Opinião

Direitos sobre compra e venda de imóveis futuros ainda geram incerteza

Autor

  • Carlos Alberto Garbi

    é mestre e doutor em Direito Civil pela PUC-SP. Pós-doutorando pela Universidade de Coimbra em ciências jurídico-empresariais. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Consultor e advogado. Professor e Chefe do Departamento de Direito Privado e Social da FMU-SP.

12 de novembro de 2016, 9h49

*Artigo utilizado em palestra no dia 17 de junho de 2016, em São Paulo, em evento promovido pelo Secovi-SP (Sindicato da Habitação) e por outras entidades.

A compra da casa própria continua sendo um sonho brasileiro. A baixa renda da população brasileira e as constantes oscilações das políticas de crédito e o estímulo do governo à construção civil são causas importantes das dificuldades existentes para a aquisição do imóvel. Tudo somado aos problemas econômicos e sociais de um grande país em desenvolvimento levam a um déficit habitacional resistente a todas as políticas implementadas nos últimos anos.

É verdade que alguma melhora nesse quadro ocorreu, especialmente em relação às moradias populares. Todavia, de acordo com estudo feito pela Fundação Getulio Vargas para o Sinduscon-SP, embora o programa “Minha Casa, Minha Vida” tenha reduzido, em cinco anos, o déficit habitacional do país em 8%, o número de famílias de baixa renda sem habitação adequada continuará crescendo, estimando-se em R$ 76 bilhões ao ano o volume de recursos necessários para atender um milhão de famílias ao ano.

Em 2012 o déficit habitacional das famílias de baixa renda foi calculado em 5,2 milhões[1]. Esses números são suficientes para indicar a dimensão do problema que a questão da moradia representa hoje para a sociedade brasileira.

Pressionadas pela necessidade, famílias empenharam todas as suas economias para a compra de imóveis nos últimos anos, motivadas pelo aumento da oferta e as facilidades de crédito que em certo momento o mercado apresentou.

Ocorre que a economia brasileira mudou substancialmente e os adquirentes de imóveis perderam renda e emprego, tornando o sonho da casa própria um pesadelo para quem se aventurou em negócios imobiliários. Decorre dessa dramática situação uma patologia jurídica que afeta a economia das empresas do setor da construção civil, com reflexos diretos nos tribunais, que é o inadimplemento dos contratos.

Todos sabemos que entre os imóveis mais procurados nos grandes centros urbanos estão os apartamentos por construir e sobre os negócios desses imóveis é que tem se manifestado mais fortemente o inadimplemento, que levou as construtoras e incorporadoras a pedir a resolução dos contratos e aos próprios adquirentes a procurar desfazer esses negócios. Em muitos casos as partes chegaram a fazer o distrato.

Embora o desfazimento bilateral dos contratos (distrato) decorra da vontade das partes, temos visto chegar ao tribunal muitas causas envolvendo esse negócio jurídico. São adquirentes que não aceitam as perdas que sofreram quando assinaram o acordo de desfazimento do contrato, levando o tribunal a decidir sobre os efeitos desse negócio.

No Direito brasileiro se verifica alguma incerteza sobre o direito das partes nessas relações de compromisso de compra e venda de imóveis futuros. De um lado o Código de Defesa do Consumidor estabelece no art. 53 que, “nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado”.

De outro lado, o Código Civil é claro ao afirmar no art. 389 que “não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos”. Portanto, se ao adquirente é assegurado não perder tudo o que pagou, ao compromissário vendedor é garantida a reparação dos danos causados pelo inadimplemento culposo. Aqui estão os elementos da equação que deve ser resolvida no distrato.

Integra essa equação a natureza cogente e a ordem pública inerente às disposições do Código de Defesa do Consumidor, que prevalece sobre a própria vontade manifestada pelo adquirente nas relações de consumo.

O distrato é um acordo de vontades dirigido a desfazer o contrato e está previsto expressamente no art. 472 do Código Civil. A mesma vontade que atuou para formar o contrato, pode agora atuar para desfazer o negócio. É expressão da autonomia privada. Exige o Código Civil somente que o distrato se faça pela mesma forma exigida para o contrato. É uma espécie de simetria relativa de forma que o Código Civil adotou.

É necessário para o distrato que se observem os mesmos requisitos de validade dos negócios jurídicos em geral, especialmente a capacidade e o poder de disposição patrimonial das partes. Outro requisito de validade do distrato, que se mostra evidente, é que ele se faça pelas mesmas partes do contrato.

O distrato não pode ser admitido se o contrato já se encontra cumprido. Nesse caso, voltar à situação anterior representa um novo negócio, como se fora uma venda regressiva, de forma que de distrato não se trata. Os efeitos produzidos pelo distrato são “ex nunc”, valendo para o futuro, mas as partes podem lhe dar efeitos retroativos, desde que respeitados os direitos de terceiros.

A validade do distrato também está ligada diretamente ao cumprimento das normas de ordem pública, à boa-fé objetiva, à função social do contrato e ao equilíbrio nas relações. É necessário, portanto, conciliar o interesse de ambas as partes no desfazimento do negócio.

Em geral os contratos de compromisso de compra e venda de unidades futuras estabelecem cláusulas penais para o adquirente inadimplente. Ao desfazer esses contratos os compromissários vendedores pretendem fazer incidir essas disposições penais. Algumas delas são muito severas com o adquirente e mesmo aceitas podem ser revistas pelos tribunais, que têm efetivamente decidido sobre a validade das cláusulas penais e do próprio distrato nas relações de consumo.

É comum o argumento em favor da confirmação do distrato de que ele representa a vontade das partes, que não pode se arrepender. Sucede que o adquirente é consumidor nessa relação e, portanto, reconhecido pelo CDC como vulnerável, de forma que as obrigações e disposições que assume estão sujeitas ao regulamento legal desses contratos, definido pelo CDC, especialmente no rol de cláusulas abusivas previsto no seu art. 51. Entre as disposições abusivas podem ser lembradas aquelas que subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga e que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.

Diante do que estabelece o Código de Defesa do Consumidor, os tribunais estão autorizados e legitimados a rever o distrato e conferir validade somente àquelas disposições que se encontram de acordo com a lei. É certo que há entendimento no sentido de que o direito é disponível e que não há limite à retenção de parcelas do que foi pago, como se afirmou recentemente em julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, de relatoria do desembargador Beretta da Silveira [Apelação 1040796-65.2014.8.26.0506, de 08 de abril de 2016].

Outro julgado na corte, relatado pelo desembargador Salles Rossi, reconheceu, ao contrário, a possibilidade de revisão do distrato [Apelação 1012356-89.2014.8.26.0011, de 29 de março de 2016].

Afirmando esse controle judicial sobre o distrato decidiu recentemente o Superior Tribunal de Justiça:

“O distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato" (art. 472 do Código Civil), o que significa que a resilição bilateral nada mais é que um novo contrato, cujo teor é, simultaneamente, igual e oposto ao do contrato primitivo. Assim, o fato de que o distrato pressupõe um contrato anterior não lhe desfigura a natureza contratual, cuja característica principal é a convergência de vontades. Por isso, não parece razoável a contraposição no sentido de que somente disposições contratuais são passíveis de anulação em virtude de sua abusividade, uma vez que "'onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito". 2. A lei consumerista coíbe a cláusula de decaimento que determine a retenção do valor integral ou substancial das prestações pagas por consubstanciar vantagem exagerada do incorporador. 3. Não obstante, é justo e razoável admitir-se a retenção, pelo vendedor, de parte das prestações pagas como forma de indenizá-lo pelos prejuízos suportados, notadamente as despesas administrativas realizadas com a divulgação, comercialização e corretagem, além do pagamento de tributos e taxas incidentes sobre o imóvel, e a eventual utilização do bem pelo comprador.” [REsp 1.132.943/PE, relator Luis Felipe Salomão, DJe 27 de março de 2013].

Ainda persiste nos meios sociais e jurídicos uma resistência à ideia de que nos contratos, especialmente naqueles que sofrem direta regulação da ordem jurídica, a vontade das partes nem sempre prevalece. Recorre-se frequentemente àquela velha máxima — pacta sunt servanda — para justificar o cumprimento do que foi contratado, custe o que custar. Esse pensamento é decorrente da herança liberal que recebemos e dos códigos oitocentistas que reconheciam máximo valor à vontade e força coercitiva absoluta às declarações das partes. A justiça do contrato recaia sobre a manifestação de vontade e não sobre o conteúdo das suas disposições.

A passagem do Estado Liberal ao Estado Social promoveu forte impacto nas relações contratuais de forma a impor cada vez mais a intervenção do Estado nas relações privadas a fim de promover a igualdade e equilíbrio dessas relações. A justiça contratual passou a outro campo de observação, o que levou o grande economista Keynes a afirmar, em trabalho que veio a público em 1926 [O Fim do Laissez-Faire, reproduzido pela Editora Ática in “Economia”], que não há nenhum direito contratual que se possa dizer absoluto.

Não é o caso de generalizar a afirmação do grande economista e negar valor ao que foi contratado. Não é isso efetivamente que afirmou Keynes. A afirmação em referência diz respeito à mudança de paradigmas no direito contratual verificada a partir do século passado no sentido de que prevalece sobre a vontade das partes o interesse público.

Assim, diante do vulnerável — consumidor — não pode se surpreender o contratante com a solução que dê prevalência à Lei sobre a vontade manifestada no contrato. Essa é a base do moderno direito contratual que distingue os contratos paritários dos contratos não paritários, os contratos regulados dos contratos não regulados por lei de ordem pública.

A questão que se coloca, portanto, assentado que o tribunal pode rever o distrato, é saber quais são as perdas e danos que, em caso de inadimplemento dos compromissos de unidades por construir, podem ser exigidas dos adquirentes. E não há receita pronta para resolver essa questão, que depende do exame do caso concreto.

Há em curso Projeto de Lei do Senado 774/2015, de iniciativa do senador Romero Jucá, que procura disciplinar os efeitos da “resilição unilateral” e “inadimplemento” do adquirente, excluindo-se qualquer disciplina para o “distrato”. Segundo a proposta, no distrato vale o que as partes convencionaram.

Com o devido respeito, ignora-se o entendimento firmado no sentido de que o distrato está sujeito a controle judicial. Melhor seria que o projeto tivesse incluído na disciplina proposta também o distrato. Há proposta de emenda nesse sentido feita no Senado e o projeto merece toda a atenção dos envolvidos.

São deduzidas frequentemente no distrato as despesas com corretagem, de assessoria, de publicidade, e impostos incidentes sobre o negócio. Há dúvida sobre a regularidade dessas retenções. A solução que tem sido admitida nos tribunais é a simples retenção de um percentual de tudo que foi pago. Esse percentual se situa entre 10% e 25%. 

O que tem se considerado normalmente na fixação da retenção é o total do valor pago e o prejuízo que sofreu o compromissário vendedor. A partir desse exame o tribunal julga casuisticamente a retenção.

Embora a jurisprudência formada seja no sentido de exame casuístico dos efeitos do distrato, resilição e resolução dos contratos, o mencionado projeto de lei do Senado admite cláusula penal de até 25% de retenção da quantia paga e ainda imputa ao adquirente o pagamento de corretagem (5%), ocupação do imóvel e outras despesas, cumulativamente.

Nesse ponto, a solução proposta no projeto de lei destoa da jurisprudência formada, como bem foi apontado pela senadora Marta Suplicy em voto em separado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, que propõe cláusula penal limitada a 10% do que foi pago em vista da cumulação de indenização pela corretagem, ocupação e outros danos sofridos pelo incorporador. Melhor seria que a lei apenas fixasse limites, deixando ao exame judicial ajustar os excessos em face do caso concreto.

Infelizmente os processos que trazem essa questão relativa ao distrato não são instruídos adequadamente. Faltam esclarecimentos e provas a respeito do dano causado pelo inadimplemento, dificultando o julgamento pelo magistrado do valor correto da retenção aplicada no distrato.

Nota-se também que muitas vezes são mal elaborados os documentos que instrumentalizam o distrato, deixando de indicar com precisão o quanto foi pago e o que efetivamente é objeto de retenção. Não se deve olvidar que ao consumidor é assegurado o direito à informação, o que também deve ser observado nesse tipo de tema. O adquirente tem direito a ser informado sobre o que se propõe a deduzir no distrato e a razão que justifica essa retenção para que ela não seja reputada abusiva. Melhor que a informação seja lançada no próprio instrumento do distrato.

Outra importante questão diz respeito ao tempo de pagamento da restituição. Não havendo abuso, é razoável aceitar que as partes convencionem o pagamento em parcelas, muito embora a jurisprudência dominante se mostre refratária a esta solução. Caso as partes não possam acordar sobre esse ponto, a solução só pode ser pela restituição imediata. Registro que a esse respeito o referido projeto de lei prevê carência e parcelamento para a restituição. No meu modo de ver essa disposição representa uma vantagem excessiva que o Código de Defesa do Consumidor não autoriza.

Nesse momento de crise econômica, quando o inadimplemento do contrato ganha dimensão epidêmica, essas relações contratuais tendem a se judicializar e é necessário encontrar o ponto de equilíbrio dos interesses em jogo para assegurar o direito de cada uma das partes, o que exige de ambas a boa-fé e, antes de tudo, bom senso.

Autores

  • Brave

    é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, chefe do Departamento de Direito Civil das Faculdades Metropolitanas Unidas e coordenador de pós-graduação de Direito Civil da Escola Paulista da Magistratura.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!