Senso Incomum

As coisas estão tão misturadas... Cada um deve saber o seu lugar!

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17 de novembro de 2016, 7h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Escrevi há vinte anos [1] (sobre o uso de elevadores em Pindorama e outros temas típicos de nossa sociedade patrimonialista):

“A maior parte da sociedade passa a acreditar que existe uma ordem de verdade, na qual cada um tem o seu “lugar (de)marcado”. [2] Vejamos a complexidade do problema da formação do Brasil. Em muitos pontos há concordância dos pesquisadores. Segundo Antonio Houaiss e Roberto Amaral (Modernidade no Brasil: conciliação ou ruptura), o pressuposto é aceito de forma geral: 1) um território precioso, 2) flora, fauna e clima esplêndidos, 3) um autoctonato de fácil superação, 4) uma consolidação linguística quase miraculosa, 5) a gestação de uma cultura popular e ágrafa rica e emocionante, 6) uma expansão demográfica rara, pela multiplicação, pela miscigenação tolerante e pela democracia empírica convivial. Eliminando os pontos positivos, restam, ao cabo dos cinco séculos de operação Brasil, os enigmas: a dívida social crescente — fome, ensino miserável, ausência de terra (guardada como “poupança”) para os aptos a trabalhá-la, trabalho no campo preferentemente para a exportação, a importação preferentemente para gáudio dos exportadores. As chamadas elites brasileiras, bem pensadas, parecem ter tido, excelente ou sobre-excelentemente, o mais puro sentido de autodefesa e sobrevivência: 1) aos trancos e barrancos, embora souberam reter para si o máximo dos bens materiais; 2) souberam harmonizar-se com os donos do mundo; conseguiram manter “seu” povo admiravelmente manietado, pela escravidão, pelo genocídio, pela ignorância, pela superstição já que a terra lhes foi compensatóriamente tão generosa, que raros foram os Palmares e os Canudos e os Caldeirões em que criaram, embora efêmeras, suas pátrias de eleição possível.

É nesse contexto que cada um “assume” o “seu” lugar. E estes compõem a maioria. Essa maioria, porém, não se dá conta de que essa “ordem”, esse “cada-um-tem-o-seu-lugar” engendra a verdadeira violência simbólica (Bourdieu; tb Katz e Kahn) da ordem social, bem para além de todas as correlações de forças que não são mais do que a sua configuração movente e indiferente na consciência moral e política.

O sistema cultural engendra exatamente um imaginário no qual, principalmente através dos meios de comunicação de massa, faz-se uma amálgama do que não é amalgamável. Por isso, por exemplo, é possível — e observe-se a relevância dessa questão no plano simbólico — que o país mantenha impunemente um apartheid em elevadores sociais e de serviço, o que legitima o preconceito social!

Não causa espanto, assim, em nossa “pós-modernidade” midiática, que, a exemplo de tantas pessoas, uma famosa atriz e modelo da Rede Globo justifique o apartheid nos elevadores de forma bastante solene: “As coisas estão tão misturadas, confusas, na sociedade moderna. Algumas coisas, da tradição, devem ser preservadas. É importante haver hierarquia”. Já uma promoter [3] paulista assídua frequentadora das colunas sociais, não “nos deixa esquecer” que “… cada um deve ter o seu espaço. Não é uma questão de discriminação, mas de respeito”. Ou seja, para elas — e para quantos mais (!?) — a patuleia deve (continuar a) “saber-o-seu-lugar”… [4]

Discursos deste quilate não podem (e não devem) nos surpreender, até porque nada mais são do que reproduções do que ocorre cotidianamente ao nosso redor, reforçados pelos estereótipos produzidos pela mídia em larga escala. Daí que, usando como pano de fundo essa discussão, Contardo Calegaris[5] procura explicar a atitude e o discurso das classes médias e médio-superiores brasileiras acerca desta problemática:

“No Brasil, talvez por ele ter sido e talvez por ser ainda o maior sistema escravagista do mundo ocidental, a modernização aconteceu pela metade. (…) As classes médias brasileiras não abriram as portas do poder sobre as coisas para metade da população do país. (…) Foi por tradição ou por gosto atávico escravocrata”.

Por isso, diz Callegaris, tanta violência no Brasil: o ladrão brasileiro não está só pedindo posse de mais coisas. Quer mais! Quer os corpos…![6] São eles que (os corpos) “é bom possuir”. E (de forma irônica) Callegaris acrescenta: “a violência (na sociedade) já reverte se os elevadores de serviço forem suprimidos”.

A “aceitação” da exclusão social é cotidianamente reforçada/justificada pelos meios de comunicação. Veja-se, a propósito — e a crítica foi magnificamente feita pelo jornalista Vinícius Torres Freire em matéria intitulada “Carro grande e senzala” —,[7] comercial veiculado em rede nacional de televisão, para lançamento de um certo automóvel “classe A”, onde um casal branco e bem vestido escorrega pelo piso ensaboado de uma garagem, em direção ao carro apregoado. Três faxineiros, morenos e miúdos como quase todo o povo, fazem pilhéria dos ricos à beira do tombo. Mas o casal classe “A” chega ao carro “A” e sai zunindo da garagem escorregadia — o carro é estável, é o que se vende. Os faxineiros ficam para trás com cara de besta. Um deles escorrega e cai feito um pateta. Em outro anúncio, novamente aparece a dualidade “elite branca e elegante” versus “plebe rude e ignara”: desta vez um engravatado regateia com um mendigo flanelinha a lavagem do mesmo carro “classe A”. Condescende com riso senhorial da esperteza do pedinte, que quer “dez real”, pois o carro aquele é grande por dentro. Como bem complementa Torres Freire, os aludidos anúncios reproduzem um clichê clássico do imaginário subdesenvolvido, onde os pobres são espertos, sensuais e marotos…:

“O Brasil jamais foi uma república de fato, ex-escravos continuaram pobres, pobres não têm direitos e são demais. O comercial de carro ‘A’ não os fará mais pobres, mas a naturalidade inconsciente com que mofa da patuleia é um sintoma. ‘Os nativos estão inquietos’, eles assaltam, mas são uma classe de gente diferente, que ficou para trás naturalmente, ridícula como um escravo ou um primitivo pateta”.

Outro exemplo interessante é de um anúncio publicitário (premiado) que conseguiu transformar a exploração em “glamour” (ou consegue “justificar” a (semi)escravidão dos “velhos e bons tempos”). O cenário era uma antiga fazenda de café. Os personagens são dois recém-casados, que, ao acordarem, se encaminham ao café da manhã. Entrementes, a câmera mostra os empregados da Fazenda se encaminhando para a plantação, com ferramentas rudimentares (típicas “daqueles (bons) tempos”). Enquanto os campesinos se afastam, o casal senta-se à mesa, ornada com toalha rendada e com xícaras de fino porcelanato comprado em Aveiro. A cena culminante é o café sendo servido, fumegante, denso, saboroso (quase “ontológico”)… e uma voz em off anunciando: Café Pindorama Casagrande [8]: a volta dos bons tempos! Ou “Os bons Tempos estão de volta”. Faltou apenas uma frase: bons tempos para quem, cara pálida?

Tudo isto se encaixa, pois, em uma espécie de razão cínica brasileira. Invertendo a famosa frase de Marx dita em o Capital: “Sie wissen das nicht, aber sie tun es”, que significa “disso eles não sabem, mas o fazem”, Peter Sloterdijk nos ajuda a explicar a fórmula dessa razão cínica traduzida no comportamento de nossas classes dirigentes: “eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo”.[9] Nossas classes dirigentes e o establishment jurídico sabem o que está ocorrendo, mas continuam a fazer as mesmas coisas que historicamente vêm fazendo. Não nos damos conta das questões mais prosaicas que nos rodeiam e que permeiam o nosso imaginário”. Tinha mais coisas. Escritas até antes de 20 anos. Mas, deixa prá lá. Não quero cansar os leitores que não gostam de ler textos longos. Sinais da “pós-modernidade” (aliás, para saber o que é pós-modernidade, assistam esse filme de um minuto — vejam o que é “o outro”).

Pronto. Tenho que acrescentar algo 20 anos depois? Eis a explicação para o episódio em que o advogado de São Paulo foi algemado no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) por ter “entrado por engano” no elevador que não era de sua “laia”. Ele não sabia o seu lugar. Chamemos a atriz e a promoter paulista.

Post Scriptum : muitos dizem que sou profeta do Direito. Calvo Gonzales diz que acertei que o realismo jurídico tomaria conta do Brasil (ler aqui). Pois também acertei a questão dos precedentes… e até a coisa dos elevadores. Do apartheid de elevadores. Sociais. De serviço. Privativos. Não privativos. Eu falei que isso não teria fim. Bingo.

E eu não poderia deixar de me manifestar sobre o episódio do TRT-2. É um dever cívico.

Enfim, Millor estava certo: o Brasil tem um imenso passado pelo frente!

1 A primeira vez que escrevi sobre os elevadores foi logo após a eleição de Erundina. Ela se elegeu em 1989. Depois disso, transportei isso para o Hermenêutica Juridica e(m( Crise. Também está no Tribunal do Júri, Símbolos e Rituais (esgotado de há muito). Como o Hermenêutica tem mais de 11 edições e reimpressões, fui agregando novos elementos. Mas o cerne é a questão do apartheid social (e profissional) Podem ver que o comentário do Callegaris é de exatos 20 anos atrás.
2 Exemplo disso é a “PEC das domésticas” que causa um mal-estar pela quebra das expectativas e da violação do arquétipo. Algo não estaria no lugar. No lugar de sempre. No lugar-comum. Ou seja, alguém, a partir da PEC, poderá “não mais saber o seu lugar”…! Ver: ”A PEC das Domésticas e a saudade dos "bons tempos, op. cit. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-abr-11/senso-incomum-pec-domesticas-saudade-bons-tempos.
3 Promoters são as pessoas que fazem festas para as elites cheirosas que só usam perfumes oxítonos. A palavra deve ser pronunciada com afetação e uma dose de frescura. O segundo “o” deve ser dito fazendo ar de bocó: “ôôter”.
4 Cf.”A PEC das Domésticas e a saudade dos "bons tempos". Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-abr-11/senso-incomum-pec-domesticas-saudade-bons-tempos.
5 Cf. Calegaris, Contardo. A praga escravagista brasileira. In: Folha de São Paulo, Caderno Mais, p. 5. 22.09.1996.
6 Para se ter uma ideia, o tráfico de entorpecentes no Brasil emprega mais que a Petrobras. Somente no Rio de Janeiro, o tráfico emprega 16.000 pessoas, arrecadando 400 milhões de dólares/ano (que é o que arrecada o setor têxtil no Rio de Janeiro). Cf. Folha de São Paulo de 28 nov 2010, Caderno C, p.4.
7 Cfe. Freire, Vinícius Torres. “Carro grande e senzala”. In: Folha de São Paulo. 17.01.2000.
8 Preservo o nome original do café.
9 Ver, para isso, Sloterdijk, Peter. Kritik der zynischen Vernunft. Frankfurt, 1983. 

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