Opinião

Juristas de todo o Brasil, uni-vos contra a corrupção da Constituição!

Autor

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor — com bolsa financiada pela Capes/Proex — e mestre — com bolsa financiada pelo CNPq — em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

28 de novembro de 2016, 5h20

Num cenário de crise política e econômica, na qual uma parte considerável dos brasileiros vê o Judiciário como uma espécie de reserva moral da sociedade, ao ponto de muitos juízes deixarem de lado a discrição institucional que sua profissão exige para fazerem populismo judicial, os juristas deveriam, enfim, assumir sua parcela de responsabilidade pelos excessos judiciais perpetrados contra a Constituição. Os constantes ataques aos direitos e garantias fundamentais, com a justificativa de que em casos excepcionais o direito deve ser descartado pelos juízes — numa espécie de retorno ao conceito de soberania de Carl Schimitt, pelo qual soberano é quem decide sobre o estado de exceção —, não surgiu com a operação "lava jato". Esse estado de exceção sempre esteve presente no cotidiano das periferias das grandes cidades, contando com o apoio explícito ou com o silêncio da maior parte da comunidade jurídica. A diferença é que agora as arbitrariedades judiciais ficaram mais claras, com medidas abusivas do Judiciário atingindo políticos e empresários. Para que o Brasil chegasse ao estado em que se encontra, com juízes violadores da lei que justificam a corrupção da Constituição em nome do combate à corrupção, foi necessário muitos anos de falta de compromisso dos juristas com o direito.

Desde o início da modernidade os juristas participam de forma muito destacada na construção das instituições políticas, seja na edificação de uma autoridade comum, como é o caso do Estado, seja na construção de mecanismos jurídicos que limitam o exercício do poder desempenhado pelos agentes públicos, como acontece com o constitucionalismo. A partir do século XI, quando surgiram as primeiras Universidades europeias, os sacerdotes paulatinamente começaram a dar maior espaço para que atores seculares assumissem a tarefa de se debruçarem sobre os grandes temas jurídicos. É claro que, nesse momento transicional entre o medievo e a modernidade, a Igreja ofereceu diversas contribuições para a tradição jurídica ocidental. Processo, jurisdição, burocracia e uma autoridade comum são conceitos políticos e jurídicos que surgiram a partir da revolução gregoriana (1075), mas que, por meio de um processo histórico envolvido por movimentos de ruptura e continuidade, passaram por uma ressignificação fundamental para a construção das instituições modernas. Conforme as palavras do dramaturgo austríaco Hugo Von Hofmannsthal, “nada há de sacro que seja puramente espiritual” [1]. Nesse sentido, toda a reflexão que os sacerdotes haviam iniciado no campo jurídico para a sistematização do direito canônico e a construção de uma autoridade comum, dentro da Igreja Católica Apostólica Romana, mais tarde passou por um processo de antropofagia secularizadora responsável por colocar o jurista numa condição privilegiada de arquiteto das instituições modernas.

Até hoje tudo o que se discute no ocidente, em termos de poder e limitação do poder, passa pelas mãos dos juristas. Sua atuação foi extremamente importante durante a construção dos primeiros Estados absolutistas, já que este momento marcou o início de um longo processo de racionalização do poder, no sentido de afastar o componente familiar presente nas relações estamentais do medievo e apresentar uma autoridade organizada por meio de estatutos legais. Norbert Elias fala desse processo social como o momento em que surgiram as primeiras autoridades formadas por monopólios públicos de poder [2]. Anteriormente o poder dos monarcas medievais se confundia com dinastias familiares, como era o caso dos Capetos na França ou dos Plantagenetas na Inglaterra, que alcançavam uma maior liderança entre as demais famílias aristocráticas no momento da guerra, mas que logo depois, quando era chegado o momento do suserano pagar pelos serviços de seu vassalo, diminuíam seu próprio poder com a distribuição das terras. Dessa forma surgiram novos monopólios privados de poder em detrimento da liderança política do monarca. Enquanto a terra continuasse servindo como única fonte de renda, com uma estrutura social rígida, na qual a principal atividade política e econômica de sua elite era a guerra, as condições políticas para a construção do Estado estariam fechadas.

O surgimento do comércio e a monetarização da economia foram dois fatores que ajudaram a enfraquecer os monopólios privados dirigidos pelos senhores territoriais. Quem vivia somente da renda fixa, oferecida pelas terras, viu seus bens se desvalorizarem rapidamente, ao mesmo tempo em que os monarcas começaram a acumular moedas suficientes para o pagamento de um exército profissional. Estavam dadas as condições políticas e econômicas para que uma família aristocrática se sobrepusesse às demais por meio de um grande monopólio privado de poder, que mais tarde, por meio do surgimento dos estatutos legais, da burocracia e da especialização de suas diversas funções, acabou transformado num monopólio público de poder denominado como Estado absolutista. A partir desse momento os juristas ajudaram a construir uma estrutura pública de poder capaz de ir muito além da concepção familiar presente no medievo. É por isso que a teoria dos dois corpos do rei explica o início da modernidade na Inglaterra, ao demonstrar que a instituição política deveria colocar-se acima da pessoa física do monarca e apresentar a noção moderna de separação entre o público e o privado a partir da apropriação conceitual de elementos teológicos que caracterizavam o próprio corpo de Cristo [3].

A estrutura burocrática, construída pelos juristas durante o Estado absolutista, serviu para definir as bases do poder político moderno. Um poder que se diferencia e se especializa em diversas funções, como legislar, julgar e administrar, mas que, ao mesmo tempo, continua mantendo sua unidade institucional. Foi para ampliar o controle sobre todas essas formas de exercício do poder que os juristas ajudaram a construir o constitucionalismo, ao reunir em sua longa tradição diversas práticas e meios de limitação do poder e defesa das liberdades. Edward Coke na Inglaterra e os pais fundadores nos Estados Unidos eram juristas que sabiam da importância de um poder político limitado pelo direito. O que os juristas do Estado absolutista haviam apresentado em termos de organização do poder, com uma ampla burocracia para fazer o Leviatã funcionar como autoridade, os juristas do constitucionalismo moderno fizeram pela sua limitação. É por isso que o cientista político Francis Fukuyama define uma democracia moderna com base numa complexa combinação simultânea entre três fatores: a) um Estado bem organizado; b) a limitação do poder e a defesa das liberdades por meio de um Estado de Direito; c) e a ideia de um governo responsável [4].

No Brasil, poucos juristas percebem a importância dessa combinação para a construção de uma democracia. São pouquíssimos os juristas que clamam no deserto em nome do constitucionalismo. Lenio Streck é um exemplo. Já faz muito tempo que sua crítica hermenêutica do Direito vem denunciando os abusos perpetrados pelo Judiciário, sem que a comunidade jurídica tome providências a respeito. Afinal, quantos livros foram escritos em defesa do livre convencimento? Quantas doutrinas sustentaram que os juízes deveriam decidir discricionariamente? Quantos professores inventaram “princípios” em salas de aula para justificar suas posições? Quantas vezes a OAB veio a público denunciar o ativismo judicial? E os espetáculos propagados a partir da esfera criminal, quantos juristas ousaram denunciar? Um monstro foi alimentado e agora se recusa a voltar para o lago. Ele acredita em poderes sem limites e sustenta que a racionalidade jurídica pode ser subvertida em nome de uma boa causa.

A corrupção da Constituição é tão grave quanto a corrupção que ocorre pelas sombras do poder no desvio de dinheiro dos cofres públicos. Se no segundo caso a corrupção retira recursos da saúde e da educação direto para as contas bancárias dos agentes políticos ou empresários envolvidos com atividades ilícitas, no primeiro caso o que temos é a apropriação da lei por aqueles que fazem com as palavras o que bem entendem. Pena que os juristas só percebem essa corrupção da legalidade constitucional quando o andar da carruagem já se encontra bem adiantado, como ocorreu com os juristas da geração de 1964. Naquele tempo os militares eram vistos como salvadores da pátria por grande parte da opinião pública. Acontece que em nome da defesa da ordem veio a desordem constitucional e o desmantelamento do Estado de Direito. A maior parte dos juristas apoiou o golpe sem titubear, pois em sua visão o que valia mesmo era a luta contra o comunismo, mesmo que para vencê-lo fosse necessário colocar uma ditadura militar no lugar da Constituição de 1946. Juízes, advogados, ministros do Supremo Tribunal Federal, doutrinadores, professores e muitos outros profissionais do direito apoiaram a quartelada. Foram muitas as comemorações no início. Mas depois vieram as prisões, a censura, a tortura, os assassinatos, as demissões e todo tipo de perseguição que ocorre em quaisquer regimes de exceção. Depois do golpe a ditadura se transformou numa longa quarta-feira de cinzas.

Como diria o poeta Eduardo Alves da Costa: “Na primeira noite eles se aproximam/ e roubam uma flor do nosso jardim./ E não dizemos nada./ Na segunda noite, já não se escondem:/ pisam as flores,/ matam nosso cão,/ e não dizemos nada./ Até que um dia,/ o mais frágil deles/ entra em nossa casa,/ rouba-nos a luz, e,/ conhecendo nosso medo,/ arranca-nos a voz da garganta./ E já não podemos dizer nada”. Já passou da hora da comunidade jurídica assumir uma maior responsabilidade política de defesa da Constituição. Num país onde a corrupção da lei virou a regra, está mais do que na hora dos juristas assumirem críticas mais duras ao ativismo judicial. A discricionariedade do STF já avançou sobre a presunção de inocência. Antes que a Constituição nos seja arrancada de vez, temos que gritar em defesa da legalidade!


1 Hugo von Hofmannsthal apud MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização. São Paulo: Unesp, 1995, p. 35.

2 Nesse sentido, ver: ELIAS, Norbert. Processo civilizador: formação do Estado e civilização. op. cit., 1993, v. II.

3 Nesse sentido, ver: KANTAROWICS, Ernst H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

4 FUKUYAMA, Francis. As origens da ordem política: dos tempos pré-humanos até a revolução francesa. Rio de Janeiro: Rocco, 2013, p. 31.

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