmec-RJ e bacharel em Direito pela mesma instituição.

13 de outubro de 2016, 14h55

Buscamos neste trabalho analisar a extensão conferida à imunidade dos templos de qualquer culto, conhecida popularmente como imunidade religiosa, cotejando aspectos práticos com a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal através da apresentação de críticas construtivas sobre a matéria e apontando, ao fim, nossas considerações acerca do tema.

As imunidades tributárias tem sido objeto de grande discussão doutrinária e jurisprudencial nos tempos atuais, principalmente pelas inúmeras facetas que permeiam o assunto e influenciam diretamente a aplicação do direito.  

Interessante observar que o passar dos anos não foi suficiente para tornar as discussões mais amenas: a importância do tema e a sua atualidade resta evidente quando se constata que boa parte das imunidades tributárias estão em vigor há décadas e continuam sendo alvo de frequentes debates na comunidade jurídica. Nem mesmo a nova ordem constitucional introduzida com o advento da Constituição de 1988 foi capaz de diminuir as controvérsias que permeiam o assunto.

A imunidade pode ser encarada como limitação constitucional à própria competência tributária[1], devendo a análise desta se dar através da leitura conjunta de diversos dispositivos elencados na Constituição Federal, harmonizados através da observância do princípio da legalidade.

Como instituto, tem as imunidades a função de preservar os direitos fundamentais dos contribuintes, assegurando sua liberdade[2]. Para tal, concede proteção a determinadas pessoas ou circunstâncias, através uma espécie de liberdade financeira que torna a atividade menos onerosa, possibilitando sua manutenção e preservando seu alcance.

Nessa toada, são as imunidades exceções à regra de que gastos genéricos da coletividade devem ser financiados por todos os membros que dela fazem parte. Tal afirmação reforça o entendimento de que a aplicação dessas deve se dar com cautela, evitando que a referida proteção se estenda a pessoas diferentes daquelas que o legislador constitucional quis proteger.

Se as imunidades consistem, conforme mencionamos, em exceção à regra geral, devem os fundamentos para sua aplicação estar evidentes no texto constitucional, sob pena de afronta ao princípio da legalidade e da isonomia tributária. A aplicação das imunidades, que conferem efetividade aos direitos e garantias fundamentais reconhecidos e assegurados, não podem ofender os demais princípios basilares do direito, devendo observar os fundamentos e parâmetros claros para sua aplicação que justifiquem o tratamento desigual despendido ao beneficiado.

O STF teve oportunidade de se manifestar sobre o tema, quando entendeu pelo critério de interpretação ampliativo[3] das normas constitucionais relacionadas às imunidades, o que nos parece, neste caso, equivocado.

Importante alertar, preliminarmente, que o presente trabalho não advoga pelo fim da imunidade religiosa no Brasil, na medida em que esta se revela essencial para assegurar o livre exercício do credo garantido pela Constituição Federal. Nosso objetivo reflete tão somente a análise crítica do alcance da referida imunidade, em cotejo à jurisprudência do STF.

Segundo Schoueri, os valores que ensejam a concessão das imunidades estão relacionados às liberdades e garantias fundamentais asseguradas pela Constituição Federal somadas à falta de capacidade contributiva manifestada pelas pessoas contempladas pelo benefício da imunidade.[4]

Analisando o tema, frisa o autor que não basta que o aplicador se baseie na leitura do dispositivo que positiva a imunidade, devendo ser realizada uma leitura sistemática dos dispositivos espalhados pelo texto constitucional para que se possa extrair o verdadeiro objetivo do legislador ao inserir a imunidade tributária no ordenamento jurídico.

As imunidades dos templos de qualquer culto estão consubstanciadas no artigo 150, VI, “b” da Constituição Federal[5], asseverando o §4º do mesmo dispositivo que tal vedação compreende somente o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais da entidade religiosa.[6]

Em linhas gerais, a imunidade em tela visa garantir a eficácia da norma fundamental da liberdade de crença e do livre exercício de cultos religiosos consubstanciado no artigo 5º, VI da Carta Magna[7].

A propósito, o dispositivo acima apontado define que as imunidades alcançam as “atividades essenciais” da instituição religiosa, sendo este o limite legal para sua aplicação. A título de exemplo, podemos citar como finalidades essenciais dos das instituições a prática do culto, a formação de sacerdotes, ministros e a assistência espiritual dos crentes.

Assim, quando se verifica que as atividades da instituição religiosa ultrapassam os limites apontados pela Constituição Federal, a imunidade deve cessar imediatamente.

Conforme ressaltamos no início deste trabalho, as imunidades consistem em exceção à regra do custeamento das atividades estatais por todos que dela participam, sendo correto afirmar que os valores que deixam de ser recolhidos em decorrência dela são redistribuídos entre os demais contribuintes que, de certa forma, custearão os benefícios concedidos àquelas pessoas escolhidas pelo legislador originário. Tal movimento reforça nossos argumentos no sentido de que esta deve se dar estritamente dentro dos limites do texto constitucional.

Passamos a refletir sobre a extensão da interpretação da suprema corte, especificamente no que se refere às residências oficiais das autoridades religiosas.

Note-se que o entendimento dos ministros tem sido pelo enquadramento das referidas residências no escopo da imunidade tributária, muitas vezes afastando a cobrança de tributos de imóveis extremamente valorizados por serem estes utilizados por líderes religiosos, ainda que destinados a somente a moradia.

Com a afirmação acima, cumpre voltar ao ponto inicial apresentado por Schoueri acerca dos fundamentos que norteiam a concessão das imunidades, especificamente a capacidade contributiva. Segundo o autor, a falta de capacidade contributiva das instituições elencadas no texto constitucional seria o principal motivo pelo qual sobre eles não recairiam tributos.

Algumas indagações devem feitas neste ponto do trabalho. São elas: nos casos onde as instituições religiosas apresentem elevada capacidade contributiva, com construção de templos luxuosos e apartamentos em endereços extremamente valorizados há o afastamento da imunidade religiosa? A demonstração de extrema riqueza apresentada por algumas instituições religiosas está encampada no dispositivo constitucional[8] que assegura a imunidade às atividades essenciais da instituição? Qual o critério utilizado pelos julgadores para definir o conceito de atividade essencial?

Ademais, como deve a autoridade fiscal intervir para se evitar excessos sem prejudicar a livre propagação das religiões — liberdade assegurada pela Constituição Federal — garantindo a continuidade e manutenção desta dentro do limite da razoabilidade?

Diante destas provocações, quer nos parecer que as residências destinadas à moradia de autoridades religiosas não estão diretamente relacionadas à propagação da fé (atividade essencial das instituições religiosas), motivo pelo qual não devem gozar da imunidade destinada aos templos religiosos.

Ressalte-se que também não se está querendo discutir a legalidade do patrimônio das instituições religiosas, mas sim o afastamento do pagamento de impostos referente a imóveis que, ao nosso ver, não se enquadram no conceito de “essencialidade” considerado pela Lei Maior critério intransponível para a concessão da imunidade.

Em recente decisão, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro apresentou algumas premissas que nos parecem acertadas sob o prisma da razoabilidade no que se refere às imunidades tributárias para residência de líderes religiosos.

A título ilustração, apresentamos abaixo um trecho do inteiro teor do referido julgado:

“Quanto à moradia de membros de organização religiosa (pastor, pároco etc.), há de ser entendida como uma extensão do templo, desde que a única atividade laborativa que exerçam seja o sacerdócio na entidade de que são integrantes, ou seja, devem exercer exclusivamente o sacerdócio, circunstância que não restou comprovada na espécie, como competia à parte autora, nos termos do art. 333, I, do CPC.”

(…)

De outro ângulo, o grau de sofisticação da residência e a qualidade dos equipamentos urbanos existentes na localidade em que está situada devem ser levados em consideração, adotando-se avaliação criteriosa, sob pena de desvirtuamento da finalidade da norma constitucional. In casu, cuida-se de prédio localizado em região nobre da cidade (bairro da Barra da Tijuca) com área edificada de 1.868m2 em um terreno de 1.558,80m2, que, à toda evidência, não se enquadra no conceito de extensão do templo.”[9]

O caso acima foi objeto de recurso ao Supremo Tribunal Federal sob o argumento de que “o grau de sofisticação do imóvel são questões que não guardam pertinência com a questão constitucional.”

Em nossa visão, este argumento não merece prosperar. De fato, valor e o grau de sofisticação dos imóveis particulares não merece ser objeto de análise do poder público, desde que não se esteja tratando de sujeitos beneficiários de imunidade tributária, ou seja, desde que haja o recolhimento regular dos impostos referentes àqueles bens.

Sacha Calmon tem entendimento[10] ainda mais restrito, afirmando que a imunidade religiosa deve ser aplicada somente ao templo, leia-se, somente ao local destinado ao culto, não se estendendo a casa dos líderes religiosos.

Destaca, nesse sentido, que o escopo da imunidade se refere ao templo em si e não ao “babalorixá, o padre, o rabino, o ministro protestante…” uma vez que pelo cargo que exerce, o líder religioso não deixa de ser cidadão, “com direitos e deveres comuns à cidadania”. A título de exemplo, aduz:

“Não seria o caso, por exemplo, de o Município de Diamantina, em Minas Gerais, reconhecer a imunidade às fazendas e casas do Bispo D. Sigaus, homem sabidamente rico. Imune é o templo, não a ordem religiosa” [11]

Merecem destaque também as decisões que tem por objeto a comprovação de que os imóveis residenciais imunes são essenciais para as atividades essenciais da instituição religiosa. Alguns acórdãos recentes do STF vêm entendendo que não há possibilidade de se analisar provas em sede de Recurso Extraordinário, motivo pelo qual vem mantendo decisões desfavoráveis[12] às instituições religiosas.

O Supremo tem jurisprudência consolidada no sentido de que a imunidade tributária concedida aos templos não abrange apenas os prédios destinados ao culto, mas também o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais das instituições religiosas, conforme podemos depreender, dentre outros, da leitura dos RE’s 325.822, Rel. para acórdão ministro Gilmar Mendes, Plenário, DJ de 18.12.2002, e RE 694.453- AgR, Rel. ministro Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe de 12/8/2013.

Recentemente, decidiu a suprema corte que o imóvel destinado a moradia e a escritório de ministro religioso não afasta a imunidade tributária dos templos:

Ementa: DIREITO TRIBUTÁRIO. IPTU. IMUNIDADE. INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS.IMÓVEIS. TEMPLO E RESIDÊNCIA DE MEMBROS. CONSTITUCIONALIDADE. PRECEDENTES. 1. O fato de os imóveis estarem sendo utilizados como escritório e residência de membros da entidade não afasta a imunidade prevista no art. 150, VI, c, § 4º da Constituição Federal. 2. Agravo regimental a que se nega provimento.[13]

(***)

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE. ENTIDADE RELIGIOSA. IPTU. IMÓVEL DESTINADO À MORADIA DE MINISTRO RELIGIOSO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.[14]

As imunidades concedidas às entidades religiosas sem a observância de rigorosos critérios especificados pela CF nos levam a um efeito econômico perverso e elitista, que afronta, dentre outros princípios, o da isonomia tributária: Instituições religiosas abastadas, que são proprietárias de imóveis, são agraciadas pelas imunidades de forma irrestrita, ao passo que as instituições com menor poder aquisitivo, muitas vezes locatárias de imóveis e terrenos recolhem tributos integralmente, sem qualquer benefício por parte do governo.

Tal situação se consolida na medida em que são objeto de imunidade tributária apenas os imóveis de propriedade das instituições, não sendo estendidas aos imóveis de terceiros por ela locados. Nos parece evidente que o objetivo central do legislador de promover todas as instituições religiosas de forma igualitária, garantindo a manutenção e continuidade destas não está sendo observado pela corte constitucional quando, ao contrário, privilegia instituições com maior poder aquisitivo em detrimento das demais, concedendo “benefícios de forma desigual.  

Diante destas anotações, entendemos ser o tema passível de necessária revisão do Supremo, no sentido de que se estabeleça parâmetros e critérios objetivos para a concessão das imunidades tributárias, principalmente no que se refere às residências oficiais de autoridades religiosas, com objetivo de se adequarem a realidade do país e com a mens legis do constituinte.


[1] SCHOUERI. Luis Eduardo. Direito Tributário 2ª Ed. – São Paulo: Saraiva, 2012. p. 387

[2] PINTO. Felipe Kertesz Renault. Imunidade Tributária das instituições de educação. 1a Ed. – Rio de Janeiro: Editora Ágora 21. p.81

[3] Nesse sentido, confira-se o RE STF nº 627.815. Rel. Min. Rosa Weber – PLENO. Maio/2013

[4] SCHOUERI. Luis Eduardo. Curso de Direito Tributário. 2ª Ed. –São Paulo: Saraiva, 2012. p.389

[5] CF/88 “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) VI – instituir impostos sobre: (…) b) templos de qualquer culto;”

[6] CF/88 “Art.150 “§ 4º As vedações expressas no inciso VI, alíneas "b" e "c", compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.”

[7] CF/88 “Art. 5º (…) VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;”.

[8] Nesse sentido, o §4º do art. 150 da CRFB/88

[9] Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. – TJRJ – APL 03990414420098190001. 12ª Câmara Cível. Des. Cesar Felipe Cury. Pub. 05.03.2015

[10] No mesmo sentido, PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante.de. Comentários à CF 1946. 1ª Ed, p.510

[11] COELHO. Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro – 12ª Ed. rev. Atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2012. P.261

[12] Nesse sentido: ARE nº 685.246-AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, Dje de 22/8/14 e ARE nº 685.246-AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, Dje de 22/8/14

[13] Supremo Tribunal Federal. ARE 895972. Rel. Min. Roberto Barroso. Primeira Turma. Pub. 24.02.2016

[14] Supremo Tribunal Federal. ARE 805492. Rel. Min. Luiz Fux. Primeira Turma. Pub. 16.06.2016

Autores

  • Brave

    é advogado no Rio de Janeiro. L.L.M. Direito Tributário e Contabilidade Tributária pelo IBMEC-RJ. Membro da Associação Brasileira de Direito Tributário (ABDF).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!