Advogados sem Fronteiras

Mudança de status quo passa por mais acesso à informação, avalia advogada

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8 de outubro de 2016, 9h44

Um advogado acessa arquivos salvos em nuvem de um café em um aeroporto dos Estados Unidos enquanto aguarda seu voo. Ele vai para a América Central, mas mal sabe que as informações acessadas já foram rastreadas pelo governo do país para onde ele vai e que há agentes estatais esperando no desembarque. A chegada, aparentemente tranquila, é interrompida por que o levam para interrogatório.

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“Mudança do status quo passa pelo aumento do acesso à informação, por isso, eles fazem de tudo para evitar que isso ocorra”, disse Christina Storm.
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Tempos depois, nem o próprio advogado sabe precisar, ele é solto, apenas com a roupa do corpo e enviado de volta aos EUA. Essa história é real e foi contada pela criadora do Advogados sem Fronteiras, Christina Storm, para exemplificar o que a segurança digital significa para ela, seu projeto e todos os profissionais que atuam pela organização sem fins lucrativos.

Segundo ela, toda a operação dos Advogados sem Fronteiras depende da segurança das informações salvas nos sistemas da entidade. “No setor privado, invasões de sistema resultam em perdas financeiras, algumas muito altas, mas no meu setor, esse mesmo problema pode resultar em mortes”, disse Christina em evento promovido pela empresa de segurança digital Intralinks, em São Paulo, no último mês de setembro.

Sistema Kira
Christina Storm contou que muitos crimes ocorrem sob os olhos das autoridades sem que elas percebam, por causa de camadas de burocracia. “Encontramos uma decisão sobre um indiano que trabalhava em uma mina de um país africano, fugiu do trabalho e teve seu passaporte retido pelo empregador. Mas, ao lermos nas entrelinhas, podemos dizer que é um caso de tráfico humano”, exemplificou.

A advogada explicou que condutas criminosas “escondidas” como essa são comuns e que rastreá-las é difícil, pois é preciso analisar muitas decisões judiciais. Para ajudar o Advogados sem Fronteiras a fazer essa análise, a entidade firmou uma parceria com os desenvolvedores do sistema Kira, que é normalmente usado por advogados do setor privado para verificar contratos e localizar tópicos que não se enquadram no acordo pretendido.

O sistema funciona usando termos-chave, ou seja, o advogado sublinha o trecho do texto que ele quer verificar no contrato e o sistema faz a busca e analisa se houve alguma mudança entre a referência usada e a que consta no arquivo verificado.

Christina Storm disse que o uso do sistema acelerará a análise de peças e aumentará a escala de trabalho feito. “Nosso maior problema hoje é estabelecer parâmetros, ensinar a inteligência artificial, para que o programa leia decisões e identifique fatos que indicam que tráfico humano está envolvido.”

Ela contou que, na época em que o caso do trabalhador indiano e alguns outros foram descobertos, a ação foi levada ao presidente do tribunal do país, que praticamente não acreditava que isso ocorria lá. “Depois que conseguirmos ensinar e dominar o uso da inteligência artificial para fazer estas análises, seremos capazes de ajudar melhor nossos colegas a reconhecer o tráfico humano e levar criminosos à Justiça.”

Medo da informação
A advogada destacou que, atualmente, o exercício das liberdades é temido por órgãos estatais ou não, e que as pessoas que o promovem são intimidadas por aquelas que são contrárias a isso. “Em alguns países, o perigo vem do próprio governo, que quer restringir o acesso a certas informações. Em outros o perigo vem de terroristas ou da corrupção.”

Para Christina, o perigo oferecido por entes estatais repressores e terroristas é basicamente o mesmo, pois ambos usam técnicas similares para intimidar e torturar. “Os que são contra aos direitos básicos da humanidade se sentem ameaçados por pessoas que podem oferecer informações que levará ao acesso à Justiça”.

Esse receio sobre o acesso à informação, continuou Christina, colide frontalmente com os interesses dos Advogados sem Fronteiras, pois a transparência é foco da organização. “Para eles, a mudança do status quo passa pelo aumento do acesso à informação, por isso, eles fazem de tudo para evitar que isso ocorra.”

De acordo com a criadora da entidade, apesar do receio relacionado à organização, muitos países permitem a entrada do Advogados sem Fronteiras, o que muda é o nível de acesso à informação que eles conseguem em cada um deles. “Acho que vários países gostariam de fazer um intercâmbio profissional conosco, mas quando falamos em liberdades, transparência do sistema judicial ou falta de aplicação correta das leis locais, isso faz com que não sejamos tão bem-vindos assim”.

O fato de ser persona non grata em alguns lugares do mundo, segundo a advogada, não tem relação alguma com o modelo de governo de cada nação. “Nem todos os países que temos boas relações são democráticos. Pessoalmente, penso que a democracia não é o único modelo de governo que funcione. Reconheço que há outras formas funcionais e que toleram princípios democráticos.”

Descrédito social
Christina afirmou que sua experiência, mais focada na África, mostra que as reformas de entes estatais não pode ser, apenas, motivada pela pressão pública, pois a sociedade será a última a perceber as diferenças. Em alguns países, continuou, as reformas são tão profunda que todos os juízes são destituídos para que novos sejam escolhidos. Christina cita como exemplo um país africano que reformulou totalmente seu sistema Judiciário e passou a publicar as decisões de todos os julgamentos, mesmo assim a população ainda é receosa com as autoridades.

“Nós vimos o trabalho duro de muitos juízes honestos fazendo todo o possível para que as coisas fossem feitas da maneira correta”, disse Christina, complementando que todos os governos, ao promoverem reformulações institucionais, precisam de bons relações públicas que consigam entregar a mensagem à população. “A percepção da sociedade e a falta de confiança está arraigada na cultura. Isso faz com que a atitude da população demore para mudar.”

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