Diário de Classe

A decisão jurídica no contexto da bipolaridade entre o universal e o singular

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19 de novembro de 2016, 7h00

Spacca
Frequentemente, a decisão jurídica é retratada, no ambiente cultural do estilo de vida romano-canônico[1], como uma atividade de mediação: apresenta-se como uma atividade que procura ajustar um universal a um singular, isto é, trata-se de agir como um medium para conformar a universalidade do justo à particularidade da discussão jurídica concreta, ou ainda, a generalidade da lei à concretude singular do caso[2].

Existe, evidentemente, uma série infindável de discussões para determinar o que é propriamente o universal do Direito. Qual a relação dessa universalidade com a ideia de Justiça? Há um justo natural? Ou são as forças históricas que o constituem enquanto instituição orgânica da sociedade? E a lei deve ser entendida como? Seria ela ato formal de um poder legislativo legitimamente constituído? Ou seria o resultado da vida de um povo? Por outro lado, também é polêmica a conformação daquilo que seja, propriamente, o singular do caso concreto. São as provas produzidas em um dado processo judicial? São as circunstâncias que o circundam[3]?

Uma abordagem, um pouco mais sofisticada do ponto de vista teórico, procura afirmar que a universalidade do Direito deriva de um quadro mais amplo dentro do contexto histórico-social. Tratar-se-ia de uma perspectiva macroscópica do fenômeno jurídico. De outra banda, o caso concreto judicializável representa um pequeno recorte dentro desse espaço geral de conformação. Tratar-se-ia, portanto, de uma manifestação microscópica do fenômeno jurídico.

A tarefa do agente decisório seria, nesse contexto, aproximar essas duas dimensões do fenômeno jurídico oferecendo, a partir daí, uma espécie de síntese que seria, propriamente, a decisão. De todo modo, é certo que — no contexto do estilo de vida jurídico do Direito Romano-Canônico — a decisão se apresenta como o resultado de uma mediação entre o universal (Direito/lei) e o singular (caso concreto judicializável).

Talvez a maior disputa em torno das configurações conceituais que gravitam na órbita da decisão jurídica se dê com relação à representação de como essa mediação tem lugar. Vale dizer, do tipo de estratégia que se utiliza para estabelecer uma aproximação racional do problema gizado. Se levarmos em conta as repostas que foram dadas ao longo da modernidade para essa questão, certamente teríamos como ponto de partida a questão da subsunção. Melhor seria dizer, talvez, do dogma da subsunção.

O dogma da subsunção opera em dois níveis distintos. Em primeiro lugar, há que se destacar um aspecto político-jurídico, de justificação. Em um segundo momento, existe uma determinação técnica-operacional.

a) Do ponto de vista político-jurídico, o dogma da subsunção efetua — por meio de uma série de justificativas que são articuladas a partir de argumentos retirados de um horizonte cultural determinado — uma redução epistemológica do problema do conceito de Direito. Concebe-se, nesse sentido, o Direito como sendo o conjunto das disposições que compõem as leis de um determinado Estado nacional. O conceito de Direito é equiparado, nesse sentido, ao conceito de lei.

Por outro lado, os movimentos de recepção do Direito Romano preparam as condições para o processo que culminou com a codificação do Direito Privado. De fato, a autoridade dos estudos universitários acerca da formação dos conceitos jurídicos e sua respectiva aplicação às relações jurídicas de Direito Privado que surgiam a partir do advento do Estado liberal contribuíram, significativamente, com a consolidação desse elemento cultural que produziu a equiparação entre lei e Direito.

b) Desse elemento político decorre logicamente uma consequência técnica ou metodológica. Trata-se da seguinte proposição: se o conhecimento do universal, da generalidade do Direito, já está dado pelo conhecimento da lei, então o trabalho do agente jurídico que exara a decisão judicial será aplicar esse conteúdo universal aos casos concretos apreciados.

A técnica inicial de decisão que servirá como mecanismo de aplicação do Direito será a conhecida subsunção. Nesse caso, opera-se dedutivamente da premissa maior que é a lei em direção à premissa menor, o caso. Esse aspecto lógico abstrato — também chamado de conceitualista — está na base de movimentos culturais como a escola da exegese francesa e a jurisprudência dos conceitos, alemã. Os grandes códigos civis do século XIX serão operacionalizados (no caso da escola da exegese) e pensados (no caso da jurisprudência dos conceitos) tendo a decisão judicial como resultado desse procedimento estritamente subjuntivo de acomodação do caso judicial ao suporte fático previsto na legislação.

Evidentemente, esse aspecto metodológico da questão gera, por sua vez, consequências políticas que podem, igualmente, ser pensadas a partir do horizonte cultural da época. Em primeiro lugar, acaba por concentrar o monopólio da decisão efetiva no plano da política e não, propriamente, da juridicidade. Quem decide de forma, digamos, soberana são as instâncias legislativas ou os espaços da erudição universitária. O corpo judiciário — que, nesse mesmo momento, passa a se formar enquanto organização burocrática desprendida do personalismo monárquico — agiria aqui com uma função “farmacêutica” de identificação de uma patologia que inquine a relação jurídica examinada, com a consequente determinação do remédio jurídico adequado, previsto, desde logo, pelos sistemas codificados.

Um código unificador de leis claras, por sua vez, permite experimentar a sensação de que o ideal de planificação e planejamento social presente no âmago das doutrinas iluministas poderia ser alcançado. Vale dizer, é uma expectativa própria desse tempo histórico que decisões tomadas no passado possam antecipar consequências futuras. Antecipar, no caso, decisões futuras.

Ou seja, há uma expectativa clara no sentido de que, se alguém descumpre alguma regra jurídica, cometa um ato ilícito etc., seja possível prever qual será a decisão que será tomada pelo agente estatal que ficará incumbido de tomar a decisão. Há, também, uma consequência econômica muito clara, uma vez que a previsão antecipada a respeito das decisões que serão tomadas no futuro permitiria aos agentes econômicos planejar melhor suas ações, bem como visualizar a consequência de seus atos. Criar-se-ia, assim, um elevado grau de certeza quanto ao resultado jurídico das relações econômicas. Nesse momento, o mercado é o grande interessado na afirmação da segurança jurídica. Do mesmo modo, podemos destacar, ainda, aspectos sociais importantes. No caso, a planificação jurídica estabelecida pela codificação funcionava como uma garantia de que os interesses burgueses, no caso francês, e que os interesses da aristocracia, no caso germânico, seriam, de alguma forma, preservados.

Ainda no século XIX, uma série de tensionamentos culturais começaram a impor algumas mudanças nas configurações conceituais da decisão jurídica. Nalguns casos, a própria pressão política da magistratura — que, já no final do século, começa a se fortalecer ganhando cada vez mais autonomia com a radicalização do Estado de Direito e o desligamento do processo civil do âmbito do Direito Material — levará a essa “mudança de rota”. Esse dado pode ser visualizado, por exemplo, na obra de Oskar von Bülow, que reivindicava maior espaço para a magistratura no processo de formação do Direito. Para ele, a verdadeira “recepção do Direito Romano” não teria ocorrido no seio da universidade, mas, sim, por meio das decisões tomadas pela magistratura que embalavam o Direito vivo, o Direito do caso[4].

Com efeito, a obra de Bülow pode ser considerada a mais remota manifestação crítica contra o dogma da subsunção; um primeiro, e ainda tímido, ataque ao conceitualismo da pandectística. Por outro lado, no ambiente do Direito francês, Francois Geny escreve, senão a primeira, certamente a mais famosa, crítica metodológica ao modelo de decisão estabelecido pelo exegetismo. Geny atacava exatamente esse aspecto predominantemente lógico-formal que o paradigma do dogma da subsunção carregava consigo. Sua grande intenção, como é sabido, era oferecer uma alternativa metodológica a esse “paradigma dominante” e que incorporasse um tipo de método científico mais adequado para o estudo do Direito. No caso, o método adequado teria inspirações sociológicas — em vez de lógico-filosóficas — e teria suas atenções voltadas para o fato jurídico em detrimento do entendimento meramente conceitual.

Essa investigação sociológica permitiria demonstrar a existência de determinadas relações sociais que, apesar de necessitarem de uma regração normativa, ficavam fora da zona de cobertura da estrutura codificada do Direito. Haveria, portanto, zonas “livres de direito” no seio da sociedade.

Assim, é importante ressaltar que a controvérsia das lacunas e a correlata questão da criação jurisprudencial do Direito é mais uma consequência do que, propriamente, intenção primordial do referido movimento. Na verdade, os esforços originários desse movimento estão vinculados a uma pretensão que poderíamos mencionar, com algumas ressalvas, como “epistemológica”: há uma reivindicação de correção quanto ao objeto da ciência jurídica e, em consequência, de seu aparato metodológico. No caso, busca-se o deslocamento do objeto da questão conceitual pura em direção aos fatos sociais, vale dizer, o objeto de estudo do jurista não seriam conceitos estabelecidos pela história ou por alguma legislação qualquer, mas, sim, os próprios fatos sociais. Mais do que os conceitos, é a sociedade que interessa ao Direito. De outra banda, a alteração do objeto implicava a correlata superação do método predominante de decisão: o paradigma da subsunção. No caso, propõe-se uma ênfase mais indutiva e menos dedutiva no processo de decisão das questões jurídicas.

Embora seja particularmente interessante e ilustrativo o modo como Kaufmann representa essa discussão entre os juristas do conceito e os juristas do Direito livre (inclusive em suas versões moderadas como no caso do Jurisprudência dos interesses), entendemos que ele não consegue captar toda a complexidade que reveste a questão. Conforme ressaltado em nota, Kaufmann vê a controvérsia que se estabelece aqui como uma repetição da querela medieval em torno dos universais: os juristas do conceito seriam os realistas — para quem só existem os universais; ao passo que os juristas do Direito livre seriam os nominalistas — para quem só o particular existe, propriamente. Os universais seriam apenas produtos intelectuais.

Ocorre que nem os conceitualistas eram assim puramente realistas (o problema da razão, da subjetividade, é uma constante também aqui) nem, tampouco, os libertários representariam um rigoroso nominalismo (como a reivindicação tem caráter científico, há uma preocupação com a afirmação de determinadas verdades “universais”).

No fundo, a grande questão que se coloca é a disputa entre Filosofia e Sociologia; trata-se de determinar se há espaço para a reflexão filosófica nos quadros de uma ciência social. Por certo que há uma pluralidade de formas de se trabalhar com a Filosofia ou com a Sociologia. Chamamos a atenção para isso na introdução: há em nosso contexto atual uma verdadeira competição de paradigmas em cada um dos campos do conhecimento.


[1] A expressão estilo de vida é de Erich Rothacker e compõe o quadro epistemológico de sua Antropologia Cultural. O autor explora o mesmo conceito em outro trabalho — de inspiração similar —, intitulado Filosofia da História (Cf. Rothacker, Erich. Problemas de Antropología Cultural. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1957, pp. 126 e segs.; Cf. Rothacker, Erich. Filosofía de la Historia. Madrid: Pegaso, 1951, capítulo II, passim). Os autores comparativistas, de uma maneira geral, referem-se ao common law e ao Direito Romano-Canônico como famílias (David, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2002, passim), tradições (Merymann, John Henry. Pérez-Perdomo, Rogelio. The Civil Law Tradition. 3 ed. Stanford: Stanford University Press, 2007, passim) ou sistemas (Losano, Mário. Os Grandes Sistemas Jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, passim.).
[2] A tensão entre o universal e o singular que existe no âmbito da decisão jurídica é apresentada de maneiras diversas por diversos autores. Particularmente interessante é a exposição que faz Jan Schapp (Problemas Fundamentais da Metodologia Jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1985, pp. 13 e segs.).
[3] Veja-se, nesse sentido, a discussão feita por Arthur Kaufmann em seu Analogia e Natureza da Coisa, no interior do qual o autor propõe uma espécie de realismo moderado que procura equilibrar as posições extremas entre o universal e o particular. Para Kaufmann os “juristas dos conceitos” (jurisprudência dos conceitos/pandectistica) representariam um modo de pensar a questão em que se dá total primazia ao universal como se este possuísse existência autônoma. Por outro lado, os adeptos do Direito Livre ou dos movimentos teleológicos, tais quais o finalismo de Ihering e a jurisprudência dos interesses de P. Heck, seriam seguidores de um “nominalismo extremo”, para o qual só existe o particular, os universais estariam apenas “na inteligência”. Assim, para sair desse confronto de extremos — que Kaufmann retrata segundo a terminologia da “controvérsia dos universais” que teve lugar no medievo entre os realistas escolásticos e os nominalistas — dever-se-ia postular uma posição mediadora, que temperasse em doses equilibradas os argumentos extremados. Assim, recorre ele ao conceito de analogia entis desenvolvido pela filosofia tomista para postular uma correspondência entre ser e dever-ser, entre o universal e o singular (Cf. Kaufmann, Arthur. Analogía e Naturaleza de la Cosa. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1956, passim).
[4] Cf. Losano, Mario G. Sistema e Estrutura no Direito. Vol. II. São Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 153-154.

* Texto atualizado às 14h do dia 19/11/2016 para correção.

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