Limite Penal

Quem deve e pode ser juiz de um processo não autoritário?

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11 de novembro de 2016, 7h00

Spacca
Quem deverá ser o juiz em uma democracia processual? A estrutura de seleção e provimento do juiz — juízes técnicos ou leigos (júri) — é critério externo ao Direito Penal e se vincula à organização do Estado, sempre dependente da figura que o modelo pretende impor[1]. De qualquer forma, essa escolha pode se dar por “eleição” ou “concurso público”, na dependência da escolha constante, em regra, na Constituição. Assim é o caso brasileiro, em que o juiz possui uma legitimidade democrática advinda da Constituição e investidura por concurso público, não obstante a Lei Orgânica da Magistratura (LC 35/1979), ainda da “era militar” possibilitar profundo controle ideológico sobre o conteúdo das decisões ao propiciar a exclusão de juízes mediante processos administrativos por violação de ‘tipos administrativos’[2] absolutamente antigarantistas[3].

Esse controle administrativo deve existir, todavia, não para responsabilizar o juiz pelo conteúdo de suas decisões, mesmo contra a maioria, ou pela “necessidade” de “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular” (LC 35/79, artigo 35), enunciado que, ao mesmo tempo em que não diz nada, propicia julgamentos decisionistas (Lenio Streck), isto é, incontroláveis democraticamente (zero grau de linguagem)[4]. A Constituição da República de 1988, por seu turno, explicitou as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio (que era de vencimento), as quais sedimentariam a garantia da independência do Poder Judiciário, acrescidas das regras de accountability, indicadas, em grande medida, pelo Conselho Nacional de Justiça.

Daí advém a necessidade de manutenção de equidistância das condutas analisadas no processo e da pretensão acusatória[5], sem que se possa, evidentemente, deslizar (confortavelmente) na ilusão do juiz neutro. Aliás, essa diferenciação é assente na doutrina mais esclarecida, não obstante ainda restem fiéis ao culto da neutralidade. Some-se a isso a independência do Poder Judiciário e a fixação ex ante, por lei[6], ou seja, o “princípio do juiz, do promotor e defensor natural”[7], já que afirma Jardim: “Todos devem ter direito de não ser acusados por um ‘Promotor Encomendado’, por um ‘Acusador de Ocasião’”[8].

Na mesma linha, Miranda Coutinho esclarece que o Código de Processo Penal brasileiro seguiu a linha de Manzini, propiciando que se manipule a competência: “para beneficiar alguns (criando-se uma comarca nova v. g. para onde se trata de mandar um magistrado em estágio probatório e…) ou prejudicar outros v. g. transformando a competência, em certos casos, do órgão especial para as câmaras isoladas, com a evidente diminuição do número de julgadores”[9].

Marcon faz substancioso balanço do “princípio do juiz natural”, deixando evidenciado que ele não é respeitado no Processo Penal brasileiro, apesar do disposto no artigo 5º, XXXVII, da Constituição da República: “A extensão do significado do Princípio do Juiz Natural tem sido manipulada pelos órgãos de administração da Justiça, sob a alegação de que seu cumprimento trava a prestação jurisdicional no que ela tem de mais crítico hoje, que é a celeridade processual. Entretanto, o argumento não tem procedência porque é perfeitamente compatível o cumprimento do ordenamento normativo, com todas as garantias que ele representa, e a prestação jurisdicional mais célere. Diante disso, não há que se admitirem nomeações aleatórias de juízes para atuarem em processos criminais fora de suas funções definidas em lei. Tampouco são admissíveis substituições de juízes por outros, senão quando obedecidas as normas de competência preestabelecidas pela lei”[10].

Cabe relembrar que somente pode ser imparcial — com muito esforço retórico, por básico — aquele que não é acusador, reiterando a necessidade da separação da acusação e julgador para, somente assim, ser o ‘garantidor dos Direitos Fundamentais’. É inimaginável que o juiz em qualquer disputa, por exemplo, boxe, futebol ou MMA, o juiz desfira qualquer golpe nos contendentes, sob pena de fraudar a disputa e deixar evidenciada sua preferência de vitória.

Por isso a ideia de se afastar do exercício da Jurisdição Penal todos os envolvidos em combates, lutas por defesa de quaisquer direitos materiais, alienados da função de não se poder, no exercício da função jurisdicional, ser terceiro. Dito diretamente: alguém interessado na punição ou absolvição de qualquer agente resvala da função democrática de terceiro, justificativa para que se possa, em nome do Estado, dizer o Direito.

Arremata Ferrajoli: “E o Poder Judiciário se configura, em relação aos outros poderes do Estado, como um contrapoder, no duplo sentido que é atribuído ao controle da legalidade ou de validade dos atos legislativos assim como dos atos administrativos e à tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos contra as lesões ocasionadas pelo Estado”[11].

Quando o Poder Judiciário que deveria controlar joga alinhado com o Estado Policial, deixamos de congregar legitimidade e tornamos um jogo de cartas marcadas. Eis o desafio em tempos de bom-mocismo.


[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et alii. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 461: “Enquanto ao sistema acusatório de fato convém um juiz espectador, dedicado acima de tudo à valoração objetiva e imparcial dos fatos, e, portanto, mais prudente que sapiente, o rito inquisitório exige um juiz ator, representante do interesse punitivo e por isso leguleio, versado nos procedimentos e dotado de capacidade investigativa”.
[2] FERREIRA, Daniel. Sanções administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 63.
[3] CABEDA, Luiz Fernando. A Justiça agoniza: ensaio sobre a perda do vigor da função e do sentido de Justiça no Poder Judiciário. São Paulo: Esfera, 1998, p. 33-34: “Em matéria disciplinar, os juízes tornaram-se os únicos servidores do Estado submetidos a julgamentos administrativos irrecorríveis. Primeiro, porque a LOMAN não previu recurso. Segundo, porque os mandados de segurança em busca de garantias legais teriam de ser interpostos perante os órgãos coatores. Terceiro, porque haveria o empecilho legal de incabimento desse tipo de ação diante do ato disciplinar. O que se viu a partir de então guarda analogia com a clássica narrativa de Peter Gay sobre a dêblacle da República de Weimar: o desfile do opróbrio, da perseguição rasteira por motivos pessoais, da bajulação, das fidelidades maçônicas e do despropósito de toda a ordem, sob o comando dos arrivistas de sempre. Criaram-se tribunais de exceção com funções censórias (um dos quais foi dissolvido pelo Supremo Tribunal Federal). (…) É verdade que para essa dêblacle concorreu o fato de que muitos juízes, que eram contrários aos princípios informadores da LOMAN, se aposentaram massivamente quando ela entrou em vigor. Seu silêncio, infelizmente, não deixou memória, mas uma situação de abandono da resistência altiva que traz sua marca aos dias de hoje.”
[4] BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. Trad. Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 81.
[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et alii. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 466-467: “Não basta, todavia, para assegurar a separação entre juiz e acusação, que no processo as funções acusatórias sejam exercidas por um sujeito diverso e distinto do juiz. (…) São necessárias também garantias procedimentais específicas – relativas à condução da fase instrutória, à publicidade do juízo, às modalidades do interrogatório e em geral às técnicas de formação e contestação das provas. (…) Por fim, as duas partes em causa devem contender em posição de paridade, de modo que a imparcialidade do juiz não seja de qualquer modo comprometida pelo seu desequilíbrio de poder e não sejam criadas solidariedades ambíguas, uniões ou confusões entre as funções judicantes e postulantes.”
[6] CORDERO, Franco. Procedimento Penal. Trad. Jorge Guerrero. Santa Fé de Bogotá: Temis, 2000, v. 1, p. 101: “Pero no basta que sea ordinario, pues que debe ser preconstituido”.
[7] BONATO, Gilson. A garantia constitucional do Juiz e do Promotor natural. In: BONATO, Gilson (Org.). Garantias Constitucionais e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 157-179.
[8] JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 319.
[9] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Crime continuado e unidade processual. In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.). Estudos Criminais em Homenagem a Evandro Lins e Silva. São Paulo: Método, 2001, p. 205-206.
[10] MARCON, Adelino. O princípio do juiz natural no processo penal. Curitiba: Juruá, 2004, p. 229.
[11] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et alii. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 465.

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  • Brave

    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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