Ideias do Milênio

"Há uma sensação global de que o presente não faz sentido e é insuportável"

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14 de novembro de 2016, 10h15

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Mark Lilla [Reprodução]Entrevista concedida por Mark Lilla ao jornalista Jorge Pontual, para o programa Milênio — um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

O que têm em comum Donald Trump, os fundamentalistas cristãos, uma parte da esquerda e o Estado Islâmico? É a política da nostalgia. É tentar voltar a um passado mítico ou até um futuro mítico, uma reação à modernidade, uma reação ao presente. O cientista político Mark Lilla, que escreveu um livro sobre isso chamado The Shipwrecked Mind, a mente naufragada, que é justamente como essas pessoas pensam.

A entrevista foi concedida antes do fim das eleições americanas, que na última quarta-feira (9/11) elegeu o republicano Donald John Trump para presidente dos Estados Unidos. A vitória de Trump deve trazer grandes transformações jurídicas. Os republicanos garantiram ao presidente eleito maioria no Senado e na Câmara dos Deputados e as condições para, a médio e longo prazo, exercer um controle decisivo sobre o Judiciário.

Jorge Pontual — O que é a mente naufragada?
Mark Lilla — Vem de uma metáfora muito antiga sobre o tempo: a de que o tempo é um rio e a noção de que o tempo nos leva e nós não o controlamos. Eu estava buscando uma metáfora que refletisse os pensadores e o pensamento que imaginam que, de alguma forma, houve um desastre no tempo, uma ruptura na história. Aconteceu uma crise que os deixou nas margens enquanto o tempo continuou passando. E eles acham que não fazem mais parte do que acontece. E essa mentalidade está moldando grande parte de nossa política: uma sensação de deslocamento, de deslocamento histórico acrescentando a outros tipos de deslocamento: econômico, político e cultural. Mas o que mais me interessa é o fato de que grande parte de nossa política é informada pela sensação de que algo deu muito errado no tempo.

Jorge Pontual — Qual é a diferença entre esses reacionários e os conservadores?
Mark Lilla — Os conservadores encaram a história de forma muito distinta. Um conservador acha importante pensar na história da política, não só em princípios. O conservador clássico acha que a história e a sociedade têm prioridade sobre o indivíduo. Para um liberal, indivíduos têm direitos que prevalecem sobre a tradição ou as reivindicações da sociedade, e essas reivindicações são limitadas por nossos direitos. Os conservadores acreditam no oposto. Para eles, nós nascemos na sociedade, nascemos numa determinada época, somos moldados por isso e nossos deveres para com a sociedade prevalecem sobre nossos direitos. Quando nos identificamos com isso, entendemos que somos responsáveis pelo futuro. E para o conservador é importante manter uma continuidade história, o que significa não haver uma ruptura radical, mas também reconhecer que as coisas sempre mudam e que devem mudar. Então um conservador é mais flexível que um reacionário e às vezes até mais flexível que um liberal.

Jorge Pontual — Qual é a diferença entre o revolucionário e o reacionário?
Mark Lilla — Pode-se dizer que os reacionários podem ser revolucionários no sentido de que ou querem voltar a um passado idealizado ou criar um futuro igual ao passado. Mas a definição de “revolucionário” desde a Revolução Francesa é a de que ele é movido pela esperança, que acredita que o futuro vai ser melhor do que o presente e que ainda não nos tornamos o que devemos ser. Portanto um revolucionário utópico acredita que a natureza humana ainda não floresceu da forma necessária e só se o arranjo social mudasse nós nos descobriríamos iluminados, gentis, harmoniosos, talentosos. Enquanto que o reacionário acredita que não somos mais o que somos. Portanto, eles são gêmeos no sentido de que não acham que somos o que somos no presente, que nossa natureza se mostra no presente. Ou eles acreditam que nossa verdadeira natureza aparecerá no futuro ou que apareceu no passado. Para ambos, ou temos que ir ao futuro ou ao passado para recuperar completamente nossa humanidade.

Jorge Pontual — E quanto ao que aconteceu em certas correntes da esquerda? Não na esquerda como um todo, mas algumas correntes se tornaram reacionárias no sentido de querer voltar a um ideal de futuro, ou de revolução, que é mítico.
Mark Lilla — Estamos exatamente neste momento. Eu passei o verão europeu em Paris, e era o 80º aniversário, se estou calculando direito, da Frente Popular. E as livrarias francesas estavam cheias de livros nostálgicos sobre a greve geral, sobre Léon Blum, sobre o início da Guerra Civil Espanhola, havia filmes… Eu assisti a uma série de filmes sobre a Frente Popular e filmes que a Frente Popular fez. Como era Paris, é claro que depois do primeiro filme havia champanhe e caviar. A esquerda caviar. Mas, falando sério, em todos os lugares aonde eu ia — e havia exposições nos museus — havia uma nostalgia de uma época de esperança. Mas o que sempre aparece na esquerda e é seu calcanhar de aquiles é o gosto pela derrota. Na esquerda, derrotas nobres contam muito mais do que vitórias, na minha experiência. E o que foi interessante nesse verão foi que eu também vi esse tipo de pensamento nas ruas. No verão passado houve várias manifestações contra a recente lei trabalhista, que fez mudanças minúsculas na flexibilidade permitida a certas indústrias, nas horas de trabalho, etc. E a reação a ela entre os sindicatos radicais foi histérica. Houve manifestações em toda a França e, em Paris, elas se tornaram muito violentas. Eu me vi, em uma delas, entre a polícia e os manifestantes. Fui atingido por gás lacrimogênio pela primeira vez na vida, e vi que, ao longo de toda Boulevard Saint-Germain, as vitrines de todas as lojas tinham sido quebradas e estavam saqueando tudo. E, no meio da agitação, os manifestantes também atacaram o hospital pediátrico. Eles quebraram os vidros e o mármore da fachada. Então eu fiquei impressionado com a fúria das pessoas, mas também com a incapacidade dos líderes do movimento de entender a realidade econômica atual. Não era que eles não estavam sendo ouvidos ao expor seu plano para lidar com o fato de que vivemos numa economia globalizada e que tudo avança muito rápido, eles não têm um plano. Além de não terem um plano, sequer pensaram em como lidar com isso. Eles simplesmente querem dizer não ao presente. E sobrevivem vivendo essa nostalgia da esquerda em si. Não é uma nostalgia de algum sucesso, mas de uma esquerda que reunia as pessoas. Havia algo de comovente e de lamentável nisso.

Jorge Pontual — Vamos falar dos Estados Unidos. Aqui há essa ideia de que os anos 1960 destruíram o que era a sociedade americana. E Donald Trump diz que vai tornar o país grande de novo, ou seja, vamos fazer o país voltar aos anos 1950, à América branca, para antes dos anos 1960, quando tudo mudou. O que está havendo?
Mark Lilla — Trump, ao contrário de outros reacionários que defendem o quadro dos anos 1950 ou até da Idade Média… Há conservadores religiosos nos EUA que acham que tudo deu errado depois de São Tomás de Aquino. Mas Trump é vago, ele é como um outdoor vazio. Isso significa que quem ouve esse chamamento pode colocar no outdoor qualquer que seja sua nostalgia. Pode ser a família nuclear intacta, que o próprio Trump não representa. Pode ser uma época em que os trabalhadores tinham empregos estáveis, o que também não é a vida de Trump. As pessoas projetam coisas que não têm nada a ver com Trump e com seu estilo de vida. Ele tem uma vida pós-1968 em sua vida pessoal. E sua vida econômica é pós-Thatcher e pós-Reagan. Mas ao simplesmente escolher essa frase, ele fez algo despertar na mente das pessoas. O que mais me chama a atenção nele é o vazio da mensagem e como esse vazio é mais claro do que a mensagem de quem tenta preencher a lacuna.

Jorge Pontual — Mas muita gente vai votar nele por sentir que foi deixada na margem do rio da história, ou do tempo, pela globalização e pela modernidade. O que essas pessoas estão pensando?
Mark Lilla — A primeira pergunta é se elas estão pensando. E essa é uma pergunta séria. Eu notei que há duas escolas de interpretação sobre o fenômeno Trump e o populismo em geral. Uma escola de pensamento diz que essas pessoas que se sentem atraídas por figuras populistas enxergam sua situação claramente e estão reagindo à nova realidade em suas vidas e, por isso, sua reação é uma tentativa de achar uma forma de enfrentar a realidade que enfrentam. A outra escola de pensamento, com a qual me identifico mais, diz que não, o que estamos vendo são pessoas desligadas da política que, com o colapso do sistema partidário, não encontram mais um partido que as represente ou que diga a elas qual é a situação e simplesmente têm uma espécie de fúria cega e de frustração com suas vidas e, para que isso seja explicado a elas, basta que liguem a TV, e os comentaristas dizem a elas o que pensar. E elas simplesmente repetem. Essa circularidade me chama a atenção. As pessoas ouvem no noticiário que tem gente que vai votar em Trump por estar vivendo esse tipo de vida e acabam dizendo exatamente isso. E me chama ainda mais a atenção a ignorância política dessas pessoas e, quando os partidos estão funcionando, isso força uma maturidade por parte do cidadão, mas essas pessoas também abdicaram de sua responsabilidade como cidadãos, porque Trump não atrai apenas homens brancos que não trabalham mais nas minas de carvão. Ele também atrai homens que trabalham em cubículos em escritórios imensos de subúrbios e ganham um salário decente. E temos que entender que ele cativa esses dois perfis. E me impressiona o fato de essas pessoas não saberem pensar em política, de terem se desligado e não se sentirem responsáveis.

Jorge Pontual — No seu livro você menciona um outro fenômeno nos EUA, os “teoconservadores”. O que é isso?
Mark Lilla — É um desdobramento muito americano. E é complicado de explicar. Seus telespectadores devem estar familiarizados com o evangelicalismo nos EUA. Acontece no Brasil também. Claro, o pentecostalismo é muito forte na América Latina. Parte disso foi uma reação aos anos 1960 e parte foi uma resposta para várias coisas, como a busca por significado, mas também atraiu aquelas pessoas para quem a sociedade tradicional estava desaparecendo. Nos Estados Unidos, a certa altura, os católicos tradicionais uniram forças com os movimentos evangélicos e uniram suas forças politicamente. Eles têm uma revista chamada First Things, têm muitos laboratórios de ideais e fundações e têm muito poder em Washington. Mas os maiores pensadores não são os evangélicos protestantes, são os católicos, então você vê vários pensadores católicos mais jovens que estão tentando achar a ruptura histórica não nos anos 1960, não na Revolução Francesa, nem mesmo na Reforma Protestante. Eles acham que houve uma mudança na teologia católica entre os séculos 11 e 13, existe essa busca pelo momento no qual a relação humana com os cosmos e com Deus mudou. E algo nisso levou o ser humano a pensar que ele poderia viver e controlar o mundo sozinho. E tudo que aconteceu desde então é consequência disso. Isso soa como um movimento intelectual menor e periférico, mas teve um efeito nas universidades. Mas eu incluí essa história no livro principalmente para mostrar que há afinidades eletivas em ação aqui. Quando a mente reacionária fica insatisfeita, ela procura essa ruptura em qualquer lugar, e o livro começa com um pensador judeu, Franz Rosenzweig, um filósofo, que estava prestes a se converter ao protestantismo depois da Primeira Guerra Mundial, mas depois da guerra decidiu se tornar judeu novamente. Ele começou a procurar um judaísmo para o futuro e inventou um judaísmo imaginário. E ele voltou até as fontes originais. Começou a retraduzir a Bíblia com Martin Buber. E eu usei a palavra “mente” no título do livro porque tentei explicar uma mentalidade para ajudar o leitor a reconhece-la e ver que esse tipo de mente pode se agarrar a todo tipo de coisa em diferentes eras do passado e usar isso para atingir objetivos políticos no presente.

Jorge Pontual — Os jihadistas fazem o mesmo, certo?
Mark Lilla — Sim, os jihadistas fazem exatamente o mesmo tipo de coisa. Ao contrário de Trump, eles têm uma ideia precisa de como foi o passado. Os mais radicais acreditam que o mundo islâmico deixou de ser islâmico depois dos quatro califas bem guiados. Então o verdadeiro Islã só teria existido por meio século. Depois ele se corrompeu quando virou um império, portanto os jihadistas mais radicais acham que, de alguma forma, vão voltar ao século 8 ou 9. Eles são as pessoas mais radicais do meu livro e as mais precisas. E o que chama a atenção aí é uma nostalgia de um tempo tão antigo, uma era sobre a qual nada sabemos, porque a sociedade não era alfabetizada, e que algo assim possa inflamar a mente de jovens, não só muçulmanos, porque há não muçulmanos que responderam ao chamado do Isis e foram para a Síria ou estão atacando seus próprios países. Até uma ideia tão estranha está inflamando a mente de pessoas que estão convencidas de que é impossível viver no presente.

Jorge Pontual — Por que todas essas ideias reacionárias estão surgindo ao mesmo tempo no mundo todo?
Mark Lilla — Essa sensação de deslocamento, de se estar deslocado no presente, se tornou um fenômeno universal. Todo dia nós acordamos, ligamos nosso computador e vemos na internet que o mundo não é mais como era ontem. Houve uma aceleração nas mudanças em todo o mundo: nossas famílias mudaram, nossa noção de sexualidade mudou, nossa noção de possibilidade humana mudou, nossa familiaridade com o resto do mundo mudou. Uma das coisas que também estimulam o islamismo político e a imigração ao mesmo tempo é que pessoas nos quatro cantos do mundo veem o que é viver em países ocidentais. Têm amigos e parentes que pegam o celular, filmam e mostram como vivem. Então, num período de mudança como este, há uma sensação global de deslocamento e de que o presente não faz sentido e é insuportável. É por isso que eu não vou ficar surpreso se essas tendências reacionárias piorarem nos próximos anos.

Jorge Pontual — Eu vou ler um trecho do livro: “a ironia pode ser definida como a capacidade de negociar a distância entre o real e o ideal sem fazer violência contra um ou outro. O que quer dizer quando define a ironia assim?
Mark Lilla — A ironia pode ser usada em seu sentido mais comum, de ironia cômica, mas a acepção original da palavra é uma certa distância do presente e uma capacidade de duas ideias contraditórias conviverem na mesma pessoa. Se você fala na ironia da história, não é que a história deu errado, mas que ela deu certo e deu errado, que os seres humanos têm ambições e fracassam, e a ironia é a capacidade de lidar com esses dois extremos. E é a perda da ironia nesse sentido que é capaz de deixar as pessoas suscetíveis tanto a esperanças revolucionárias irrealistas como ao desespero nostálgico irrealista. Então, se achamos que o presente não corresponde a um ideal que temos, a solução não é fazer o mundo encaixar nesse ideal nem abandonar o ideal, mas se agarrar a ele, reconhecer por que é difícil alcança-lo e se agarrar a um sentido realista do real sem perder a noção de como gostaríamos que as coisas fossem. É uma maturidade, e eu associo essa maturidade ao liberalismo. O liberalismo é, em resumo, uma maturidade política que revolucionários e reacionários não têm. E a ironia não é inspiradora. Os outros dois podem inspirar. A ironia é construída aos poucos sem que você perceba, mas, quando ela não existe, você sofre, e é neste momento que estamos.

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