Ideias do Milênio

"Resultado dos investimentos na guerra contra o câncer é positivo"

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12 de novembro de 2016, 8h41

ACSmedia
Dr. Vincent DeVita [ACSmedia]Entrevista concedida por Vincent DeVita ao jornalista Luis Fernando Silva Pinto, para o programa Milênio — um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

Ele é um velho combatente. Há muitas décadas trava batalhas com um grande inimigo: o câncer. Esteve em ataque desenvolvendo tratamentos inovadores, depois conseguiu vitórias dirigindo o maior instituto de câncer dos Estados Unidos, mas quase foi derrotado quando o próprio corpo dele foi alvo de um tumor. Ele saiu ferido, mas vivo. E agora, ataca de novo com um livro chamado A Morte do Câncer. Aos 81 anos de idade ele prova que a palavra é tão ou mais poderosa do que o bisturi. O doutor Vincent DeVita, hoje professor emérito aqui na Universidade de Yale, é um homem de lucidez rara, de experiência rara, que nos deu uma entrevista sem o menor traço de convencimento que ele facilmente poderia ter como um dos nomes mais respeitados da medicina mundial. E ele falou com sinceridade dos episódios mais difíceis da vida dele.

No Brasil, segundo o Instituto Nacional do Câncer, a maior incidência de casos entre homens ainda é de câncer de próstata. Em 2016, foram registrados mais de 61 mil pacientes em todo o país, isso equivale a 7 novos casos a cada hora. Campanhas como Novembro Azul focam na saúde masculina e alertam para a importância de exames que identifiquem o câncer em seu estágio inicial.

Luis Fernando Silva Pinto — O senhor disse em seu livro que a guerra contra o câncer custou por volta de US$ 100 bilhões. Muita gente diria que o resultado não foi tão bom, mas o senhor defende que o resultado na verdade foi muito positivo, superou mil vezes o valor do investimento. Pode explicar essa equação?
Vincent DeVita — Claro. Quando começamos… O texto da legislação dizia que a guerra contra o câncer deveria fomentar a pesquisa e aplicar os resultados das pesquisas na redução de incidência, mortalidade e morbidade do câncer. Esse era o texto da lei, era isso que os US$ 100 bilhões deveriam fazer.

Luis Fernando Silva Pinto — Isso por volta de 1975.
Vincent DeVita — 1971. Pelos dados que tínhamos antes da lei, em 1968, a taxa de sobrevivência relativa nos EUA era de 38%. Hoje é de 70%. As taxas de mortalidade estavam crescendo e hoje nossa taxa de mortalidade caiu 26%. A taxa de mortalidade de câncer colorretal caiu 48%, a de câncer de mama caiu 26%. Dois terços do dinheiro foram investidos em pesquisas e reduzimos a incidência de alguns tipos, como o câncer colorretal. A morbidade… Quer falar sobre câncer de mama? Logo que a lei foi aprovada, mastectomia radical, radioterapia pós-operatória, braço inchado e taxa de sobrevida com nódulos positivos até 10 anos era de 13%. Hoje nós combinamos lumpectomia e radioterapia em vez da mastectomia e quimioterapia adjuvante e a mortalidade está caindo.

Luis Fernando Silva Pinto — O senhor diz que os benefícios para a sociedade superaram mil vezes o dinheiro investido. Como chegou a esse cálculo?
Vincent DeVita — Dois economistas da Universidade de Chicago, chamados Topel e Murphy, estavam estudando o impacto dos benefícios da saúde sobre a mão de obra entre todas as doenças, não só o câncer, e chegaram a números interessantes. Eles estimaram que a redução da mortalidade por doenças cardíacas nos EUA rendeu cerca de US$ 30 trilhões para a economia. Quando chegaram ao câncer, calcularam que cada 20% de redução da mortalidade por câncer valem cerca de US$ 10 trilhões.

Luis Fernando Silva Pinto — Dez trilhões?
Vincent DeVita — Se fizermos a conta, reduzimos US$ 10 trilhões em mortalidade. Gastamos um pouco mais de US$ 100 bilhões e, se Murphy e Topel estiverem certos, e ninguém está discutindo com eles, parece que seus cálculos são razoáveis, tivemos um retorno de US$ 10 trilhões no investimento. Se alguma ação render isso, me avise que vou comprá-la.

Luis Fernando Silva Pinto — Existe alguma outra célula no corpo que seja tão adaptável, que seja tão "inteligente" nos passos que seguem?
Vincent DeVita — Sim. Quando o óvulo fertilizado se torna um blastocisto, que é uma bola de células, e se torna um embrião é algo fenomenal. Bilhões de divisões celulares acontecem e as células têm de se selecionar. Genes de seleção são ativados e selecionam as células que se tornarão um rim, um neurônio. O que a célula cancerosa tenta fazer é recapitular a biologia do desenvolvimento. A célula tem a capacidade de fazer isso, pois tinha quando era um óvulo fertilizado. Quando crescemos e nos tornamos um organismo multicelular, ela perde essa capacidade. A célula cancerosa torna a fazer o que as células fazem quando somos embriões, ela tenta recapitular a biologia normal. Há tumores chamados teratomas que têm cabelos e dentes. Então, de vez em quando, o câncer chega ao ponto de fazer até cabelos e dentes. A maioria não faz isso, mas as células cancerosas dizem: “Sou um embrião e posso crescer de forma ilimitada.” E quando faz isso atrapalha as funções normais dos órgãos.

Luis Fernando Silva Pinto — Décadas atrás, quando o Dr. DeVita começou a carreira, essa lógica não existia. Nada disso se sabia, pelo menos não em detalhes. Mas ele foi um dos iniciadores das revoluções no tratamento do câncer. Quando vocês começaram, décadas atrás, a noção de combinar quimioterapia era execrada por muitos médicos, principalmente porque vocês falavam de substâncias muito tóxicas, mas vocês insistiram com o consentimento dos pacientes.
Vincent DeVita — Sem dúvida. Queríamos tentar algo arriscado, mas era uma tentativa de curá-los. Não queríamos que só se sentissem melhor. Todos os pacientes tinham ouvido que morreriam de câncer, então eles nos procuraram. Nós éramos jovens e foi incrível a forma como eles confiaram em nós. Eles são os verdadeiros heróis, pois aceitaram participar de algo que muita gente achava uma loucura, diziam que era errado, que os medicamentos já eram tóxicos um de cada vez e que juntá-los era uma loucura completa. Estas palavras foram usadas: “loucura”, “maluquice”. O meu mentor foi chamado de louco por metade dos médicos do país. No início dos anos 1990 houve um esforço conjunto em relação a algo completamente diferente, que foi o HIV. Para ajudar na regulamentação, para acelerar processos e tudo mais, por que não fazer isso com o câncer? Já tínhamos feito com o câncer, falo sobre isso no livro. Desenvolvemos a classificação que chamamos de grupo C, na qual um médico. No Instituto do Câncer, se percebêssemos uma droga agindo nos primeiros testes, ela ia para o grupo C. Se ela estivesse no grupo C, o médico podia dizer: “Meu paciente precisa disso”, e o Instituto a disponibilizava. Fizemos isso com 20 ou 30 medicamentos. A FDA detestou. Foi uma luta conseguir aprovação, porque ela não gostou, e na primeira chance ela proibiu isso. Aí surgiu o HIV e eles desenvolveram o tratamento, mas o HIV é uma doença e eles estavam lidando com poucos medicamentos. Nós tínhamos centenas de doenças e muitas drogas diferentes. A regulamentação matou o acesso compassivo a medicamentos contra o câncer, e meu argumento com a FDA sempre foi que os pacientes de câncer são diferentes e devem ser tratados de forma diferente. Se você desenvolve uma droga para pressão alta que o paciente tomará a vida toda, ele não pode ter efeitos colaterais. Se é uma droga contra uma doença que pode matar o paciente em seis meses, é diferente, mas eles não reconhecem isso.

Luis Fernando Silva Pinto — Ou seja, a toxicidade do medicamento tem de ser levada em consideração.
Vincent DeVita — Sim, assim como a toxicidade de não se tratar um paciente. A maior toxicidade de não tratar um doente de câncer é a morte. Pergunte ao paciente se ele prefere correr o risco de ser tratado com um medicamento novo e promissor ou prefere morrer? Acho que sei a resposta da maioria dos pacientes.

Luis Fernando Silva Pinto — A ideia de cura para o câncer é sedutora. Mas, o que é cura para o câncer? O senhor define “cura” de uma forma interessante no livro. Não é a ausência da doença. Como define a cura?
Vincent DeVita — A cura difere de câncer para câncer. Logo percebemos que, se levássemos um paciente de linfoma de Hodgkin à remissão completa, se a doença não voltasse em 4 anos, quase nunca mais voltava. Só vi duas ou três pessoas com recaídas tardias, mas, na maioria das vezes, se isso não acontece em 4 anos, a chance de recaída é tão remota que dizemos ao paciente que ele está curado. O câncer de mama é um pouco diferente. É preciso esperar uns cinco anos, após uma terapia adjuvante, para saber se vai voltar. Já o linfoma não Hodgkin de células B… Publicamos um artigo recentemente na Itália sobre isso: a curva de sobrevivência é assim, ou seja, tudo acontece nos dois primeiros anos. Se o paciente chega à remissão e não há recaída em dois anos, ele está curado. Depende da rapidez do crescimento do tumor, mas o que quero dizer quando digo “curado” é que a probabilidade de recorrência ou de morte é inferior a 10%. Acho que não se deve negar aos pacientes o direito de viver sem câncer, e você explica isso a eles, diz: “Geralmente não há recaída depois do tratamento, então você provavelmente está curado.” Sei que há médicos que não querem se comprometer nem serem repreendidos depois, então dizem “Vamos torcer”, mas eu gosto de dizer, se as chances são 9 para 1, que estão curados.

Luis Fernando Silva Pinto — Depois de anos tratando pacientes com câncer, o Dr. DeVita se tornou um paciente. E por um motivo que não é muito justificado, ele demorou a ir ao médico.
Vincent DeVita — É, eu demorei demais. Eu tinha dúvidas em relação à triagem, mas já tinha problemas na próstata que eu ignorava, e minha próstata ficou muito aumentada. Então, quando desenvolvi câncer, surgiu o problema de como tratar alguém com uma próstata muito grande. Eu me encaixo na categoria “faça o que eu digo, não o que eu faço”.

Luis Fernando Silva Pinto — Mas o senhor ficou com medo.
Vincent DeVita — Claro, sou um ser humano normal. Descobri como é ser um paciente. Eu não consegui fazer por mim o que fazia pelos outros, porque olhava as informações e enxergava um cenário diferente, até que entreguei meu caso ao colega Steven Rosenberg. Ele consultou todos os cirurgiões de próstata famosos e mostrou meu caso sem mencionar meu nome, e a maioria disse que não operaria, que estava grande demais, e os radioterapeutas disseram que seria horrível usar radiação, então sobrava a terapia hormonal, e eu morreria antes de fazer efeito. Consegui um cirurgião que achou que era possível e me operou, e estou bem.

Luis Fernando Silva Pinto — O senhor poderia ter morrido.
Vincent DeVita — Sim. Se eu tivesse seguido os primeiros conselhos dos médicos, eu estaria morto.

Luis Fernando Silva Pinto — Como é ser paciente de câncer?
Vincent DeVita — É mais difícil para quem é médico, e mais ainda para quem é oncologista.

Luis Fernando Silva Pinto — Porque sabe o que pode acontecer?
Vincent DeVita — Eu visualizei imediatamente todos os caminhos que um paciente de câncer de próstata pode percorrer até morrer, e eu imaginava como reagiria a eles. E você tende a ser pessimista, tende a achar que tudo de ruim vai acontecer com você. Foi por isso que finalmente decidi que precisava de alguém como eu para lidar com o meu caso. Procurei o Dr. Rosenberg, que respeito muito como cientista da medicina, e foi ele que me guiou para as mãos certas. Encontrei alguns cirurgiões, inclusive um aqui que estava disposto a me operar, mas estava relutante, e Steve me disse: “Você não precisa de um guerreiro relutante, precisa de um cirurgião guerreiro, alguém que saiba o que está fazendo.” Foi o que ele fez, e deu muito certo.

Luis Fernando Silva Pinto — É difícil para a família, para o paciente e para todo mundo ter esperanças e vê-las frustradas. Eu sei bem disso porque perdi uma irmã, que teve carcinoma depois que nos disseram que ela estava em remissão ou curada ou o que seja. Esse é um aspecto cruel do câncer que esgota as pessoas. Como lidar com isso?
Vincent DeVita — Agora você está falando das pessoas que morrem de câncer, daquelas que não conseguimos curar. Isso é um grande peso para todo mundo. Se você perguntasse às pessoas como elas querer morrer, a maioria escolheria ataque cardíaco. Estou conversando com você e morro de repente. Quando você tem câncer, não consegue curá-lo e o vê progredindo, você lida com a sua morte durante um longo período de tempo, e isso é algo muito difícil. E é difícil também para a família, que em algum momento tem de se dedicar mais ao doente. Mas muitas pessoas têm dificuldade de conversar com quem elas sabem que está morrendo; elas não sabem o que dizer. “Oi, Joe, eu soube que está morrendo.” É muito difícil, então elas evitam o doente. No momento em que o paciente mais precisa de apoio, a família e os amigos deixam de visita-lo. É muito duro e difícil de superar. Em nossa cultura há essa relutância. Talvez haja menos no Oriente, mas na nossa cultura nós temos dificuldade de pensar na morte. O câncer lhe dá muito tempo para pensar sobre a morte.

Luis Fernando Silva Pinto — O senhor enfrentou a experiência mais difícil de todas. Vou lhe perguntar sobre seu filho. Por favor, conte-me o que aconteceu e o que aconteceu com o senhor, com sua esposa e sua filha.
Vincent DeVita — Bem, ele desenvolveu anemia aplásica, e no Instituto do Câncer, na época, eu era chefe do setor de tratamento. Tínhamos uma ala pediátrica, e eu o levei para ver um médico de lá. Ele tinha um caso grave de anemia aplásica, a contagem de células sanguíneas estava muito baixa. Nessa doença, a medula óssea para de funcionar. Geralmente hemácias, leucócitos e linfócitos, as células que produzem anticorpos, não são produzidas e o paciente morre de hemorragia ou de alguma infecção. Então o médico o colocou numa sala em fluxo laminar, que foi desenvolvida quando eu estava lá para tratar leucemia. É um ambiente estéril.

Luis Fernando Silva Pinto — Como uma grande bolha.
Vincent DeVita — O ar passa por um filtro, então está sempre limpo lá dentro, o ar não fica contaminado. Meu filho foi posto lá porque acharam que seria por pouco tempo, até ele se recuperar, mas ele passou oito anos lá dentro. Foi muito difícil.

Luis Fernando Silva Pinto — Quantos anos ele tinha?
Vincent DeVita — Ele tinha 5, 6 ou 7 anos. Não me lembro exatamente, e morreu aos 17 anos. Usávamos roupas da Nasa para levá-lo para passear, para ir a concertos e coisas assim, mas ele continuava confinado àquele ambiente. Havia novos tratamentos surgindo, mas ainda eram incipientes. Tentamos e conseguimos acesso a várias terapias novas, mas eram incipientes demais para fazer efeito, e ele acabou morrendo da forma como costuma acontecer.

Luis Fernando Silva Pinto — Ele estaria vivo com as terapias de hoje?
Vincent DeVita — Sim, estaria. Cerca de dez anos depois da morte dele, já havia vários tratamentos. Ainda não é universal, mas hoje 80% dos casos de anemia aplásica são tratáveis e os pacientes não morrem. Mas não conseguimos mantê-lo vivo por mais dez anos.

Luis Fernando Silva Pinto — O senhor já passou dos 80 anos. O que a vida lhe ensinou em todos os sentidos?
Vincent DeVita — Não sei. A vida é uma coisa muito misteriosa, mas é muito preciosa, e eu aprendi que as pessoas não querem abrir mão dela. E quando o assunto é o tratamento de pacientes de câncer, há uma mensagem muito importante porque, para alguém da minha idade, ou de 70 ou 60 anos, viver mais alguns anos é importante. Então, se você puder dar a um paciente mas dois ou três anos de uma vida de qualidade, isso é muito bom. Muitos médicos. Você é um médico de 35 anos e tem um paciente com câncer em metástase que vai acabar morrendo e diz: “O que adianta dar dois anos a alguém?” Porque, para você, dois anos não valeriam muito, mas, para alguém de 70 anos, dois anos valem muito. Eu perdi uma irmã, que teve câncer de pulmão, e ela gostaria de ter vivido para ver a neta se formar na escola. Teria sido uma alegria para ela, então eu acho que você aprende que a vida é preciosa e se você puder proporcionar qualidade de vida a alguém, mesmo se não curar o paciente, vale a pena.

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