Embargos Culturais

Rapé falsificado e a identificação de culpados nos crimes industriais

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

13 de novembro de 2016, 7h00

Spacca
Em 1873 a polícia de Salvador, em diligência, apreendeu nas dependências de uma empresa daquela cidade cerca de 2.300 caixas de rapé. O material era falsificado, e a discussão em torno dessa adulteração, que teve à frente Rui Barbosa, revela-se como um dos primeiros casos nos quais se discutiu propriedade industrial no Brasil. Ainda que o caso seja simples, os fundamentos da argumentação de Rui Barbosa são atuais e confirmam os males e prejuízos que a contrafação suscita no comércio em particular e na vida econômica em geral. Começo explicando o que se falsificou.

O rapé, hoje praticamente desconhecido, consistia no tabaco em pó, que era inalado, provocando espirros e outras reações, que variavam entre aqueles que o usavam. Era um vício de alguns setores da sociedade brasileira da virada do século XIX para o século XX. O rapé era por alguns tido por glamoroso, ainda que por muitos já percebido como um malefício. Machado de Assis, numa comédia de costumes, o Bote de Rapé, por intermédio de um personagem, Tomé, nos explica no que consistia o uso dessa substância, inegavelmente psicotrópica e nociva, como se infere da explicação:

O vício do rapé é vício circunspeto. Indica desde logo um homem de razão; Tem entrada no paço, e reina no salão. Governa a sacristia e penetra na igreja. Uma boa pitada, as ideias areja; Dissipa o mau humor. Quantas vezes estou capaz de pôr abaixo a casa toda! Vou ao meu santo rapé; abro a boceta, e tiro uma grossa pitada e sem demora a aspiro; com o lenço sacudo algum resto de pó e ganho só com isso a mansidão de Jô”[1].

O material apreendido pela polícia era uma falsificação nada grosseira da então conhecida marca Meuron e Cia. Neste episódio, falsificada fora a estampa, falsificados foram os avisos, a firma, a embalagem, e o próprio rapé. O comprador seria iludido, porquanto o material não deixava dúvidas: era muito parecido com o próprio rapé Areia Preta, fabricado pela Meuron e Cia!

Os fabricantes imediatamente anunciaram nos jornais que uma partida da contrafação fora apreendida, avisando ao público, em 23 de maio de 1874, que a empresa fora vítima de uma fraude industrial. Fora assim o público avisado que existia espalhado pelo mercado uma grande quantidade de botes de rapé falsificados. Os fabricantes advertiam que as caixas apreendidas eram reconhecidas por uma gravação imperfeita, por uma impressão um pouco embaçada e por uma “número de sinais que um exame atento e minucioso põe em relevo”. O material era, de fato, um falsificação.

Os proprietários da empresa na qual o material fora apreendido contra atacaram pela imprensa, e aforaram ação reclamando perdas e danos, invocando que o material era “parecido” e não “falsificado”. A empresa prejudicada contratou Rui Barbosa, então um jovem advogado, mas já provido de argumentação obsessiva, na qual transbordavam cultura e erudição. Rui também revidou pelos jornais indagando quem eram os verdadeiros lesados. A identificação do conjunto de prejudicados é que me parece original, nesse contexto, e nesse tipo de discussão. Para Rui, a empresa Meuron sofrera com a diminuição dos rendimentos, de seu crédito e de sua imagem. A empresa havia registrado uma queda de 25% de suas vendas.

Porém, insistia Rui, e talvez aqui a inovação, todos os compradores de rapé eram lesados, porque compravam uma mercadoria falsificada. Mais. Todos os fregueses da Meuron eram prejudicados, porque adquiriam um produto que não correspondia àquele que consumiam com frequência. Rui percebia um abrangência subjetivamente difusa no resultado da falsificação, justamente porque, também argumentou, consumidores e comércio em geral são os grandes molestados com as falsificações.

Para Rui, em linguagem contundente, a empresa prejudicada “(…) teve a infelicidade de merecer, pela sua reputação, a preferência dos falsificadores, por um delito que fica subsistindo, visto a tendência que tem a suscitar imitadores, como permanente ameaça para o comércio todo para toda a indústria deste país”[2]. Rui também observou que “calculada unicamente para enganar ao comprador incauto, essa usurpação, considerada através de vidros aumentativos, não deixa a menor sombra de dúvida quanto à realidade do crime”[3].

Rui argumentava que a falsidade é um crime público. A fraude mercantil, no entanto, exigia provas custosas “de apanhar, de fixar, de reunir”; naquele tempo, reclamou Rui, “a polícia, em nossa terra, ainda não tem, infelizmente, nem os agentes sagacíssimos, nem os recursos especiais que demandam essa complicadas e melindrosas pesquisas”[4]. Rui concluía a peroração enfatizando que, no caso da fraude contra a propriedade industrial, “(…) é o comércio também ofendido e ameaçado, é o público inteiro também ludibriado pela fraude”[5].

Ao contrário do que a intuição ligeira e a ingenuidade sugerem, e essa a lição de Rui, o crime contra a propriedade industrial tem como prejudicado não só o titular da marca falsificada. Esse crime afeta o consumidor específico, o consumidor em geral, as relações comerciais, sem contarmos os efeitos perversos da concorrência desleal, da sonegação fiscal e da mitigação de direitos trabalhistas.

Essa notícia histórica resgata passagem de Rui Barbosa, cuja obra como comercialista está à espera de estudos e discussões. Há muito o que averiguar. Conceitualmente, a autoridade de um grande jurisconsulto, que identificou natureza transindividual e coletiva em crime que exige energia no combate, porque prejudica a todos nós, e cada vez mais.

[1] MACHADO DE ASSIS, Obra Completa, Volume 3, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004, pp. 980-981.
[2] BARBOSA, Rui, Obras Completas, vol. II, Tomo I, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, p. 30.
[3] BARBOSA, Rui, cit., loc. cit.
[4] BARBOSA, Rui, cit., p. 42.
[5] BARBOSA, Rui, cit., p. 121. 

Autores

  • Brave

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela UnB e pela Boston University. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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