Opinião

Caso Guga e a desconsideração da pessoa jurídica para fins fiscais

Autor

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV-Direito SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

1 de novembro de 2016, 10h11

Na última semana foi notícia em diversos meios de comunicação a presença do tenista Gustavo Kuerten, o Guga, no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) em razão do julgamento em última instância de caso envolvendo a exigência de Imposto sobre a Renda pessoa física (IRPF) pela Receita Federal.[1]

O “caso Guga” cuida da discussão a respeito da possibilidade de o Fisco desconsiderar pessoa jurídica constituída para se tributar a título de imposto sobre a renda o sócio daquela, sob alegação de que, em verdade, seria este o efetivo prestador do serviço ou detentor de direito intransferível e, assim, quem se vincula diretamente ao fato jurídico tributário (renda ou proventos).[2]

Bem por isso, houve lançamento tributário em face da pessoa física de Gustavo Kuerten, sob alegação de omissão de rendimento sem vinculo empregatício, uma vez que: (i) — constitui-se a pessoa jurídica, realizando-se contrato de cessão de direitos de imagem à pessoa jurídica, a qual tinha amplos poderes e direitos par administração e gerenciamento em relação ao uso da imagem, nome, marca e voz do atleta; (ii) — os contratos a título de remuneração pela utilização por terceiros de tais direitos eram firmados pela pessoa jurídica, embora houvesse a assinatura como interveniente do sócio tenista; (iv) — os pagamentos eram recebidos pela pessoa jurídica, a qual contabilizada e apuração a tributo, distribuindo lucro aos seus sócios; (v) — tal operação tem somente o propósito de reduzir a carga fiscal, pois, era Gustavo Kuerten o responsável pelo cumprimento do contrato.

Daí porque, em julgamento do recurso voluntário, negou-se provimento por voto de qualidade[3].

A partir de tais esclarecimentos a respeito da polêmica existente e do julgamento no caso concreto, é necessário fazer breves reflexões.

O primeiro aspecto a ser enfrentado seria quanto à possibilidade da desconsideração da pessoa jurídica (ou “deslocamento” do sujeito passivo) em matéria tributária, sobretudo, diante do art. 129 da Lei n. 11.196/2005.

Acreditamos, de início, que é possível diante do caso concreto e das provas produzidas a qualificação jurídica de fatos e, por conseguinte, a adequada tributação à luz do sistema jurídico vigente.

Isto porque, poderá a fiscalização constatar que os serviços não foram prestados pela pessoa jurídica, ao buscar a realidade efetivamente vivenciada e representada por provas, podendo-se ter em tais hipóteses a qualificação jurídica dos fatos, em razão da simulação.     

Apesar de acreditamos na possibilidade de se “desconsiderar” negócios jurídicos meramente formais, diante do caso concreto e dependendo das provas produzidas, não podemos ignorar a existência da lei, sobretudo, quando impõe limites e procedimentos a serem respeitados.

Neste aspecto, entendemos que o procedimento realizado pelo fisco de “deslocamento” do contribuinte quanto ao imposto sobre a renda para eventual sócio de pessoa jurídica devidamente constituída não deixa de ser uma desconsideração da personalidade daquela para fins fiscais.

Equivocadamente, o Carf afirma que não seria desconsideração tais procedimentos, pois a pessoa jurídica continua a existir e produzir efeitos, havendo um mero deslocamento quanto ao sujeito passivo para tributar aquele que efetivamente realizou o fato gerador. Ora, o que temos, deveras, é a imputação de um tributo ao sócio em detrimento da existência de uma pessoa jurídica devidamente constituída que havia declarado para si referido fato gerador.

Isto não mais é do que transpor a pessoa jurídica para atingir a pessoa física do sócio, ou seja, desconsiderar a personalidade jurídica. Diferente seria se o fato gerador estivesse ligado a um terceiro que não fosse sócio da pessoa jurídica.

Ademais, é da essência da desconsideração da pessoa jurídica que ela continue existindo, pois não se deve confundir tal instituto com a suspensão ou dissolução. Fazemos esta ponderação para deixar clarividente que a qualificação jurídica dos fatos realizada pelo Fisco e consequente  deslocamento do sujeito passivo da pessoa jurídica para o sócio é uma forma desconsideração da personalidade, já que se ultrapassa “o véu” que distingue tais pessoas para atingir uma delas, naquela situação específica.

Esta observação se torna mais relevante a partir da Lei 11.196/2005, que, em seu artigo 129, consignou: “Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no artigo 50 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil”.

Ora, antes de referida lei, havia uma clara discussão e dúvida a respeito da possibilidade ou não de o Fisco desconsiderar a personalidade jurídica para fins fiscais, inclusive, sem autorização judicial.

Deste modo, com o advento do artigo 129 da Lei 11.196/2005, estabeleceu-se expressamente por imposição legal um limite jurídico à fiscalização, de sorte que a requalificação de fatos jurídicos para fins fiscais e previdenciários quanto à tributação de serviços ou direitos personalíssimos por meio de sócios, desconsiderando a existência de pessoa jurídica, somente se dará conforme os ditames estabelecidos no artigo 50 do Código Civil.

A primeira questão a ser debatida diz respeito ao passado.

A criação do artigo 129 da Lei 11.196/2005 teve por finalidade esgotar o assunto da desconsideração, explicitando, qual seria a interpretação mais adequada. O que houve, portanto, não foi uma efetiva inovação, mas a elaboração de uma lei que esclarecesse quais seriam os limites e contornos jurídicos em relação a tais situações.[4]

Trata-se, por conseguinte, de uma lei nitidamente de natureza interpretativa. É certo que não se pode caracterizar a lei como interpretativa pelo simples fato de existir “justificativa” em projeto de lei ou até mesmo se ela própria assim se descrever. Mas inequivocadamente é um relevante elemento de interpretação que não deve ser descartado.

A natureza interpretativa do artigo 129 da Lei 11.196/2005, cujo indício de referido aspecto se encontra na justificação do projeto de lei, tem supedâneo na verdadeira e efetiva discussão e controvérsia jurídica que existia a respeito da possibilidade ou não da desconsideração em tais casos, sobretudo, com relação à necessidade de autorização judicial. Pode-se até sustentar que não havia necessidade em referidas ocasiões, mas negar a existência de interpretação diversa e, notadamente, a controvérsia, é impossível.

Aqui está o principal elemento de comprovação, a partir da conjuntura jurídica e fática, de que o artigo 129 da Lei 11.196/2005 veio para explicitar qual a interpretação mais adequada para tais hipóteses, extinguindo as dúvidas e vinculando juridicamente a todos, sobretudo, a Administração tributária.

Destarte, se não houve inovação na ordem jurídica, sendo uma lei meramente interpretativa[5], esta deve retroagir para atingir os fatos pretéritos, nos termos do artigo 106 do Código Tributário Nacional, impedindo a desconsideração.

Independentemente da Lei 11.196/2005, convém refletir ainda a respeito da desconsideração da pessoa jurídica a fim de se tributar o sócio no caso de serviços personalíssimos, como se põe no caso Guga.

Em geral, a exigência do IRPF por meio do lançamento não está fundado exclusivamente na economia fiscal, embora este fato induza a fiscalização à desconsideração.

O elemento principal para a desconsideração, normalmente, reside no fato de que, apesar da existência de uma pessoa jurídica, é o sócio no caso concreto de forma individual e pessoal que realiza o serviço. E mais: sua execução é indissociável de determinado sócio, até mesmo em grau de exclusividade, diante da natureza personalíssima deste. Daí a razão de, em regra, a discussão envolver esportistas, artistas, jornalistas, entre outros.

Ora, não é o fato de se constatar a existência de um serviço personalíssimo que, obrigatoriamente, a tributação há de ser declarada e apurada como pessoa física a título de imposto sobre a renda, pois: (i) — é preciso a avaliar o caso concreto e as provas existentes com o objetivo de comprovar, efetivamente, a configuração de uma simulação, levando a uma sociedade aparente ou fictícia; (ii) — a existência de serviços personalíssimos não leva por si só à configuração de simulação; (iii) — é plenamente compatível a existência de pessoa jurídica cujo serviço ligado ao seu objeto social tenha natureza pessoal; (iv) — a participação pessoal dos sócios na execução do objeto social, quando se trata de uma prestadora de serviços é algo inerente e natural; (v) — a pessoalidade na prestação de serviços é totalmente reconhecida pela legislação do imposto sobre a renda e por outros tributos como possível de estar relacionada à uma pessoa jurídica;  (vi) — quando se cuidar de pessoa jurídica prestadora de serviços de profissão regulamentada, mesmo no caso de serviço personalíssimo, poderá tributar tais receitas por aquela, desde que os sócios estejam em condições de exercer referida atividade e contribuíam para o objeto social; (vii) — se houver uma pessoa jurídica com elementos de empresa, dentro mesma perspectiva, a natureza de serviço personalíssimo não impede a tributação como pessoa jurídica.

De outra parte, ainda, fundada na questão do direito personalíssimo, entende-se que seria possível sua cessão ou licença, exemplo, imagem, voz, de maneira que se torna viável a geração de negócios e sua tributação por meio de pessoa jurídica, inclusive, diante do disposto no artigo 5º na Constituição Federal, como também o Código Civil (artigo 11) e a Lei 9.610/98 (artigo 49).

Enfim, não se pode partir da premissa de que pessoas físicas estejam impedidas de constituir pessoas jurídicas pelo simples fato de que existe a pessoalidade, como no caso do tenista Guga. Em verdade, tais artistas, esportistas, muitas vezes, transcendem à sua pessoa física, tornando-se um verdadeiro e grande negócio, que exige profissionalismo e gestão, o que, inevitavelmente, é feito a partir da constituição, nos termos da lei, de uma pessoa jurídica, permitindo, assim, que possa explorar adequadamente toda a sua potencialidade econômica, dentro da liberdade de livre iniciativa, inexistindo sustentação jurídica para tais desconsiderações realizadas pelo Fisco.


[1]  – Caso está em julgamento na Câmara Superior de Recursos Fiscais. Aguarda-se retorno em razão de pedido de vista. No momento, existe um voto em favor do contribuinte e dois contrários.

[2][2] Cf. CALCINI, Fábio Pallaretti. A desconsideração da pessoa jurídica para fins fiscais quando da prestação de serviços ou cessão de direitos personalíssimos e a jurisprudência do Carf. Algumas ponderações. “in” Grandes Questões Atuais do Direito Tributário. ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). São Paulo: Dialética, 2013. p. 37-76. V. 17.

[3] –  “IRPF – REMUNERAÇÃO PELO EXERCÍCIO DE PROFISSÃO, ATIVIDADE OU PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE NATUREZA NÃO COMERCIAL – PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE NATUREZA PERSONALÍSSIMA – TRIBUTAÇÃO NA PESSOA FÍSICA. Não há plausibilidade jurídica em defender a regularidade da constituição de empresa de prestação de serviço, detentora de um único ativo vinculado à imagem de um tenista profissional, para comercialização dos desdobramentos patrimoniais do direito de imagem, quando a empresa centra-se unicamente na figura do tenista, o qual é o responsável principal pela execução (ou inexecução) dos contratos geradores de renda, e não meramente um afluente. Claramente seria uma sociedade cujo affectio societatis se resumiria à redução do pagamento dos tributos incidentes sobre os rendimentos do trabalho percebidos unicamente por um dos sócios, e não urna atividade econômica especifica, que pudesse alavancar a carreira ou os negócios do anuente agenciado. O que une os sócios dessa sociedade não é o desenvolvimento de uma atividade econômica, mas uma pretensa redução de carga tributária, já que todo o ônus (e bônus) da prestação do serviços está vinculado ao desempenho personalíssimo de um dos sócios. Assim, deve ser tributada como rendimento de pessoa fisica a remuneração por serviços prestados, de natureza personalíssima, sem vinculo empregatício, independentemente da denominação que lhe seja atribuída. ART. 129 DA LEI /s18 11.196/2005 – DISPOSITIVO QUE INSTITUI UM NOVO REGIME DE TRIBUTAÇÃO – IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO RETROATIVA A FATO GERADOR OCORRIDO ANTERIORMENTE À EDIÇÃO DE TAL LEI.  Dispositivo que institui uma nova modalidade de tributação não pode ser encarado como norma interpretativa, a retroagir seus efeitos para fatos geradores anteriores a sua edição.” (1º CC. Sexta Câmara. Ac. 106-17.147. j. 5/09/2008.)

[4] Neste sentido o texto de “justificação” da inclusão de referido dispositivo na Lei n. 11.196/2005: “Os princípios da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa previstos no art. 170 da Constituição Federal asseguram a todos os cidadãos o poder de empreender e organizar seus próprios negócios. O crescimento da demanda por serviços de natureza intelectual em nossa economia requer a edição de norma interpretativa que norteie a atuação dos agentes da Administração e as atividades dos prestadores de serviços intelectuais, esclarecendo eventuais controvérsias sobre a matéria”.

[5] Entendemos que este é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal quanto à lei interpretativa ao julgar a questão do prazo prescricional segundo Lei Complementar 118/2005. Neste precedente o Supremo Tribunal Federal deixou de reconhecer a natureza de lei interpretativa pelo fato de que já existia uma interpretação consolidada no Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema, de maneira que se considerou uma lei nova. (STF, RE 566.621/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, Pleno, j. 04/08/2011). Em sentido contrário a este caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal, a matéria ligada ao tema da desconsideração, quando do advento da Lei n. 11.196/2005, gerava grande controvérsia, com diversos posicionamentos e decisões, inexistindo um entendimento consolidado, muito menos a uma única interpretação possível segundo nosso sistema jurídico vigente.

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