Contas à Vista

O que vale mais: a Constituição ou o Anexo de Metas Fiscais da LRF?

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

29 de novembro de 2016, 7h00

Spacca
Dias atrás participei da II Jornada de Debates sobre Dívida Pública, promovida pelo Ministério Público Federal em Brasília e coordenada pelas competentes e atenciosas procuradoras da República Ela Wiecko e Samantha Dobrowolski. O nome do evento é autoexplicativo e vários aspectos sobre o tema foram abordados por profissionais de diversas áreas (economistas, contadores, auditores e profissionais do Direito). Falaram no evento, dentre vários outros, Mansueto de Almeida, Leonardo Albernaz, José Roberto Afonso, Heleno Torres, Selene Nunes, Maria Lucia Fattorelli, Diana Vaz de Lima, Antonio Carlos Dávila, Bruno Salama, Lucieni Pereira da Silva e Humberto Jacques. E também meus colegas desta coluna Élida Graziane e Júlio Marcelo, aos quais renovo minhas saudações. Tirando esse que vos escreve, todos fizeram exposições de altíssima qualificação, apresentando questões de relevo sobre o tema.

A parte que me coube nesse latifúndio financeiro foi tratar de dívida pública e direitos fundamentais, e iniciei minha exposição com a provocativa pergunta: "O que vale mais: a Constituição ou o Anexo de Metas Fiscais da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)?".

Nem precisa ser estudante de Direito para responder que a Constituição vale mais que um anexo de uma lei. Trata-se de uma daquelas perguntas que não geram oposição, tais como: "Quem é a favor da corrupção?". Seguramente, ninguém será a favor da corrupção, como ninguém entende ser o anexo superior à Constituição.

Porém, qual texto normativo é que, na prática, predomina: a Constituição ou o referido Anexo de Metas Fiscais?

Vou tentar explicar melhor o debate.

O Anexo de Metas Fiscais surge no artigo 4º da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que determina que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) veicule anualmente a projeção de resultados nominal e primário e montante da dívida pública, para o exercício a que se referirem e para os dois seguintes.

Parece algo inocente e lateral, não? Algo como um daqueles anexos sem nenhuma importância que se junta em uma petição inicial, pensando: se o juiz ler a petição e quiser mesmo saber do assunto, a informação já vai estar lá, porém, pode-se prescindir da mesma. Na dúvida, anexa-se o documento.

Pois não é nada disso. Resultado primário quer dizer quanto o governo economizará para pagamento do serviço da dívida pública: principal, juros e encargos. Resultado nominal quer dizer quanto vai sobrar após o pagamento dos juros. Portanto, a meta é o resultado primário a ser alcançado, sendo o resultado nominal apenas o saldo. E o Anexo de Metas Fiscais apenas expõe o resultado primário, ou seja, o número a ser alcançado para o pagamento do serviço da dívida pública — claro que com alguma matemática financeira pelo meio.

Se está entendido isso até aqui, vamos ao próximo passo.

O artigo 9º da LRF estabelece que, se for verificado, ao final de cada dois meses, que a arrecadação não ocorreu como previsto, e poderá comprometer “o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais”, haverá “limitação de empenho e movimentação financeira”.

O que significa “limitação de empenho e movimentação financeira”? Trata-se do contingenciamento, isto é, a não liberação das verbas que já estiverem contratadas e empenhadas, impedindo que sejam realizados os pagamentos.

Aqui surge o primeiro problema jurídico, pois, se a verba foi empenhada, isto é, “reservada” para pagamento daquela compra de bens ou serviços (artigo 58 e 59, Lei 4.320/64), e a despesa já foi liquidada, isto é, foi “atestada” sua realização, surge para o credor o “direito adquirido” a receber os valores contratados (artigo 63, Lei 4.320/64). Vejam bem que o texto desse artigo fala em “direito adquirido”. Desde logo se afirma que é um ato de força fazer contingenciamento nessa situação, e isso só majora o custo Brasil. Como as empresas prejudicadas devem agir, o que até mesmo afasta a subsunção ao sistema de precatórios, expus em meu livro Crônicas de Direito Financeiro – Tributação, Guerra Fiscal e Políticas Públicas, lançado pela Editora ConJur e que pode ser comprado aqui.

Um segundo problema jurídico que se identifica diz respeito à condicionante estabelecida na norma (artigo 9º, caput, LRF). Transcrevo o texto: “Se verificado, que ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais”. Só poderá ocorrer contingenciamento se a previsão da receita for insuficiente para pagar o serviço da dívida — o que está ocorrendo, em face da crise, mas não era o que se via há poucos anos atrás. Logo, para efeitos jurídicos, essa condicionante é igualmente importante.

Outro problema identifica-se no parágrafo 2º do artigo 9º, da LRF, pois indica algumas despesas que não poderão ser contingenciadas, tais como (a) as obrigações constitucionais e legais do ente público, inclusive (b) aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e as (c) ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias.

Pergunta-se: obrigações constitucionais e legais poderiam ser contingenciadas? Claro que não, por dois motivos: as constitucionais, por serem de escalão superior, e grande parte das legais por se caracterizarem como obrigações necessárias para a manutenção da máquina estatal, tais como as que se referem a pagamento de pessoal.

As ressalvadas pela LDO também não poderiam ser contingenciadas, justamente por serem ressalvadas por lei posterior e anual — óbvio.

As únicas despesas que efetivamente são afastadas pelo artigo 9º, parágrafo 2º, da LRF e que não podem ser contingenciadas de nenhuma forma, são aquelas que se referem ao pagamento do serviço da dívida.

Portanto, e apenas para exemplificar, imaginemos o seguinte quadro. O programa Bolsa Família, ou o programa Minha Casa, Minha Vida, não se enquadram nem como obrigação constitucional, nem como obrigação legal da União — embora sejam programas que buscam concretizar o artigo 3º da Constituição, onde se inscrevem os objetivos fundamentais do Brasil. Supondo que esses programas não sejam inseridos no rol daqueles que venham a ser ressalvados pela LDO anual, poderiam ser contingenciados em prol do pagamento do serviço da dívida. Eis o ponto!

Goste-se ou não desses programas sociais, ou criem-se outros — não importa para a análise aqui efetuada — o fato é que programas sociais, dentre vários outros, poderão ser contingenciados para o pagamento do serviço da dívida pública. Programas sociais invariavelmente são utilizados para a redução das desigualdades sociais e afirmação dos direitos fundamentais. Logo, inserem-se na Constituição Econômica brasileira, que vem sendo aprisionada pela Constituição Financeira, que privilegia o pagamento da dívida em detrimento da redução das desigualdades sociais — isto é, do homem socialmente considerado.

Gilberto Bercovici e Luiz Fernando Massonetto apontam para esses efeitos em belo texto denominado A Constituição Dirigente Invertida: a blindagem da Constituição Financeira e a agonia da Constituição Econômica[1], o que foi recentemente relembrado por Lenio Streck, que criou mais um neologismo para apresentar a situação do Brasil, que passou de Belíndia para Norundi.

Observem que até mesmo a regra de ouro da dívida pública (artigo 167, III, CF), que estabelece que o governo só pode se endividar no limite das despesas de capital vem sendo relativizado, por dois motivos: (a) por estarmos em déficit primário (isto é, não arrecadamos nem para pagar a dívida) e (b) pelo fato de que a política de juros cumpre funções de instrumento de política monetária em busca da redução da inflação — o que nada tem a ver com a regra de ouro da dívida pública, que limita a dívida aos investimentos. Aqui estamos no âmbito do Estado endividado, de que nos fala Wolfgang Streeck, em texto que também se encontra em meu livro Crônicas de Direito Financeiro, acima indicado.

Aos amigos tributaristas, aponto que grande parte da majoração dos tributos é efetuada para pagamento da dívida, e não para uso social. É um paradoxo, mas verdadeiro. Estamos enxugando gelo no Brasil.

Aviso aos alarmistas de plantão: não estou propondo simplesmente deixar de pagar a dívida pública — não é isso. Mas é necessário reverter a escala de prioridades estabelecidas.

Estou convencido que seremos considerados um país “economicamente mais seguro” quando o nível de desigualdade social foi menor, e pudermos passear nas praças públicas sem medo; sermos atendidos pelo SUS com qualidade e pontualidade; e podermos confiar a educação fundamental e média de nossos filhos às escolas públicas, com a certeza de que terão futuro brilhante. Penso ser mais fácil retomar o grau de investimento com esse tipo de conduta, do que simplesmente abrindo os cofres e pagando o que se fizer necessário à custa da manutenção da fratura social que se vê atualmente.

Não se trata de uma proposta de calote, mas de revisão de prioridades.

Ai retorna-se à questão da PEC do Teto (número 241 na Câmara e 55 no Senado), pois ganha um livro de presente o primeiro que me escrever dizendo como nela é tratada a questão da dívida pública. Vou dar uma pista: a resposta está no slogan da 31ª Bienal de Artes de São Paulo, ocorrida em 2014[2].

A estratégia é a de compressão das despesas obrigatórias para pagamento da dívida. Ocorre que não sabemos qual limite de dívida queremos. Já comentei neste espaço que, mantido o esquema atual, de compressão dos gastos obrigatórios, que serão majorados pela inflação, teremos em coisa de uns sete ou oito anos uma receita livre muito grande, pois esta já é corrigida pela inflação, e, assim que a economia voltar a crescer, a receita será incrementada além da inflação. Logo, se tal diferença será usada para pagamento da dívida, qual limite de endividamento queremos? Nem toda dívida é ruim e não se desenvolve um país sem dívida. Logo, qual limite se busca?

O país está sendo levado para um caminho desconhecido, onde poucas variáveis se apresentam estáveis: as despesas obrigatórias serão comprimidas visando pagar a dívida. Mas qual limite entre dívida/PIB se busca? Ou será apenas uma limitação temporal: 20 anos, com um suspiro na metade do tempo? Obscuro.

Especificamente quanto à limitação dos gastos sociais, previstas na PEC do Teto no artigo 104 ADCT (quando ainda era a PEC 241, da Câmara), agora no artigo 105 (versão PEC 55, no Senado), entendo simplesmente inconstitucional, como já referi anteriormente (leia aqui e aqui). Repito: essa limitação é inconstitucional, mesmo que seja feita através de Emenda Constitucional, pois infringe o Orçamento Mínimo Social que foi criado pela Constituição de 1988 em sua versão original, e não pode ser reduzido, exceto se as causas que lhe deram ensejo vierem a cessar — o que não está nem remotamente perto de ocorrer. Para quem tiver interesse no texto, e não quiser comprar meu livro (já propagandeado acima), vou dar uma canja: segue o texto Orçamento mínimo social garante a execução de políticas públicas.

Em suma, e para responder à pergunta do título: formalmente, a Constituição permanece valendo mais, porém suas promessas civilizatórias foram estranguladas pelo Anexo de Metas Fiscais. Não deve ser assim, o homem deve estar no centro das atenções, ainda mais em sociedades com grandes fraturas sociais, como a brasileira. A fome e a doença não esperam.


[1] BERCOVICI, G.; MASSONETTO, L. F. A Constituição Dirigente Invertida: A Blindagem da Constituição Financeira e a Agonia da Constituição Econômica. Boletim de Ciências Econômicas, vol. XLIX. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006.
[2] http://www.bienal.org.br/post.php?i=494

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    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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