Estado de exceção

Juíza do RJ autoriza busca e apreensão coletiva na Cidade de Deus

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22 de novembro de 2016, 9h34

A juíza Angélica dos Santos Costa autorizou nesta segunda-feira (21/11) que a polícia faça buscas e apreensões coletivas na Cidade de Deus, bairro do Rio de Janeiro. A decisão vem depois que quatro policiais militares morreram na queda de um helicóptero durante operação contra o tráfico no sábado — as causas da queda ainda são investigadas.

Segundo informações da revista Época, a juíza justificou a medida em razão da situação excepcional. “Em tempos excepcionais, medidas também excepcionais são exigidas com intuito de restabelecer a ordem pública". O processo tramita em segredo de Justiça.

Ainda de acordo com a publicação, as quatro áreas dentro da favela onde ocorrerão as buscas foram delimitadas a partir de informações do setor de inteligência da polícia. “Os criminosos não se estabelecem em um único local, mas vão ocupando casas, inclusive de moradores de bem, ficando difícil apontar uma residência em específico”, disse a magistrada.

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PM do Rio de Janeiro foi autorizada a fazer buscas e apreensões coletivas.
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A área sofre desde sábado (19/11) com intensa troca de tiros entre traficantes. Depois da queda do helicóptero, sete pessoas foram encontradas mortas nas matas próximas à Cidade de Deus com marcas de morte violenta. As causas dessas mortes também não foram esclarecidas. Segundo o Estadão.com, os mortos eram traficantes da região.

Hoje bairro, a Cidade de Deus já foi considerada uma das favelas mais perigosas da capital fluminense e abriga, conforme o Censo de 2010, 47 mil habitantes.

Estado de exceção
O presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, o criminalista Leonardo Sica criticou a decisão da juíza Angélica dos Santos Costa. Segundo ele, a medida é ilegal, não está prevista em lei e viola a Constituição, "que não convive com 'poderes ilimitados'".

Sobre os "tempos excepcionais" citados pela magistrada, Sica também diz que é "papel do Judiciário é reforçar o regime de estrita legalidade". "É nesse contexto que surgem tentações autoritárias. Quanto maior a ilegalidade, maior a necessidade de o judiciário responder em contraste: com mais legalidade."

O também criminalista Welington Arruda afirma que a decisão que retrata o momento de ruptura institucional vivido pelo Brasil. "É a aplicação irrestrita do Direito Penal do Inimigo para fins investigativos."

Disse ainda que a decisão parece não considerar barracos como casa, que, conforme a Constituição, é inviolável exceto em caso de flagrante delito, desastre, para prestar socorro ou por determinação judicial – que sempre deve seguir os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

"Me parece que o Poder Judiciário não compreende bem o que venha a ser residência. Casas que são chamadas de barraco e que ficam na favela também são residência e são invioláveis, exatamente como são invioláveis os apartamentos e os imóveis de alto padrão que ficam no Leblon", afirma Arruda.

O advogado Marcelo Feller, que também atua na área criminal, se mostra incrédulo com o entendimento da magistrada. "Não quero crer que uma juíza julgou-se competente para decretar estado de sítio."

Para Fábio Amado, coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, os mandados coletivos são instrumentos inconstitucionais, ilegais e ilegítimos, além de irem contra a inviolabilidade domiciliar.

"A legitimação da intervenção punitiva exige respeito à Constituição Federal e à legislação processual. Essas medidas autoritárias destinam-se sempre aos negros e pobres residentes em favelas, reforçando a seletividade do sistema penal", diz o defensor público.

De acordo com o criminalista Fernando Fernandes, a decisão faz parte da “sequência de atos de abuso do Poder Judiciário”. Segundo o criminalista, mandado sem endereço especificado significa decretação de um estado de sítio regional, comparativo a criação de guetos nazistas.

“Fatos recentes dão sinais de que uma classe de juízes não se diferencia das forças de segurança repressiva. É necessário acabar com a impunidade destes atos de abuso  e torná-los puníveis ou, então, não desviaremos uma trajetória a caminho de um estado de exceção, governada não mais pela Constituição”, opina.

O constitucionalista Adib Abdouni explica que não existe no Código de Processo Penal qualquer autorização legal para a expedição e cumprimento de mandado de busca e apreensão coletivo genérico. “Para se obter um mandado de busca e apreensão é obrigatório levar ao conhecimento prévio do magistrado a indicação precisa da casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador.”

Abdouni diz ainda não haver “excepcionalidade que exija a adoção dessa medida genérica e não individualizada, admissível no estado de defesa ou de sítio — quando garantias constitucionalmente tuteladas são flexibilizadas, como o princípio da dignidade humana, o direito à intimidade e imagem, a inviolabilidade de domicílio e a presunção de inocência, conforme estabelece o artigo 5º da Constituição Federal. Portanto, a referida ação resultará em prova ilícita, face à sua patente nulidade”.

Fabrício de Oliveira Campos, também criminalista, diz que o Código de Processo Penal é claro quando especifica os requisitos do mandado de busca e apreensão, que deve conter, tanto quanto possível a especificação do endereço e do morador, além de indicar o objetivo da busca e seus limites. "Ao que parece, por se tratar de uma comunidade sob ocupação policial, as regras processuais e os direitos individuais ficam em segundo plano."

Campos ressalta que, apesar de ilegal, a repercussão do caso pode fazer com o que essa prática torne-se jurisprudência e seja legalizada. "É que o olhar sobre direitos e garantias que se faz hoje, em 2016, não pode contar com segurança jurídica. Pode ser que o advogado, crente na prevalência de limites no processo criminal, esteja vendo direitos que se tornarão (ou já se tornaram) apenas miragens”, diz.

Processo 0397891-81.2016.8.19.0001 (em segredo de Justiça)

*Notícia alterada às 19h44 de 22 de novembro de 2016 para inclusão de informações.

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