Opinião

Estado tem obrigação constitucional de reconhecer função social da empresa

Autor

  • Francisco Soares Campelo Filho

    é advogado e professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (Esmepi). Doutorando em Direito e Políticas Publicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

27 de novembro de 2016, 6h30

A atividade empresarial no Brasil é vitimada por uma nefasta cultura comum que coloca o seu agente, o empresário[1], como um vilão, explorador do trabalho e que visa unicamente o acúmulo de riqueza[2].

É preciso, contudo, desmistificar esse pensamento secular (medieval), considerando que, na verdade, a atividade empresarial cumpre uma função social essencial para o desenvolvimento socioeconômico do país, em que pese o lucro[3] ser algo inerente àquela própria atividade, e isso é por demais óbvio, porque não se empreende uma atividade empresária, onde se investe tempo e capital, sem que a obtenção de lucro não esteja dentre os seus objetivos.

A questão é que, muito mais que o lucro, a empresa cumpre uma função social das mais relevantes, a qual, dada a sua importância, está inserida na própria Carta Constitucional de 1988.

De fato, em análise à vigente Constituição brasileira depreende-se que o legislador constituinte reconheceu a importância da atividade empresarial, podendo-se inferir que função social da empresa é (deve ser) alcançada na medida em que se observa a solidariedade (Constituição, artigo 3°, inciso I), a promoção da justiça social (Constituição, artigo 170, caput), se respeita a livre iniciativa (Constituição, artigo 170, caput, e artigo 1°, inciso IV), se busca o pleno emprego (Constituição, artigo 170, inciso VIII) e a redução das desigualdades sociais (Constituição, artigo 170, inciso VII), reconhece o valor social do trabalho (Constituição, artigo 1°, inciso IV) e da dignidade da pessoa humana (Constituição, artigo 1°, inciso III), enfim.        

É preciso ressaltar que a os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa estão elencados como princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, IV, da Constituição de 1988), ou seja, são fundamentos, base, servindo de estrutura de sustentação do modelo (neo)liberal e social (não)intervencionista escolhido pelo legislador constituinte[4].

Deve ser observado, ainda, que o próprio legislador infraconstitucional brasileiro, antes mesmo de todos os comandos constitucionais supra citados, já na Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76), nos artigo 116, parágrafo único e 154, se pronunciava sobre o cumprimento de uma função social por parte das sociedades empresárias

"Artigo 116. […]

Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.

[…]

Artigo 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa".

Também a Lei de Recuperação Judicial (Lei 11.101/2005), em seu artigo 47, que fundamenta o próprio instituto da recuperação também reconhece a função social da empresa e a necessidade de preservação da mesma.

"Artigo 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica".

O Supremo Tribunal Federal, através de acórdão de relatoria do ministro Cezar Peluso, nos autos do Agravo de Instrumento 831.020, publicado no DJe-158, de 13 de agosto de 2012[5], ensina que o direito de propriedade, seja material ou imaterial, deve ser exercício observando-se a função social da empresa, e ainda ressaltando que a observância da função social do direito que se exerce encontra-se disseminada por toda a Carta Magna.

Manoel Pereira Calças, ao realçar a importância da função social da empresa, e a necessidade de sua preservação, traz instrutiva contribuição:

"Na medida em que a empresa tem relevante função social, já que gera riqueza econômica, cria empregos e rendas e, desta forma, contribui para o crescimento e desenvolvimento socioeconômico do país, deve ser preservada sempre que for possível. O princípio da preservação da empresa que, há muito tempo é aplicado pela jurisprudência de nossos tribunais, tem fundamento constitucional, haja vista que nossa Constituição Federal, ao regular a ordem econômica, impõe a observância dos postulados da função social da propriedade (artigo 170, III), vale dizer, dos meios de produção ou em outras palavras: função social da empresa. O mesmo dispositivo constitucional estabelece o princípio da busca pelo pleno emprego (inciso VIII), o que só poderá ser atingido se as empresas forem preservadas. (…)"[6].

Percebe-se, assim, o reconhecimento pela Corte Suprema brasileira e pela doutrina, não somente que efetivamente as sociedades empresárias têm uma função social a cumprir, mas também, que essa função social reveste-se de grande importância no contexto do modelo econômico-político-social brasileiro, inclusive sendo garantida a proteção à existência das mesmas.

No já referido Projeto de Lei do Novo Código Comercial (PL 1.572/11), seu artigo 7º também traz expressamente a importância da empresa dentro do contexto social[7].    

Nesse toar, a função social da empresa, ao tempo em que se exterioriza, ou seja, em que se apresenta com um efetivo elemento de atuação social, também serve de base para fundamentar a própria necessidade de preservação das sociedades empresárias, até porque, não há como as sociedades empresárias cumprirem uma função social se elas, sociedades, não existirem.

O ponto fulcral, contudo, é que o reconhecimento da função social da empresa está muito mais voltado para o cumprimento de obrigações por parte das sociedades empresárias do que pelo reconhecimento e respeito de todos, especialmente do Estado, no que tange à importância das empresas para à própria manutenção do Estado Democrático de Direito capitalista.

Difícil compreender as razões do Estado em desconhecer na atividade empresária um importante e fundamental agente social. Basta observar que são as empresas as que absorvem a maior parte da mão de obra disponível, diminuindo o desemprego via de consequência. São as empresas as que mais recolhem tributos aos cofres do Estado, os quais permitem que este possa realizar as suas políticas públicas (o que não vem ocorrendo, infelizmente). E são também as empresas as que, através de diversas obrigações sociais que realizam, terminam por substituir e aliviar parte da responsabilidade social do Estado. Assim, forçoso é reconhecer que a iniciativa privada cumpre uma importante função social, e que por isso mesmo deveria contar com uma maior atenção do Estado[8].

Nesse diapasão, o Estado deveria urgentemente repensar a sua relação com as sociedades empresariais, pois ao invés de uma relação parasitária deveria ser simbiótica (em seu sentido positivo, por óbvio), tal como tenho sugerido, no sentido de que um necessariamente depende do auxílio do outro[9]. Afinal, quantas não são as obrigações impostas pelo Estado à inciativa privada? Obrigações que vão muito além o recolhimento de tributos e de encargos, mas que transcendem a esfera de contribuição direta[10].

A função social da empresa possui (ou deveria possuir), dessa forma, um duplo sentido, que vincula(sse) não só a atividade empresarial, mas também o Estado, que deveria reconhecer essa função social em sua relação para com as empresas. Defendo que às empresas cabe buscar no Judiciário este reconhecimento[11] que, antes de tudo, e como já referido, é um direito que se reveste de constitucionalidade.

Urge, pois, que os falsos paradigmas sejam quebrados, que a verdade seja exaltada, que a realidade se descortine, para que todos, e em especial o Estado, possam efetivamente compreender a verdadeira função social da empresa e a sua essencialidade para a existência da sociedade.


[1] O atual Código Civil brasileiro, no artigo 966, conceitua empresário como sendo aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
[2] A cultura do empresário vilão surge de equívocos seculares como o jargão ideológico-dogmático-religioso de que "lucro é pecado", por exemplo! Outras falácias, como a que enxerga no empresário um detentor de capital e explorador do trabalho, somam-se ao longo do tempo e terminam por contribuir para esta distorcida análise. Ver: http://www.administradores.com.br/artigos/negocios/no-brasil-lucrar-e-pecado/64100/. O presidente do Brasil, Michel Temer, declarou em evento do agronegócio em São Paulo que "ter lucro não é pecado", confirmando ser este ainda um pensamento que aflige o Brasil. Ver:  http://www.noticiasagricolas.com.br/noticias/agronegocio/175828-ter-lucro-nao-e-pecado-diz-temer-ao-agronegocio.html#.WDNvdoWcFAg.
[3] No projeto de lei do Novo Código Comercial (PL 1.572/11), seu artigo 5º já estabelece que o lucro decorre do princípio da liberdade de iniciativa, sendo o principal fator de motivação da iniciativa privada:
O período de submissão de contribuições ao Debate Público sobre o Projeto de Novo Código Comercial foi encerrado em 01/07/2012.
O período de submissão de contribuições ao Debate Público sobre o Projeto de Novo Código Comercial foi encerrado em 01/07/2012.
Artigo 5º. Decorre do princípio da liberdade de iniciativa o reconhecimento por este Código:
I – da imprescindibilidade, no sistema capitalista, da empresa privada para o atendimento das necessidades de cada um e de todos;
II – do lucro obtido com a exploração regular e lícita de empresa como o principal fator de motivação da iniciativa privada;
III – da importância, para toda a sociedade, da proteção jurídica liberada ao investimento privado feito com vistas ao fornecimento de produtos e serviços, na criação, consolidação ou ampliação de mercados consumidores e desenvolvimento econômico do país; e
IV – da empresa privada como importante polo gerador de postos de trabalho e tributos, bem como fomentador de riqueza local, regional, nacional e global.
[4] Quanto à esta questão do modelo econômico-político adotado pela Constituição Federal de 1988, Eros Grau, ao interpretar e criticar a ordem econômica, traz uma série de posicionamentos doutrinários, inclusive anteriores à própria Constituição, concluindo que: (1) a ordem econômica na Constituição de 1988 consagra um regime de mercado organizado (…) optando pelo tipo liberal do processo econômico (…), mas que o Estado adota uma posição que corresponde à do neoliberalismo ou social-liberalismo, com a defesa da livre iniciativa; (2) contempla a economia de mercado; e (3) a Constituição é capitalista, mas a liberdade é admitida enquanto exercida no interesse da justiça social e confere prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado.  Eros grau traz ainda outros posicionamentos sobre a matéria. (Ver: GRAU, Eros. A ordem Econômica na Constituição de 1988. 16ª ed. Ver. E atual. Malheiros. São Paulo, 2014. pp. 177-189.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Autos do Agravo de Instrumento AI 831.020 RJ, publicado no DJe-158, de 13 de agosto de 2012. Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22296205/agravo-de-instrumento-ai-831020-rj-stf.
[6] CALÇAS, Manoel Pereira. A Nova Lei de Recuperação de Empresas e Falências: Repercussão no Direito do Trabalho (Lei 11.101, de fevereiro de 2005). Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Ano 73. N. 4. out/dez 2007, p. 40.
[7] Artigo 7º. A empresa cumpre sua função social ao gerar empregos, tributos e riqueza, ao contribuir para o desenvolvimento econômico, social e cultural da comunidade em que atua, de sua região ou do país, ao adotar práticas empresariais sustentáveis visando à proteção do meio ambiente e ao respeitar os direitos dos consumidores, desde que com estrita obediência às leis a que se encontra sujeita.
[8] Sobre a relação entre o Estado e a iniciativa privada, ver minha dissertação de mestrado: A função social da empresa como condição de possibilidade de sustentação do Estado social no mundo globalizado. Disponível em:
http://www.repositorio.jesuita.org.br/bitstream/handle/UNISINOS/4814/FRANCISCO%20SOARES%20CAMPELO%20FILHO_.pdf?sequence=1&isAllowed=y
[9] Ver meu artigo Reflexos da globalização econômica sobre as sociedades empresárias: uma necessária simbiose entre Estado e empresas ou o destino apocalíptico que se aproxima no horizonte. In Revista Direito Hoje, n. X, Imagem Brasil, Teresina-PI, 2014.
[10] Ver decisão do STF: Mantidas obrigações a escolas particulares previstas no Estatuto da Pessoa com Deficiência. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=304439
[11] Sobre esse tema, há a necessidade de uma análise profunda e que poderá ser objeto de outro estudo.

Autores

  • Brave

    é advogado, mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS). Membro da Comissão Nacional de Educação Jurídica do Conselho Federal da OAB. Professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (ESMEPI).

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