Efetividade do processo

"Judiciário precisa de varas regionais especializadas em recuperação judicial"

Autor

20 de novembro de 2016, 5h52

Spacca
A recuperação judicial no Brasil está do avesso. Em muitos pontos importantes do procedimento, alguns não citados pela legislação, a decisão tomada é sempre contrária à efetividade e à busca pela reerguimento da empresa em dificuldades. É o que diz o juiz Daniel Carnio Costa, titular da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo.

"Falta especialização. Pode ser a melhor lei do mundo, mas sem aplicação correta não vai atingir as suas finalidades. Temos que garantir condições para que ela seja aplicada de maneira adequada", afirma, em entrevista exclusiva à revista Consultor Jurídico. Para ele, a solução é uma tramitação mais dinâmica do processo e um aprimoramento do diálogo, e não só entre os credores e devedores, mas também dentro do poder público.

Costa, que se reuniu com integrantes do Ministério da Fazenda para falar sobre mudanças na lei e nos procedimentos de recuperação judicial, conta que o sistema não favorece o diálogo entre o Fisco e o Judiciário. "Porque que o Fisco vai sentar e conversar comigo se ele não está sujeito ao processo de recuperação?"

Carnio Costa aponta como opções uma lei de parcelamento adequada às necessidades das empresas em recuperação e que possa ser exigida pelos juízes para aceitar o processo de recuperação judicial ou trazer o Fisco para o processo e discutir as melhores saídas.

O próprio modelo de diálogo proposto pela lei, segundo o magistrado, é contraproducente. Exige deslocamentos desnecessários num país como o Brasil, em que as empresas e indústrias ficam concentradas em algumas regiões. A repartição regional de varas especializadas é vista como parte da solução pelo magistrado, que vê no cotidiano uma das fontes de aprimoramento profissional.

"Se é uma região com agronegócio, o julgador naturalmente vai estar por dentro de todas as questões relacionadas com o tema. Com a vara especializada de competência regional esses problemas serão resolvidos. E isso não depende de mudar a Lei de Falências, acho que tem que ser por meio de lei estadual, pois não tem nada a ver com a União", afirma.

Leia a entrevista:

ConJur – O senhor apresentou sugestões relacionadas às mudanças pretendidas pelo governo federal na Lei de Recuperação Judicial. A perícia prévia é uma delas?
Daniel Carnio Costa – 
Essa é uma alteração que acho importante. Mesmo não estando na lei, dá para fazer, pois se interpreta a lei de maneira a chegar a essa conclusão. Mas se teremos uma nova lei, ou se está sendo estudada uma nova lei, acho que essa seria uma fase importante. Por exemplo, de 20 pedidos de recuperação recebidos este ano aqui na vara, três foram indeferidos sumariamente porque não existia qualquer documentação. Um foi indeferido após a perícia prévia porque se constatou fraude ou que a empresa de fato não existia. Em um caso, antes da perícia prévia, se constatou que a empresa não era exatamente como o descrito na petição e a companhia desistiu depois que eu determinei a perícia prévia. Em três casos a perícia prévia constatou que esse não era o juízo competente, porque a recuperação deve tramitar no local do principal estabelecimento da empresa, que não era aqui.

ConJur – Há algum levantamento sobre quanto a perícia prévia poupa em recursos que seriam gastos na tramitação processual?
Daniel Carnio Costa – 
Não fiz nenhum levantamento detalhado, mas se 30% dos pedidos em média ficam nesse filtro, é possível dizer que estamos economizando a mesma porcentagem em recursos públicos que seriam desperdiçados. Uma coisa é ter recursos em razão de um processo de recuperação que tem condições de gerar os benefícios esperados. É para isso que serve o Estado. Outra coisa é usar recursos públicos em processos natimortos. Isso é desperdício de dinheiro público. Estive conversando com membros do Ministério da Fazenda, em Brasília, a convite do ministro Henrique Meirelles, e a pasta está fazendo um estudo muito interessante sobre recuperação judicial.

ConJur – Qual o objetivo do estudo?
Daniel Carnio Costa – 
Eles também entendem que precisamos ter uma lei mais eficaz, e estão ouvindo todos os setores envolvidos para saber quais são os problemas e desenhar um projeto que seja adequado.

ConJur – O que o senhor apresentou lá?
Daniel Carnio Costa – 
Disse a eles que, apesar de ter sugestões de alteração na lei, precisamos de mudanças que não implicam em mudar a norma, mas que vão dar um choque de efetividade. Não adianta nada mudar a legislação se a aplicação não for adequada. Dei três sugestões. A primeira, pela implantação de mais varas especializadas, pois não tem cabimento que um processo de recuperação judicial, que é super complexo, seja gerenciado por magistrados sem familiaridade com o tema. É até desumano exigir que um juiz, lá no interior, que está julgando juizado especial, júri, processo crime, ação de despejo, guarda, pensão de alimentos, tenha que conduzir um processo de recuperação judicial complexo.

ConJur – Qual o principal problema?
Daniel Carnio Costa – 
É evidente que o juiz não vai ter tempo e condições suficientes para julgar esse processo da forma como se deve. No Brasil nós temos poucas varas especializadas em algumas grandes cidades, mas a maioria dos municípios não tem varas especializadas, e nem há justificativa para ter. Nos Estados Unidos esse problema foi resolvido com a criação de varas especializadas de competência regional. Trazendo aqui para o Brasil e pegando, por exemplo, São Paulo: dividimos o estado em cinco ou seis regiões com juízes de falência em cada uma delas. Assim, qualquer caso de recuperação em São Paulo vai ser julgado por algum deles. Fazendo a mesma coisa com todos os estados, chutando um número, teríamos 60 juízes de falência e recuperação no Brasil, e todos os casos seriam julgados por magistrados especializados, trazendo mais estabilidade e previsibilidade ao julgamento.

ConJur – Essa especialização seria por meio de cursos?
Daniel Carnio Costa – 
Os juízes vão ser treinados. É possível dar treinamento permanente para 60 juízes, mas não para 12 mil. O dia a dia também especializa. Esses julgadores também terão uma comunicação efetiva entre si, o que propicia uniformidade maior e eleva o nível da aplicação da lei. Isso também levará a uma melhora nos administradores judiciais, porque vai haver comunicação entre os juízes, todos especializados. Aqueles que são bons vão conquistar mercado e aqueles que não são bons vão sair dele. Só com essa especialização e essa criação de varas com competência regional que é possível fazer dessa nossa lei uma lei muito melhor, porque ela vai ser aplicada melhor.

ConJur – Fala-se muito de casos em que donos de empresas tentam levar o caso a São Paulo por causa das varas especializadas. É verdade isso?
Daniel Carnio Costa – Ocorre isso e o inverso também. Na Europa e nos Estados Unidos isso é chamado de forum shopping. Eles tentam buscar um foro que seja mais adequado aos interesses deles. Aqui em São Paulo há uma fiscalização muito mais intensa porque nós temos varas especializadas. Por isso as empresas que têm intenção de que a recuperação seja adequada querem vir para cá. Mas existem empresas que deveriam ajuizar sua recuperação judicial aqui, mas querem fugir de São Paulo. Talvez não queiram que o processo ande da forma como deveria, talvez para ganhar algum tipo de vantagem com a morosidade processual ou com a ausência de fiscalização.

ConJur – Seria possível também uma especialização do juiz no negócio preponderante da região?
Daniel Carnio Costa – 
Aí é uma decorrência natural da atuação do magistrado. Se é uma região com agronegócio, o julgador naturalmente vai estar por dentro de todas as questões relacionadas com o tema. Com a vara especializada de competência regional esses problemas serão resolvidos. E isso não depende de mudar a Lei de Falências. Tem que ser por meio de lei estadual, pois não tem nada a ver com a União. Além disso, todas as questões que vão ser julgadas na recuperação judicial são de direito empresarial, sendo julgadas por juízes estaduais. Podem até questionar se não haveria uma  concentração muito grande de poder, mas é muito mais fácil fiscalizar 60 juízes do que 12 mil. Ou seja, haverá ainda um aumento de fiscalização sobre esses magistrados garantindo transparência nesses processos e evitando desvios de conduta.

ConJur – Que outra mudança o senhor sugeriu em Brasília?
Daniel Carnio Costa – 
Um dos grandes problemas da empresa em recuperação é financiamento, pois o acesso ao crédito bancário é restrito. Existe uma regulamentação do Banco Central que faz uma classificação de risco de empréstimos bancários com base no sistema chamado VAR [sigla para Value at Risk]. Esse sistema controla o risco sistêmico do sistema bancário. Eles qualificam os negócios e os empréstimos e as empresas de AA  –  que é o menor risco, ou seja, aquela companhia será adimplente  – até H que é a classificação de empresas com altíssimo risco de inadimplência concedida automaticamente às empresas em recuperação judicial. Quando o banco pretende emprestar para uma empresa H, ele tem que provisionar no Banco Central 100% do capital emprestado para garantir que não haverá um risco sistêmico no caso de inadimplência dessas empresas.

ConJur – Inviabiliza a oferta.
Daniel Carnio Costa – 
Ora, se o banco tem que provisionar um real para cada real emprestado a uma empresa de rating H, na prática, esse financiamento fica praticamente inviável. Assim, as empresas em recuperação judicial vão se financiar vendendo ativos, que é o que acontece em 90% dos casos. Ou por meio de outras formas de investimento (estrangeiros, outras empresas, instituições não bancárias, mas financeiras e que injetam dinheiro ali naquele negócio). É preciso mudar a regulação do Banco Central. Não quero que seja abandonada essa postura cuidadosa em relação ao risco sistêmico, mas por que presumir que uma empresa em recuperação é pior que uma outra empresa qualquer?. Por que não deixar que o banco faça uma análise de risco em relação à empresa? Mudando a regulação do Banco Central, colocamos dinheiro novo na veia das empresas.

ConJur – E qual foi a terceira sugestão?
Daniel Carnio Costa – 
Antes de mudar qualquer coisa na Lei de Recuperação, deveríamos ter uma lei de parcelamento especial para empresas em recuperação. Para que a empresa possa entrar em recuperação, ela deve aderir a um parcelamento especial, obter uma certidão desse parcelamento. Mas durante muito tempo não tínhamos essa lei e a Justiça acabou decidindo que vai sem lei mesmo, porque se for exigida uma certidão de parcelamento de uma iniciativa que não existe, não é possível conceder recuperação e a sociedade vai colher todo o prejuízo decorrente disso. Então os tribunais começaram a deferir recuperação para empresas com um passivo fiscal não equacionado.

ConJur – Essa é uma reclamação recorrente das entidades fazendárias.
Daniel Carnio Costa –  
Mas o pior é que o Fisco não faz parte da recuperação. Então, em tese, ele pode prosseguir com as execuções fiscais contra a empresa. Mas o STJ já decidiu que para retirar algum ativo da empresa, para expropriar algum ativo da empresa, o juízo da recuperação tem de autorizar, porque só ele tem condições de saber se aquele ativo é essencial ou não ao desenvolvimento da atividade. Na maioria dos casos, é essencial. Na maioria dos casos, o Fisco não consegue receber pelo plano porque não faz parte da recuperação. E não consegue receber por fora do plano porque não há parcelamento especial e as execuções não compensam efetivamente o crédito. Recentemente uma lei criou esse parcelamento especial para empresas em recuperação, só que a norma veio com termos não adequados à recuperação, criando condições menos favoráveis do que a de um Refis.

ConJur – Isso não cria uma anomalia, onde Fisco e Judiciário não se conversam?
Daniel Carnio Costa – 
Exato. E continua tendo um maior prejudicado nessa história: o Fisco. Seria muito melhor o Fisco criar esse parcelamento em 120 vezes, que o mercado entende como adequado, para começar a receber esses valores, em vez de bater o pé e dizer que não, limitando em 84 vezes, e o Judiciário não exigir essa certidão. Portanto, veja: essas três mudanças gerariam um verdadeiro choque de efetividade na aplicação dessa lei exatamente como ela está.

ConJur – Isso não chegou a ser discutido no Congresso?
Daniel Carnio Costa – 
O projeto dessa lei foi apresentado de maneira adequada, com parcelamento em 120 vezes, desconto de juros e multa, só que esses artigos foram vetados pela então presidente da República em duas ocasiões. O fato é que a lei do jeito que está não está atendendo às necessidades e o judiciário continua deferindo recuperação sem exigir essa certidão.

ConJur – Só essas mudanças já resolveriam os problemas?
Daniel Carnio Costa – 
Outra coisa é uma mudança nos planos de recuperação judicial, que davam deságios altíssimos. As críticas que se faziam a esses planos não tinham pé nem cabeça. Tecnicamente não paravam em pé. Nos Estados Unidos existe uma fase do processo chamada disclosure statement, que é quando o devedor apresenta o plano e o juiz faz uma análise técnica. Não importa se o plano é bom ou ruim, importa se o plano diz que eu tenho três de ativos para pagar três de credores, por exemplo. Mas, no Brasil, temos planos que presumem faturamento de, por exemplo, R$ 100 para pagar todos os credores. Mas quando são analisados os últimos cinco anos, o faturamento da companhia foi de R$ 10. Nos EUA, o juízo faz essa análise auxiliado por um perito. A partir do momento em que o plano foi aprovado do ponto de vista técnico, aí sim ele pode ser apresentado para ser votado pelos credores.

ConJur – Isso pode ser trazido para cá?
Daniel Carnio Costa – 
Poderíamos adotar isso no Brasil também. Apresenta o plano e o juiz faz uma análise técnica, para então poder submetê-lo aos credores. Aqui, os credores devem votar sobre o plano em uma assembleia geral, e o credor que quiser votar tem que ir à reunião ou mandar um procurador. Só que nessas recuperações grandes, tem credor no Brasil inteiro, mas a reunião tem de ser em São Paulo. Isso é um limitador de acesso dos credores ao processo, especialmente dos menos favorecidos.

ConJur – Como isso se reflete em situações concretas?
Daniel Carnio Costa – 
Poucos credores comparecem à assembleia. E a nossa lei leva em consideração como quórum de aprovação os credores presentes. Para o plano valer é preciso que ele seja aprovado nas classes 1 e 4 pela maioria dos credores presentes (voto por cabeça) e nas classes 2 e 3 em voto “por cabeça e crédito” presentes – maioria de credores que representem a maioria do crédito. Se tenho um passivo de R$ 2 bilhões, mas lá na assembleia eu tenho credores que representam R$ 10 milhões, com apenas R$ 5 milhões de aprovação o plano é aceito. Se eu tenho 100 mil credores, mas só 200 vão à assembleia, o plano é aprovado com 100 votos. Isso cria um problema de legitimidade da decisão.

ConJur – Qual a solução?
Daniel Carnio Costa – 
Não precisaríamos ter uma assembleia geral de credores. Aprovado o plano pelo juiz, ele estabelece um prazo para que o devedor apresente a anuência dos credores em número suficiente para a sua aprovação e o devedor que vá atrás dos credores.

ConJur – E se ele não conseguir?
Daniel Carnio Costa – 
Segundo a lei americana, se ele não conseguir apresentar a aprovação do plano naquele prazo, abre-se a possibilidade de os credores apresentarem planos alternativos, que também considero um exemplo a seguir. No Brasil, a assembleia decide presencialmente, e, se o plano não for aprovado, é falência. Isso faz com que os credores tenham que decidir sobre coisas muito graves.

ConJur – Podendo até aprovar um projeto inviável só para tentar conseguir o dinheiro depois.
Daniel Carnio Costa – 
Exatamente. Isso deveria mudar. Vamos adaptar à nossa realidade. Por exemplo, o plano foi rejeitado? Então os credores têm que decidir agora se é feita a convolação em falência ou se o processo é encerrado e cada credor cobra individualmente da empresa.

ConJur – De quanto seria esse prazo para colher a anuência dos credores?
Daniel Carnio Costa – 
Nos Estados Unidos eles dão de 120 a 180 dias.

ConJur – É suficiente?
Daniel Carnio Costa – 
Lá, é. Aqui talvez a gente tenha que discutir um pouco mais para a nossa realidade.

ConJur – Por causa da burocracia?
Daniel Carnio Costa – 
É. Aqui o Brasil estabelece 60 dias para ele apresentar um plano e 150 para acontecer a assembleia.

ConJur – E a figura do administrador judicial?
Daniel Carnio Costa – 
Uma última mudança é a regulação mais adequada e detalhada da função do administrador judicial. O administrador judicial é uma figura fundamental no processo de recuperação. A lei diz, no artigo 21.

ConJur – Sim, mas há uma pequena lista de profissões que podem ser administradores judiciais.
Daniel Carnio Costa – 
Mas a lei não diz. Ela deveria ser mais detalhada em relação à função. O administrador judicial tem que fazer uma fiscalização intensa da recuperanda, na atuação dela no processo e sobre as atividades empresariais. Não tem o menor cabimento o administrador judicial servir de office boy da empresa. Ele vai uma vez por mês lá, colhe um relatório que foi preparado pela própria devedora para entregar ao juiz? Isso não faz sentido. Ele tem que auditar a empresa, porque é isso que vai gerar a confiança necessária dos credores no processo para que eles possam negociar.

ConJur – Como criar um ambiente favorável ao diálogo?
Daniel Carnio Costa – 
Um ambiente favorável à negociação pressupõe conversa, que um acordo seja feito, concessões recíprocas. E muitas vezes há a necessidade de se fazer uma mediação para se conseguir um bom resultado. O administrador judicial pode atuar nesse ponto, mas o juiz também pode fazer isso. Tenho feito audiências de gestão democrática, que são audiências de mediação.

ConJur – Como elas funcionam?
Daniel Carnio Costa – 
Quando identificamos um determinado problema e que há necessidade de conversar com vários acionistas ao mesmo tempo, marco uma audiência, todos vêm aqui e conversamos todos juntos, tentando uma solução negociada. Se isso não é possível, aí vou decidir, mas farei isso com muito conhecimento da causa, porque ouvi todo mundo, participei das discussões, entendi efetivamente quais eram os problemas. Fiz isso em um caso envolvendo uma grande empreiteira. Marquei uma audiência de gestão democrática, tinham 200 pessoas aqui nessa sala. Evidentemente, não chegaram a nenhum consenso, mas me ajudou a dar uma decisão que enfrentou todos os questionamentos, todos os problemas que vi durante a nossa conversa. 

ConJur – E o sistema judiciário está pronto para oferecer essa mediação na sua plenitude aos credores?
Daniel Carnio Costa – 
Se nós tivermos varas especializadas com competência regional, fica muito rápido isso, porque os juízes vão ser treinados para isso.

ConJur – A comunicação entre as varas de recuperação e falência e o Fisco é suficiente?
Daniel Carnio Costa – 
Tem que ser aprimorada. Praticamente não há comunicação entre as varas de falência e o Fisco. O Fisco não participa do processo de recuperação. Deveria participar, ou deveria ter uma certidão, uma lei de parcelamento que garantisse ao Judiciário exigir essa certidão. O que não dá é termos empresas em recuperação com passivo fiscal não equacionado. É isso que gera todo esse problema. O recolhimento de tributos é interesse público. Aqui em São Paulo, determino que a empresa em recuperação apresente qual é o seu passivo fiscal para que os credores tenham conhecimento e exijo que o plano de recuperação tenha contingenciamento para pagamento desse passivo. Não podemos aceitar uma situação em que uma empresa tem R$ 100 mil de ativos e diz para os seus credores que vai usar esse montante para pagá-los, mas há um passivo fiscal de R$ 40 mil. E o Fisco? Fica onde? Como juiz vou homologar uma fraude fiscal? Não posso fazer isso.

ConJur – E o senhor espera que o Fisco seja mais incluído nessa nova lei, nessa mudança?
Daniel Carnio Costa – 
Espero. Se nós tivermos essa lei de parcelamento está ótimo. Hoje há uma incoerência muito grande. Ou o Fisco vem para dentro da recuperação ou temos que ter uma lei que crie um parcelamento para que o juiz possa exigir essa certidão no momento de conceder a recuperação.

ConJur – Quais são as preocupações adicionais que devem ser tomadas em recuperações envolvendo empresas ligadas a esquemas criminosos?
Daniel Carnio Costa – 
Transparência. Devemos garantir absoluta transparência em relação aos dados da empresa em recuperação para conseguir identificar esse tipo de situação. A atividade dessa empresa é lícita? Se for, ela tem que ser encerrada? Se ela for usada para praticar crimes, ela deve ser encerrada. Mas outra coisa é um gestor que praticou crimes no exercício daquela atividade. O problema não é a atividade, é o gestor. Ele tem que ser retirado. Agora, se há uma comunicação tão grande entre a atividade ilícita e a da empresa, é preciso fechá-la. Mas não há uma regra, é preciso analisar caso a caso.

ConJur – Qual o impacto da operação “lava jato” na recuperação judicial?
Daniel Carnio Costa – 
A "lava jato" acabou desnudando uma situação de absoluta impropriedade nas relações negociais entre algumas empresas e o poder público. Atrás de grandes empresas há sempre uma cadeia de empresas dependentes, e algumas delas têm entre essas grandes suas principais clientes. Se a Petrobras não tem novos projetos, deixa ou atrasa o cumprimento de outras obrigações, essas empresas que estão atrás dela começam a sofrer também. E atrás dessa segunda empresa tem uma terceira. É uma fila de dominós, as peças vão caindo uma sobre a outra. Mas o importante é que a gente saiba diferenciar o joio do trigo.

ConJur – Em que sentido?
Daniel Carnio Costa – 
Uma coisa são os criminosos, que devem ser punidos, outra coisa é a atividade empresarial, que deve ser preservada. Todo mundo perde se a atividade empresarial cessa. Há empresas envolvidas que geram 120 mil empregos diretos. Já imaginou se fecham? Serão milhares, centenas de milhares de empregos, diretos e indiretos, que desaparecerão. A atividade econômica entra em colapso. Temos que entender que há diferença entre punir os culpados e exigir atitudes de compliance da empresa e preservar a atividade empresarial, porque isso é importante. Ainda que em mãos de outras pessoas, é preciso preservar a atividade empresarial.

ConJur – Existem empresas envolvidas na “lava jato” com famílias em sua direção. Como separar a atividade empresarial do crime nessas situações?
Daniel Carnio Costa – 
Uma das possibilidades que a própria Lei de Recuperação traz é afastar os gestores e colocar outros no lugar. Se há uma contaminação tal que a presença daqueles gestores inviabiliza o prosseguimento da atividade empresarial, que se afaste o gestor e que se garanta a preservação daquela atividade. Também não estou dizendo para preservar a pessoa jurídica. Estou falando da atividade empresarial. Tive um caso de recuperação em que uma empresa foi dividida em 17 partes, que depois foram vendidas, gerando 17 outras companhias, preservando todos os empregos. Isso pode acontecer. É preservar a atividade em função dos benefícios que ela traz. Não é proteger o empresário, nem proteger a pessoa jurídica e nem blindá-los da responsabilidade civil e penal. Eles têm que ser punidos, mas preservando-se a atividade empresarial.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!