Opinião

Nova lei visa combate ao tráfico de pessoas, exploração e escravidão

Autor

  • Vitor Monacelli Fachinetti Junior

    é advogado criminalista professor de Processo Penal doutorando e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e sócio-fundador do escritório Monacelli Fachinetti Advogados.

12 de outubro de 2016, 6h27

No intuito de adequar a legislação a diversos instrumentos legais no mundo, que visam combater a prática do tráfico humano, escravidão, exploração, entre outros, foi necessária uma reforma pontual em algumas normas processuais e penais, surgindo a Lei 11.343/2016.

A lei se amolda a Convenção de Palermo, acrescida por três protocolos adicionais, sendo um deles o Protocolo para “prevenir, suprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças”, tornando-se o instrumento internacional de maior relevância sobre o tema, onde se define como tráfico de pessoas:

O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso de força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra, para fins de exploração.[1]

O Protocolo define em seu artigo 2º, os seus três objetivos básicos:  1) prevenir e combater o tráfico de pessoas, prestando atenção especial às mulheres e crianças, sabidamente as mais vulneráveis a esse tipo de crime; 2) proteger e ajudar as vítimas, respeitando plenamente os seus direitos humanos; 3) promover a cooperação entre os Estados-partes.

Delimita ainda o âmbito de aplicação de suas disposições à prevenção, investigação e repressão das infrações quando estas forem de natureza transnacional e envolverem participação de grupo criminoso organizado, em consonância com o artigo 3º, parágrafo 1º da Convenção de Palermo.

 A definição trazida pelo Protocolo não se restringe à exploração sexual, alargando a  definição com outras modalidades  como a remoção de órgãos, servidão, escravidão, trabalhos forçados, entre outras.

Tráfico de pessoas no Brasil
Inicialmente recordamos o texto legal vigente (antes da edição da Lei 11.344, de 6 de outubro de 2016), no Código Penal:

Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro.

Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la.

§ 2º A pena é aumentada da metade se:

I – a vítima é menor de 18 (dezoito) anos;

II – a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato;

III – se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou

IV – há emprego de violência, grave ameaça ou fraude.

§ 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.

Legislação atual
A Lei 11.344, de 6 de outubro de 2016, com vacatio legis de 45 dias, revoga os artigos 231 e 231-a, aplicando-se ao tipo penal Tráfico de Pessoas

Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:

I – remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II – submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III – submetê-la a qualquer tipo de servidão;
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
IV – adoção ilegal;  ou
V– exploração sexual.

§ 1º A pena é aumentada de um terço até a metade se:
I – o crime for cometido por funcionário público no desempenho de suas funções ou a pretexto de exercê-las;
II – o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;
III – o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou
IV – a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.

§ 2º A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.

Já, em relação ao Livramento Condicional previsto no artigo 83 do estatuto penal repressivo, a lei equipara o tráfico de pessoas aos crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de drogas, exigindo dois terços de cumprimento da pena para o benefício, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza.

Prima facie salta aos olhos a incongruência do tratamento rigoroso para obtenção do livramento condicional, contrastando com a possibilidade de redução de até dois terços prevista no § 2º do artigo 149-A, para quem for primário e não integrar organização criminosa.  Ocorrendo tal redução, dificilmente o apenado vai precisar se valer efetivamente do livramento condicional, pois a pena aplicada ensejará o regime aberto, cumprida em casa de albergado. Na falta de tal estabelecimento, tem se possibilitado o cumprimento domiciliar.   

No âmbito da investigação, adentrando o discutido tema dos “poderes investigatórios do Ministério Público”,  a lei facilita o acesso a dados de telefonia e internet pela polícia e Ministério Público, para fins de investigação, franqueando a autoridade policial  ou ao membro do Ministério Público a requisição de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas dados e informações cadastrais da vítima ou de suspeitos de crimes como o tráfico de pessoas, extorsão mediante sequestro e envio de criança ao exterior para adoção sem o trâmite legal

Art. 13-A.  Nos crimes previstos nos arts. 148, 149 e 149-A, no § 3º do art. 158 e no art. 159 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e no art. 239 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia poderá requisitar, de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, dados e informações cadastrais da vítima ou de suspeitos.

Já com relação ao sigilo telefônico e telemático, protegidos pela Constituição Federal, a Lei procurou ter maior cautela, exigindo a necessária autorização judicial

 Art. 13-B.  Se necessário à prevenção e à repressão dos crimes relacionados ao tráfico de pessoas, o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia poderão requisitar, mediante autorização judicial, às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso.

No entanto, o parágrafo 4º inserido durante a votação em Plenário, especifica que

não havendo manifestação judicial no prazo de 12 (doze) horas, a autoridade competente requisitará às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso, com imediata comunicação ao juiz.

Este dispositivo, permite, passadas algumas horas do requerimento ao juiz e sua não apreciação, a mitigação de uma garantia prevista no artigo 5º da Lei maior, sendo portanto, de duvidosa constitucionalidade.

Com relação aos dados de conexão de acesso e de provedores de conteúdo, o acesso é idêntico ao disciplinado na lei do marco civil da internet previstos na Lei  12.965/2014.

Na parte processual o artigo 7º que permite ao juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação do delegado de polícia, ouvido o Ministério Público, havendo indícios suficientes de infração penal, a decretação das medidas assecuratórias relacionadas a bens, direitos ou valores pertencentes ao investigado ou acusado, ou existentes em nome de interpostas pessoas, que sejam instrumento, produto ou proveito do crime de tráfico de pessoas, procedendo-se na forma dos artigos 125 a 144 do Código de Processo Penal. 

A lei contempla prescrições relativas à proteção das vítimas, trazendo entre seus princípios a atenção integral às vítimas diretas e indiretas, independentemente de nacionalidade e de colaboração em investigações ou processos judiciais.

A proteção e o atendimento à vítima direta ou indireta do tráfico de pessoas compreendem:

I – assistência jurídica, social e de saúde;
II – acolhimento e abrigo provisório;
III – atenção às suas necessidades específicas, especialmente em relação a questões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, raça, religião, faixa etária, situação migratória, atuação profissional ou outro status;
IV – preservação da intimidade e da identidade; e
V – prevenção à revitimização no atendimento e nos procedimentos investigatórios e judiciais.

§ 1º A atenção às vítimas se dará com a interrupção da situação de exploração ou violência, a sua reinserção social, a garantia de facilitação do acesso à educação, à cultura, à formação profissional e ao trabalho e, no caso de crianças e adolescentes, a busca de sua reinserção familiar e comunitária.

§ 2º No exterior, a assistência imediata a vítimas brasileiras estará a cargo da rede consular brasileira e será prestada independentemente de sua situação migratória, ocupação ou outro status.

A previsão amplia as medidas de proteção, atendimento e auxílio aos ofendidos em geral, previstos nos parágrafos 5º e 6º do artigo 201 do Código de Processo Penal (Decreto-lei 3.931, de 11 de dezembro de 1941), com a possibilidade do juiz encaminhar o ofendido, em qualquer crime, para atendimento multidisciplinar, dentre outras.


REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

BRASIL. Decreto-lei nº 3.931, de 11 de dezembro de 1941

CASTILHO, Ela Wiecko V. de. A Legislação Penal Brasileira Sobre Tráfico de Pessoas e Imigração Ilegal Frente aos Protocolos Adicionais à Convenção de Palermo. Texto apresentado no I Seminário Luso Brasileiro sobre tráfico de pessoas e imigração ilegal. Cascais, 2006, p.5.

CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal: Parte especial. Coleção ciências criminais, v. 3, coord.: Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches da Cunha, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2 ed., 2009, p. 255.

LEAL, Maria Lúcia Pinto. A exploração sexual de meninos, meninas e adolescentes na América Latina e Caribe (Relatório Final – Brasil). Brasília: CECRIA, IIN, Ministério de Justiça, UNICEF, CESE, 1999.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal: parte especial. 22.ed. São Paulo: Atlas, 2008.

MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (coordenação). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo: Quartier Latin, 200

NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009.

NUNES, Rizzatto. Curso de direito do Consumidor. São Paulo: ed. Saraiva. 2005.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Tráfico de Pessoas para fins de exploração sexual. Brasília: OIT, 2006. Disponível em: http://www.onu.org.br/onu-no-brasil/oit/. Acesso em: 10 de Nov de 2015.

QUEIJO, Maria Elizabeth; RASSI, João Daniel. Tráfico Internacional de Pessoas e o Tribunal Penal Internacional. In: JÚNIOR, Laerte I. Marzagão (coord.). Tráfico de Pessoas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.

United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes- ações. Disponível em: <https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/trafico-de-pessoas/acoes.html> acesso em 20/07/2016.


[1] Artigo 3º, parágrafo A do Protocolo para prevenir, suprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças, complementar à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transacional. Nova Iorque, 2000

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