Garantia constitucional

Quebra de sigilo de jornalista da Época põe em xeque liberdade de imprensa

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9 de outubro de 2016, 13h41

O jornalista Murilo Ramos, da revista Época, teve seu sigilo telefônico quebrado em decisão da juíza Pollyanna Kelly Alves, da 12ª Vara Federal de Brasília. A medida foi adotada para apurar quem passou à revista um relatório preliminar de pessoas suspeitas de manter dinheiro irregularmente no exterior.

De acordo com a revista, o jornalista não é suspeito de nenhum crime e o objetivo da medida, decidida a 17 de agosto último é descobrir a identidade de uma das fontes do jornalista. O sigilo é uma garantia da Constituição, que prevê em seu artigo 5º, inciso XIV: “É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”

Ainda de acordo com a revista, a Associação Nacional de Editores de Revista (Aner) impetrou Habeas Corpus em favor do jornalista na última sexta-feira (7/10), quando tomou conhecimento da medida. A defesa pede a suspensão imediata da decisão da juíza. O HC foi distribuído ao desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. A decisão da juíza atendeu pedido do delegado da Polícia Federal João Quirino Florio. A procuradora da República no DF Sara Moreira de Souza Leite manifestou-se favoravelmente à medida.

“A medida pleiteada (a quebra do sigilo) mostra-se imprescindível para apurar os fatos noticiados”, disse a juíza, segundo reportagem da Época. “Registro que a proteção constitucional ao resguardo das comunicações não se mostra absoluta diante do interesse público em esclarecer o suposto delito”. Ainda de acordo com a revista, a juíza determinou às operadoras que enviassem os extratos do colunista diretamente ao delegado.

No Habeas Corpus impetrado na sexta no TRF-1, a Aner pede a suspensão dos efeitos da decisão que determinou a quebra do sigilo, o sobrestamento da tramitação do inquérito em curso e a suspensão da quebra do sigilo telefônico. No caso de a operadora telefônica já ter fornecido as informações do sigilo telefônico à autoridade policial, a defesa solicita que elas venham a ser “absolutamente destruídas” até o julgamento final do HC.

Os advogados sustentam que a quebra do sigilo telefônico, que é uma medida cautelar extrema, traz para o jornalista “uma condição inequívoca de investigado, fato que traduz uma absoluta falta de justa causa, pois fere o sagrado direito constitucional inerente ao jornalista, que é a liberdade de expressão e o direito de informar”.

Em nota conjunta divulgada neste sábado, dia 8 de outubro, a Aner, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) criticaram a decisão da juíza. “A quebra do sigilo telefônico de um jornalista implica em gravíssima violação ao direito constitucional do sigilo da fonte e ao livre exercício da profissão de jornalista”, dizem as entidades no documento. “A Abert, a Aner e a ANJ repudiam a decisão da juíza e reforçam que não há jornalismo e nem liberdade de imprensa sem sigilo da fonte, pressuposto para o pleno exercício do direito à informação.”

Divulgação de relatório

Em abril de 2015, o delegado foi encarregado de investigar o vazamento de um relatório do Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf). Segundo reportagem da Época, o documento tinha uma lista de brasileiros suspeitos de manter contas secretas na filial suíça do HSBC, no escândalo conhecido como Swissleaks.

A investigação do Coaf e o teor do relatório foram divulgados pela Época em fevereiro de 2015, em reportagem que contou com a participação de Murilo Ramos.

Em 20 de abril deste ano, depois que a Receita, Coaf e Banco Central não haviam conseguido descobrir a origem do vazamento, o delegado João Quirino pediu à juíza que quebrasse o sigilo do jornalista.

“A única maneira de chegar ao autor do crime, que é grave, pois poderia comprometer todo um sistema de segurança de informações vitais para o funcionamento de toda uma economia, seria o cruzamento de chamadas de Murilo nos dias que antecederam a entrevista que (sic) cruzá-lo com os telefones das pessoas que poderiam ter acesso aos dados”, escreveu o delegado à juíza Pollyanna Kelly, em despacho divulgado agora pela revista.

Ao ser ouvido em julho, o colunista recusou-se a revelar a identidade das fontes envolvidas na apuração — invocou o direito constitucional ao sigilo da fonte. “Tal proteção ao trabalho do jornalista está consolidada em leis e nas doutrinas legais pela simples razão de que, sem ela, a sociedade teria muito mais dificuldade para ter acesso a informações de interesse público. Entende-se, inclusive nos principais tratados assinados pelo Brasil, como o Pacto de San José da Costa Rica, que qualquer obstáculo à liberdade de imprensa configura-se um obstáculo ao próprio exercício da democracia”, diz a revista, que ainda cita que o Supremo Tribunal Federal tem posição pacífica sobre o assunto.

Jornalistas em risco
O caso se soma a uma lista de ações que criam embaraço ao exercício do jornalismo. No início do ano, três repórteres, um infografista e um webdesigner da Gazeta do Povo, do Paraná, sofreram 41 processos em 19 do estado por juízes e promotores que se sentiram ofendidos com a divulgação de reportagens que mostravam o pagamento de remuneração acima do teto do funcionalismo.

Em ação coordenada, todos os pedidos foram idênticos, pedindo direito de resposta e indenizações por danos morais, que somam R$ 1,3 milhão. De acordo com a Gazeta, os pedidos são sempre no teto do limite do juizado especial, de 40 salários mínimos. Como corre no juizado, a presença dos jornalistas em cada uma das audiências se torna obrigatória. As ações foram suspensas no Supremo pela ministra Rosa Weber — o mérito da ação ainda não foi julgado.

O Diário da Região, de São José de Rio Preto, e seu jornalista Allan de Abreu também tiveram seus sigilos telefônicos quebrados por ordem da 4ª Vara Federal da cidade. O objetivo era descobrir quem informou à imprensa detalhes de uma operação da Polícia Federal deflagrada em 2011. A decisão foi suspensa liminarmente pelo ministro Ricardo Lewandowski. A liminar foi cassada por Dias Toffoli e um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes suspendeu o julgamento da ação ajuizada pela Associação Nacional dos Jornais.

Em sua coluna na Folha de S.Paulo neste domingo, a ombudsman Paula Cesarino Costa trata das relações trepidantes entre imprensa e o Poder Judiciário. Ela parte da crítica que o desembargador Ivan Sartori, do Tribunal de Justiça de São Paulo, fez à cobertura sobre o caso Carandiru. Ele presidiu a sessão da 4ª Câmara Criminal que anulou a condenação de 74 policiais pela participação na morte de 111 presos.

"Diante da cobertura tendenciosa da imprensa sobre o caso Carandiru, fico me perguntando se não há dinheiro do crime organizado financiando parte dela, assim como boa parte das autodenominadas organizações de direitos humanos", questionou o desembargador em sua rede social.

Para a jornalista, “conflitos do Judiciário com a imprensa parecem estar em evidência de modo difuso”. Ela cita uma crítica feita pelo corregedor nacional de Justiça e ministro do STJ, João Otávio Noronha, a respeito da “condenação prévia” feita pela imprensa com os envolvidos nos casos do mensalão e da “lava jato”.

“A crítica rigorosa da mídia é fundamental, necessária e saudável. Jornais e revistas já condenaram pessoas em suas capas, dando-se um poder de Justiça que não têm. É direito de qualquer cidadão questionar aquilo que é publicado. Questões referentes à liberdade de imprensa, à reação de quem se sente atingido por coberturas noticiosas e à responsabilidade de jornais e jornalistas têm uma lição histórica a ser examinada”, escreve a ombudsman.

Ela cita um caso em que o New York Times foi condenado em primeira instância a pagar US$ 500 mil em indenização pela divulgação, em 1964, de um manifesto contra a violência policial. O chefe da polícia local sentiu-se ofendido com texto, que continha detalhes exagerados ou informações erradas. A decisão acabou sendo revertida em favor do jornal na Suprema Corte.

“Na avaliação da Suprema Corte, o debate livre e aberto sobre a conduta de funcionários públicos é mais importante que ocasionais erros factuais honestos que possam causar danos eventuais à reputação de servidores. No caso do Brasil, resta saber quantos juízes estão dispostos a estimular e quantos pretendem restringir o debate robusto e aberto das questões públicas, em especial quando têm de enfrentar questões corporativas”, questiona Paula Cesarino Costa.

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